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CORPOS SOCIOCULTURAIS EM CONFLITO: Uma contribuição historiográfica.
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
Uma história sobre os controles e confrontos dos novos paradigmas e suas inserções na realidade vivenciada de uma velha novidade: multicultura brasileira.
Introdução
Monoteísmo da razão e do coração, politeísmo da imaginação e da arte: é disso que necessitamos.Hegel (1797)
Por sabermos ser importante pelas circunstâncias e também meticuloso pelas abordagens valorizadas também face às transformações passadas recentemente, o mundo atual vive imbricado, ainda, na rápida e turbulenta transição do breve século XXpara o XXI. Exatamente agora, no início de tudo, podemos dizer que, em um novo milênio de um país nascido à sombra da cruz,tudo se modificou.
Propor um desconfiado olhar sobre a História Social de corpos em conflito é para nós um significativo desafio. A História sociocultural da Cidade do Rio de Janeiro, no alvorecer do século XXI, permite ver mais de um mundo marcado pela globalização, e ele nos assusta. Ainda mais quando nele se discute a crise do Estado/Nação no espaço do "medo sóciourbano" como hoje.
Sabemos que, definida pelos sinais de transformações rápidas de futuro, a infomotricidade, infotecnologiadelegou ao homem a marca de infobjeto. Configurou-o definitivamente como tal no espaço do tempo presente. Olhando para nossa História Social vemos que a questão mais difícil é o desafio em decifrá-lo cotidianamente.
Deslindar os desafios sociais como o que focamos aqui poderá permitir a construção e/ou o desenho de um mundo impulsionado pelas ideias de corpos em conflito. Sabemos que, antes de tudo, trata-se do ato de vasculhar verdadeiros escombrosda nossa própria História Social que, condenada ao progresso, nunca se permitiu olhar com o carinho e a propriedade que merece o novo espaço. Em havendo, optou-se por um "Desejo frio". Dizia José do Patrocínio, ao final do império, "temos que acabar com a obra da escravidão". Principalmente, não alimentando o desejo de vingança, pois como no sábio dizer popular: "a vingança é uma forma preguiçosa de sofrer!" Reiteramos: também é uma forma preguiçosa de viver. Sabemos que temos que seguir em frente. Lutar para liquidar as diferenças e os conflitos sociais.
I - Um olhar monolítico em confronto com o complexo.
Como sempre, o ato de viver reservou-nos novidades surpreendentes. O século XX assistiu ao nascimento da HISTÓRIA DO IMAGINÁRIO, com vários historiadores novos. Todos inesperados e novidadeiros. Foi uma mudança significativa na maneira de entendê-la. Não se tratava de mais um maneirismo. Trouxe novidades na abordagem e também, como não podia deixar de ter, maneirices surpreendentes no trato desta ciência. Aqui, no nosso país, permitiu um caminhar mais novidadeiro. Estupefatos, deixou-nos perplexos diante dos desafios com os quais tínhamos que nos deparar diante da construção histórica já feita e aparentemente cristalizada. Nunca a academia poderia conceber, em outros tempos, tais vieses. Mudou a visão de totalidade, pois ela, de aparentemente fechada, agora se tornava aberta. Vivemos, naquela época, uma crise das certezas, mas agora sabemos que, também, a "cidadania se ensina". O Brasil iniciava uma trajetória nova no social, repleta de surpreendentes realidades.
Acreditamos que discutir metodologicamente a questão do ex-escravo na pós-escravidão brasileira, agora envolta na névoa da protocidadania, é para nós algo que representa um significativo desafio. Pois, em certos casos, sabemos que não será quase assassinando as imagens dos líderes, principalmente dos líderes empurrados inconvenientemente por alguns da História do esquecimento, que lograremos sucesso. A vantagem sempre acaba sendo recompensadora para eles (líderes), pois ganham projeção. Saem do anonimato. Não se pode quase assassinar pelo esquecimento imagens de lideres, principalmente os que foram consagrados pela escravidão/abolição enquanto processo, embora, em toda a historiografia, não se tenha pautado por tal prática. Mas, resgatar é preciso!
Sabemos que um líder não se quase assassina, mesmo pelo esquecimento, porque um líder quase assassinado ganha tudo o que quer, e ainda lhe sobra tempo para aproveitar, ou seja, saborear o que ganhou, ou irá ganhar! Vide os cultos afro-brasileiros que os consagraram até com um misto de musicalidade e fidelidade sobre suas histórias impregnadas de lendas, todas relatando sempre vitórias. Eles existiram!? A questão aqui é especular os anônimos lideres da História da escravidão e da pós-escravidão. Não se trata de tocar nas vitórias e conquistas, ou até mesmo feridas, de um Zumbidos Palmares, do Ganga Miucha, mais conhecido como Ganga Zumba, e outros, mas, antes de qualquer coisa, vasculhar os escombrosdo edifício construído pela historiografia brasileira da escravidão, com o propósito de averiguar as imagens dos líderes anônimos, ou quase isso. A historiografia descansaainda em Berço Esplendido quando se trata de uma incursão mais audaciosa.
Descobrir, averiguar, sondar, ou o inverso, é necessário! Sem o medo de incorrer no equívoco, pois sabemos que faz parte do trabalho de construção historiográfica. Achar que não ser pego na mentira é o mesmo que dizer a verdade constitui um ledo engano. A historiografia do preto na escravidão ou mesmo na pós-escravidão é repleta de sinais que carecem de averiguação sistemática e detida.
Pois bem, a história do século XX ficou marcada em nossas vidas. Ela ficou como marca contundente nos hábitos e costumes do corpo sociocultural do Brasil. Verificá-la na razão do desenho social complexo configurado no processo torna-se atitude necessária, vertical e explosiva. Fazendo-se assim, poderemos, temos certeza, contribuir com inovações do estudo do problema do e no referido metier. A ideia de corpo sociocultural no universo científico é motivo recente de candentes discussões.
As razões que nos moveram nesta direção foram todas construídas ao sabor dos inquietantes questionamentos sobre os novos contornos sociais. Principalmente no que se refere à insegurança individual e coletiva do cidadão hoje. Vivemos no dia-a-dia os motivos que nos preocupam, ou seja, a existência de Corpos socioculturais em Conflito.
Antes, desejamos deixar claro que o nosso viés se insere na área da cultura. Com relação à segurança individual, ressaltamos que, realmente, algo mudou no que tange ao modelo envelhecido e, talvez, já inadequado de conceituar e entender a cristalizada relação sociedade/cidadania, especialmente no Rio de Janeiro moderno.
Hoje, inclusive, acreditamos merecer novas leituras, pelo complexo conjunto de contornos apresentados por suas especiais relações sociais comportadas em seu todo cotidiano. A recente História Socialda nossa macrocéfala cidade fluminense é vigorosamente nova no urbano do tempo presente. Mudanças radicais onde corpos socioculturais surgiram e, estranhamente convivem, disputando espaços urbanos claramente definidos pelo espírito de territorialidade . Com relação à Segurança Coletiva, pode-se afirmar que os ditos corpos, talvez de sua memória social urbana, estão marcados pela ameaçadora presença do que denominamos de síndrome do medo. O que aconteceu? Porque ficamos assim? Quão maléfica foi nossa construção social para nos legar tão triste destino? Seria o peso das práticas históricas dos variados modelos de escravismo ainda presentes em sinais nos nossos hábitos sociais ou o processo de desescravização, deflagrado após a combinação abolição/independência não teve ainda fim? Afinal, nossa macrocefalia urbana de hoje tem síntese legível? Precisa-se ainda que diagnostiquemos estranhos desenhos de ocorrênciasde hábitos coletivos comuns de violência!? Certamente inadequados ao novo modelo de civilização por atribuição8 a nós ensinado, ou transplantado?! Até hoje, sempre foram eles que nos identificaram?
Certamente faz-se mister aqui um mergulho mais profundo e incisivo na leitura do que queremos apresentar. Tanto quanto uma (re) leitura crítica de nossa construção do corpo sociocultural, para que se possa então desvendar a nebulosa social em que se apresenta o todo sociocultural moderno. Contudo, a verdade é que constituímos hoje uma cidade multifacetada, complexa. Síntese de um país multicultural, onde os referidos corpos sócioculturais disputam às vezes com ferocidade os espaços.
Oriundo de uma nova e variada tipologia de comportamentos socioculturais, a violência é marca social que se alastra por todo o Estado, desde quando éramos apenas Província. Em nosso entender, o tudo representa mais um dos corpos socioculturais diferentes, mas que ocultado por um longo tempo, agora se mostra talvez inteiro aos olhos de nossas aterrorizadas instituições no alvorecer do século XXI, impondo-se como importante desafio a se enfrentar.
Por essa razão mesmo, o objeto de nossa verificação, que em face de turbulenta ebulição vivida pelos últimos tempos no Brasil face aos novos ares vividos pelo novo Regime Republicano e o impacto tecnológico da modernidade, é que apresentamos aqui "Corpos socioculturais em conflito": uma contribuição historiográfica. Verificamos um distanciamento mais acentuado das camadas sociais envolvidas. Principalmente agora, contaminadas pela perigosa névoa do medo.
Dos velhos Senhores de Escravos a seus remanescentes atuais - muitos ainda podem ser vistos no poder com roupagem diferente, com as facilidades modernas do viver e conviver e as novidades dos modelos de vida movidos pelo signo da globalização. Podemos notar que muitas dessas facilidades já apresentam teor histórico, enquanto mudanças tecnológicas sempre vindas do exterior. O telefone, automóvel etc., na passagem do século XIX/XX, ganharam um desenho novo e ameaçador.
Contudo, não foram abandonadas as velhas praticas de comportamento oriundas da cultura escravista. Em alguns casos, chegam a fazer valer suas necessidades no mundo material. A permanência dos fortes sinais da prática referida é tão latente, que nos lembra ser um fruto da educação para a submissão, longeva em nosso país e de profundas raízes no nosso corpo cultural urbano, como podemos facilmente constatar.
Com relação a este segundo componente, nos sentimos convidados a lê-lo em corpo e alma no jogo de choques da construção da sociedade urbana como um todo. A nossa preocupação foi com as razões históricas de sua corporificação, introjetada na sociedade urbana como um diferencial sociocultural expresso pelos discursos, jargões, calões etc., e através dos quais podem ser lidos. Todos são reveladores em seu moderno desenhoverossímil.
O confronto, aparentemente, seria na direção do que se configurou como favela. Área geralmente habitada por excluídos sociais, com história solidificada nos velhos cortiços do império. A sociedade cidadãvê-se estupefatae amedrontadapor não ter cuidado com a propriedade merecida o desafiador quadro de inclusão social que se deveria operar.
Certamente escondiam, mas, agora, não mais. Seus choques, no que tange aos corpos socioculturais igualmente identitários e independentes, são notórios. Principalmente quando a cidade começa a viver o modelo da globalização e se beneficiar de suas vantagens tecnológicas. O medo que uma causa à outra é absolutamente paralisante. O que é claramente notado pela historiografia dos confrontos. Era e continua sendo capaz de nos surpreender o ethos, quase sempre visto como baderna. Alterando os sentidos e desmascarando o que o historiador esloveno Evgen Bavcar afirmou ser a maquiagem do conceito de cidadania,
"Para além das expressões que, a título de maquiagem conceitual, designam o corpo deficiente, prefiro lançar a hipótese de que o corpo deficiente apenas tem uma consciência do corpo um pouco mais aguda e um pouco mais dolorosa, sem poder dizê-lo, devido a toda a aparelhagem conceitual que impede essa mesma consciência de dizer sua própria visão da história. Se o corpo não pode dizer o que é, já está do lado dos vencidos do progresso, de todos aqueles que não participam de pleno direito do trabalho da história e que, em consequência, não podem escrevê-la. Os cronistas da história, os observadores documentaristas dos acontecimentos do passado, por exemplo, notam e inscrevem os acontecimentos do passado, por exemplo, que se destacam do comum, e o mesmo acontece com o direito à palavra, uma vez que a tradição oral não tem direito à escrita, senão lhe derem a possibilidade de se tornar também letra, como fez Braille no século XIX e o Abbé de Pépée, com a linguagem codificada dos gestos.
Por ter sido uma referência identitária do fluminense, tanto quanto do brasileiro urbano, a vida urbana da cidade do Rio de Janeiro merece um olhar crítico mais vertical. Capaz de traduzir os que não têm nem terão direito à palavra em seus novos, modernos e desafiadores contornos sociais nas camadas em que foram condenados. A população da cidade, componente importante do conjunto patrimonial da Históra Social do Brasil, nosso melhor espelho, foi por muito tempo a síntese da nacionalidade em dimensão e presença. Carregou até hoje a responsabilidade de se sustentar como espelho, síntese sóciocultural do País inteiro. Ostentou por aproximadamente 320 anos o peso de ser centro referencial político-administrativo e cultural dos nossos 505 anos de existência. Não se pode ficar impassível diante da síndrome do medo que há muito tempo de sua história recente ameaça desestabilizá-la. Será que fomos sempre uma sociedade de viventes à sombra da insegurança individual e coletiva?
Certamente, é inexorável que na era do conflito inclusão social (X) exclusão social, ou mimese (X) poiese, fique-se atropelado pelo crescente fenômeno da velocidade da informação globalizada. Sempre desorientando no que se refere ao institucional, gerou um tipo de capilaridade irradiadora que se fixou definitivamente e os identificou socialmente na história do tempo presente, sempre ao sabor do tempo, como foi o caso da cultura dos ex-escravos no Brasil fluminense. Contra a dos velhos escravistas, e é sobre ela que não nos ocupamos com o devido cuidado nos vinte primeiros anos de nossa vida de independência.
O mais surpreendente é que continuamos como se tudo estivesse plenamente resolvido. Cabe, então, ler seus principais conflitos, choques urbanos, ao menos suas principais razões, rancores, heranças, enfim, sinais da presença do velho corpo escravistano novo corpo pós-aboliçãoe pós-escravidãobrasileiro. Definitivamente, é fácil apontar seus resquícios simbólicos. colocamos agora, aqui, o compromisso de ler a luta até pela resistência sócioculturalno grande corpo social urbano fluminense, com o fito de desenhar a permanência da obra da escravidão, ou seja, permanência e resistência, como afirmou José do Patrocínio.
Sabemos que a infomotricidade de hoje comanda as ações humanas quase na totalidade de suas relações sociais e culturais. Hoje, o ciber-cidadão se impõe como uma exigência imperiosa, requisito indispensávelpara a inserçãono moderno mundo global. Porém, a nossa macrocefalia urbana multifacetada e a complexidade social dificultam tarefas eficazes em sua direção. Os desníveis de escolaridade, como consequência, as dificuldades de acesso ao emprego, qualificação profissional, estruturação e padronização familiar demonstram sempre a mais absoluta impossibilidade da realização desta tarefa, ou para não sermos tão radicais, dificultam-na bastante.
Claro está que urge uma eficiente releitura socialdo quadro que desenhamos. Mudou e, seguramente, precisa ser redescobertoem corpoe almade sua construção histórica social e cultural. Deve, para tanto, ser observado com maior acuidade, principalmente no nascedouro da Velha República.
Também, em um segundo momento, centrar-se no olhar das mais gritantes diferenças entre os citados relacionamentos dos corpos socioculturais que comportamos, privilegiando-os no espaço urbano em que se comprensaram na época. Exatamente onde foram desenhadas suas colisões, estratégias de subornos, etc.
Talvez, farsa de ambos, num balé Excelsior de conveniências, conivências, sempre em prol da história do bem viver de uma cidade surpreendentemente maravilhosa, pois, novidadeira. Que, paralisada, vê se agigantar o outro. Sem saber como estabelecer uma barreira ao seu indesejável e implacável avanço. Talvez também o mimético comportamento de violência da sociedade não-cidadã, igualmente paralisante, para uma sociedade dita cidadã, seja o gigantesco desafio a se enfrentar modernamente.
Para tanto, faz-se mister aqui estabelecer um elo entre as várias faces de nossa herança sócioinstitucional, ou seja, se possuidores de uma complexa, dissimulada e variada prática que lembrava, como lembra ainda, a escravidão, vivida por quase 400 anos, cuja durabilidade temporal, após Cristo, nenhum país apresentou em sua história. Uma catequese imperiosa de cidadania, esdruxulamente implantada e avessa, ou por isso mesmo, transplantada por uma Constituição Imperial, cuja durabilidadedo caráter centralizador, unitário, confirmava um poderfundado no célebre Pacto das Elites, apoderando-se de um Estado de eterno culto ao autoritarismo.
O hábito de imaginar uma naçãosem tê-la em totalidade nas mãos pelo Estado é grave! Enfim, um país que somente se encontra identitariamente na velha capital (Rio de Janeiro), síntese desse multifacetado quadro que assusta a qualquer olhar atento, leva qualquer pesquisador a privilegiar tal assunto.
Insistimos no fato de que uma leitura mais detida da História Social recente dos relacionamentos sociais dos viventes do espaço da exclusão social, no urbano da cidade, poderá esclarecer os elementos mais ocultos que alicerçam as razões que nos fazem abordar esse tema. Acreditamos que tal leitura possibilite a revelação de um corpo multiface capaz de contribuir na difícil tarefa de entendê-lo melhor, compreender a redução dos efeitos dos novos contornos que apresenta, e os complexos contornos sociais, com os quais se convive atualmente. Estamos convictos que, no campo da formação sóciocultural pós-abolição da escravatura, a cidade exige uma leitura mais verossímil de seu cotidiano recente.
Aqui nossa análise centra-se em História Social da Cultura, reiteradamente com um viés social, tomando como eixo de observação as relações sociais urbanas do Rio de Janeiro, cujo nascimento verificamos a configuração de uma cidade nascida a fórceps, porque cresceu espremida entre o mar e a montanha.
Portanto o Rio, cidade nascida a fórceps como dissemos, luta até hoje para ser a cidade do desejo de suas elites. É a Cidade Maravilhosa sonhada, mas, como se assim o fosse, escondeu, como agora esconde, uma Historia Social peculiar e de um igualmente singular quadro de injustiças sociais.
Focando o viés das enganosamente acomodadas relações sociais, guarda a construção do fenômeno da Capitalidade irradiadora . Foi capital do Brasil por 320 anos. É a única cidade da América Latina a ter expressão diferenciada de todas as outras coirmãs. A única capital que não teve e nem tem adversários intranacionais e tampouco extranacionais. É a única capital a saborear um forte processo de aceitação, admiração e assimilação por identificação entre a esmagadora maioria da população do território nacional.
Guardando-se as devidas proporções, ostenta ainda a condição de ser a convergência de todos os Brasis. Externamente, não enfrenta adversidades e oposições ferozes. É ainda a síntese do desejo e da identidade de um Brasil multicultural complexo, que somente se vê no espelho quando se reporta ao Rio de Janeiro. Muito de tudo isto se deve a história de irradiação comercial provocada pela velha condição de Capital Imperial e Nacional. Provocou e disparou com mais intensidade a interiorização da metrópole na época colonial das tropas e tropeiros, mascateando pelo sertão brasileiro, rumando para o interior do país. Levavam o modelo de sociedade daqui, construída e idealizada sob o signo da prosperidade, progresso e modernidade. Passava por suas terras grande parte desse revolucionário processo transformador do interior do Brasil. É inexorável a importância fluminense no cenário da construção identitária de sociedade e cidadania que praticávamos, cujos reflexos podem-se notar ainda.
Porém, também ainda sem rosto definido, pela efervescente ebulição de raças, ideologias, culturas, comportamentos e práticas, a sociedade fluminense lutou e luta ainda por uma identificação mais acabada. Ainda vive a urgência exigente de novas leituras sociais e culturais do seu todo social. Classificações tipológicas das práticas de relacionamentos sociais dos vários corpos sócioculturais produzidos no caldo de sua sociedade urbana moderna. O seu desenho polêmico, complexo, múltiplo e sua (re) leitura sempre revelam, como já tem revelado, um Brasil surpreendentemente novo.
Optamos por usar a lente do urbano, para direcionar o foco de nossas observações nos revolucionários hábitos sociais, costumes, comportamentos, manifestações culturais e, principalmente, relações políticas dos excluídos sociais, que afloraram e se cristalizaram como prática e reflexo da violência da cidade do medo nas várias faces que se apresentam nessa passagem do século XX para o início XXI. Antes corpos calados, hoje, presença marcante no cenário urbano da cidade, introjetada na sociedade dos incluídos, representam um componente desestabilizador da ordem social.
O medo é uma arma poderosa pela possibilidade de causar paralisia social, engessamento da iniciativa de respostade qualquer cidadão. Afeta a psique de quem quer que seja, individual ou coletiva. Hoje não causa apenas temor, que pode provocar diferentemente do anterior, uma ação de resposta/defesa. A situação do conflito que se nos apresenta os corpos em disputa é de evidenciar o primeiro, o excluído social. Daí sua gravidade e urgência de leitura, pois o menor sussurro pode ser ouvido, apesar dos desertos. Quando se diz a verdade!
O corpo calado, aqui tem a marca dos estranhos costumes dos supostamente dominados, os excluídos sociais. A abordagem tradicional, em muitos aspectos, não percebeu que se constituía um universo de barbárie social no urbano da cidade. Devemos deixar claro que não se trata apenas de cuidar da cansada dialética dos vencidos e do fanatismo vitorioso dos vencedores. Queremos ver mais, porque é necessário ver mais!
Conceitos recentes, como o de corpo calado e espaço sagrado ganham uma inovação independente do seu uso por outros pesquisadores em trabalhos anteriores. Ela está em aplicá-los a vencedores e vencidos, conquistadores e conquistados, cortiço, ou favela e condomínios de luxo. Comparando ambos no que tinham e agora apresentam em comum e, ainda no que possuíam de particular, compor um quadro amplo, significativo e o mais completo possível de suas relações, tomando como pano de fundo uma cidade lusófona, afrófona e indígena da construção histórica refletida no que há de recente na cidade.
A partir da visão ideológica da questão, na qual as fórmulas mentais que orientam a atuação dos principais protagonistas da história julgam ser capazes de assumir o comando e a orientação da análise, constituindo-se fio condutor da nossa narrativa última. O destaque deste aspecto aparece explícito no título do presente projeto. Acreditamos também que funcione mais como um alerta quanto à ênfase adotada em primeiro plano e não quanto à sua exclusividade. Diante disso, pretendemos assumir uma visão integrativa do problema do desafio de desenhar os corpos em conflito, no qual as unidades constitutivas do tema superam o cansado particularismo da análise puramente cartesiana.
Buscaremos discorrer da forma o mais claro e incisivo possível sobre os conceitos empregados no interior do todo social complexo dos dois corpos. Expô-los continuadamente ao longo de sua construção. Acreditamos que não se tratam somente de dois corpos distintos, separados até então por um oceano físico e ideológico, mas de dois conjuntos sociais que podem se identificar por conceitos gentílicos de origens diferenciadas. Que compartilham, em muitíssimos aspectos, de formas similares de encarar o outro assim como a natureza circundante. Portanto, centramos nossa análise nos dois pontos já referidos, utilizando-os como elemento organizador. Buscaremos construir um mundo de conflitos ede realizações na criação e identificação de nova e complexa sociedade urbana do Rio de Janeiro, anestesiada pela síndrome do medo da violência em que está mergulhada.
Para tanto, não podemos esquecer que a história da construção da cidade oficial, apesar da identidade conhecida, europeizada, é dividida hoje em um conjunto de supostos micro Estados cujo território é defendido pelas armas de um exército não oficial. E ela somente se deu conta disto recentemente. Fato que se deve a seu caráter contemplativo, voltado para discutir todos os problemas externos. E pelo hábito herdado do comportamento cultural do Pacto das Elites, tradicionalmente estabelecido no país desde longa história.
Assim, observar que em ambos formavam-se uma organização multicentralizadora de poderes violentos, ainda que baseada em gêneses diferenciadas, é fundamental. A convergência não se reduz ao movimento similar da esfera político-administrativa interna. Ambas se baseiam, também, no papel exercido pela conquista de territórios. Território do morro e da malandragem que os policiais que os combatem chamam de alemão. Vistos como de fundamental importância para a sobrevivência de seu Estado (corpo calado), ainda que, no caso especial, aqueles assumiam papéis variados nas relações sociais com os conquistadores. Eles convivem, ou lutam? Seria essa guerra o agente efetivo de aglutinação de poder e a religião afro-brasileira a incentivadora do processo de sua identificação, ou seja, a mantenedora dos resultados por sua dupla face de ritos e prática de fé? Cremos que aqui reside o principal elemento de disparidade, pois a tecnologia de produção, vinculada aos objetivos a serem alcançados, se materializa, ou se exclue de forma diferenciada, explicando em parte o sucesso dos cidadãos urbanos formais.
Os cidadãos formais entendiam e entendem a territorialidade do espaço dos povos como a submissão completa ao Estado dominante, ou seja, o deles. Com a imposição de suas leis, língua, hábitos e costumes. A catequese da ordem era e é a única reconhecidamente capaz de tornar o dominado um ser integrado, aceitável, tolerável ao novo sistema de vida que sempre lhe impunha e impõe. Desenvolvidos, era este o presente e o resultado do conjunto das partes, cada qual desempenhando um papel segundo a sua importância. Neste mundo organizado conforme valores hierarquizados, o outro, vencido e conquistado, ocuparia um lugar subalterno e desprezado como excluídos sociais, ou seja, talvez, os eliminados sociais , cuja história se encontra nos escombros abandonados que não valem a pena olhar, pois atrasa o objetivo maior que é o progresso.
Supomos que estas diferenciações quase que se anulam durante o confronto no qual valores e conceitos mais amplos se impõem e, de alguma forma, permanecem dentro do desafiador mundo novo que se forma hoje na cidade.
O sagrado talvez signifique o poder e a posse, a consagração do espaço recém-conquistado, simbolize a transformação do caos em cosmos, pelo ritual divino da cosmogonia. Possivelmente, o dominador acabe por comemorar falsas conquistas. A cosmovisão que, pautada pelo sagrado numa relação intrínseca com os deuses afro-descendentes, cosmogoniza o território ao conquistá-lo, repetindo os atos divinos que organizavam o suposto caos, espaço dos esquecidos. Dava-lhe estrutura, normas e formas marcadas sempre pelo poder tirânico da violência causadora do medo. E este, como dissemos, paralisa, engessa, imobiliza e faz refém as almas dos dominados, composta por um batalhão de despossuídos nas favelas, como foram no passado os antigos cortiços da cidade do Rio de Janeiro. Eles, possivelmente, estão assim pela absoluta ausência do Estado formal. Dessa maneira, os Corpos deficientes mereçam atenção e constituam algo realmente especial. Pois refletem sempre o retrato do temor do conflito e não do medo. Seriam aqueles que vivem nas favelas que mais sofrem a síndrome do medo. Como afirma o historiador Bavcar:
O direito à palavra deve então existir para todos os que, de um modo ou de outro, representam uma consciência do corpo diferente, reconhecida ou velada, evidente ou dissimulada, mas, seja como for, um saber reconhecido pelas instituições, pelas mentalidades e pela terminologia contemporânea.
Sabemos que ocupam espaços sagrados distintos, aproximam-se pelas suas concepções mentais religiosas e fanáticas, mas só não tem direito a palavra. São tolhidos pelo preconceito do outro.
Possivelmente, diferenciem-se nas suas representações, confundam-se nos seus rituais. Assim, a delimitação contextual torna-se necessária para evitar as generalizações.
A partir das constatações das analogias das concepções mentais entre um e outro, em relação à construção dos seus espaços sagrados, procuraremos estabelecer as questões relativas à alteridade, ao etnocentrismo, evangelização, sincretismo e resistência. Michel Certau embasa e dispara o nosso reexaminar para além dos códigos, gírias e jargões utilizados pelo outro. Sabemos que a complexidade deste tipo de análise residiu nas circunstâncias dos objetos a serem estudados. Representações simbólicas que foram interpretadas pela historiografia social de acordo com os paradigmas quase sempre eurocêntricos acolheu os espectros do outro sob a condição de se calarem para sempre, mas não se calaram, como vemos.
Certamente, interpretar pela ótica etnocêntrica, muitas vezes não apreendendo aquilo que o outro fez, é inquietante. Trata-se, sim, daquilo que consideramos que fosse o real, o que, para os da sociedade formal, constitui o inteligível, pois a inteligibilidade se instaura numa relação com o outro, desloca-se modificando aquilo que faz seu outro, não considerando o outro do imaginário. Segundo Certeau, nesse contexto é que se situou a complexidade do saber dizer a respeito daquilo que o outro cala. Apesar de o outro consistir no fantasma da historiografia, a produção historiográfica que nos foi legada representará um acervo valioso para recuperar a história das sociedades em conflito no urbano da cidade do Rio de Janeiro para inserção em um mundo complexo da globalização.
Os procedimentos utilizados para a análise das fontes e do reexame de suas representações reinterpretam o não-dito, o oculto nos documentos dos que não têm direito à palavra (História Social Oral), o que é indispensável. Na historiografia oficial, o conhecimento do outro pode ser captado com aquilo que excluiu, criando assim um espaço próprio e que encontrou sua segurança nos dados que se extrai do dominado. Constrói-se o saber sobre o outro e a compreensão do seu passado.
O querer saberou querer dominar o corpo transformou a tradição recebida em texto produzido sem escrita, que não se interessou por uma verdade escondida que será necessária encontrar. O corpo se revelará, supomos, como um código que aguarda ser decifrado. Por esse motivo, o corpo excluído torna-se o objeto da nossa análise.
Segundo Michel Foucault o corpo se converte em extensão, em interioridade aberta, em cadáver-mundo exposto ao olhar. O corpo visto transforma-se em corpo sabido e as heterologias se constroem em função da separação entre o saber que contém o discurso e o corpo-mundo que o sustenta.
Todorov analisou o corpo que cala, o outro como uma tipologia para tratar a alteridade. Destacou três planos fundamentais para se compreender essa problemática: axiológico, o paraxiológico e o epistêmico. Eles precisam também de nova leitura, uma vez que todos estão envolvidos em um mundo marcado pelo grande conflito mundial da globalização, ou seja: a falta de diálogo entre as globalizações locais e as localizações globais . O primeiro, quando se faz um julgamento de valor; o segundo, por meio de uma ação de aproximação ou de distanciamento, adotando seus valores, identificando-se com o outro ou então lhe impondo submissão; e o último quando se conhece ou ignora a identidade do outro. Embora haja uma interligação entre os três, não significa que possam se reduzir um ao outro.
Sabemos que a historiografia europeia não reconhece a alteridade. Os dominados foram tratados como inferiores. Osseus valores culturais ignorados e a política, empenharam-se em assimilá-los aos princípios cristãos. Porém, aqui se vivia a liberdade do abandono por um momento e o dilema da lei do império tanto quanto o império da lei em um jogo de poder do clube do Pacto das Elites.
Todorov destacou, como o mais importante, a ideia de divindade; a religiosidade, e não a religião, permitiu uma nova discussão sobre a alteridade e o etnocentrismo, por isto os corpos ganham em complexidade em suas leituras de conflitos. Segundo ele, a igualdade não se estabeleceu à custa da identidade, pois cada um tem o direito de se aproximar de Deus pelo caminho que lhe convier . Isto nos permite lê-los com mais independência, pois podemos suspeitar que se apropriem de seu Deus fazendo dele um instrumento da luta territorialista no cotidiano da cidade. Evidenciam uma nova relatividade da noção de barbárie.
Os estudos da etno-história e da arqueologia, sobretudo os de Alfredo Austin, Nagel M. Garibay e Pina-Chan, entre outros especialistas, sobre a escrita e a língua, apresentaram excelentes resultados para maior compreensão dessa sociedade. Nosso propósito é reconstituir as concepções mentais dos dois corpos.
Mikhail Bakhtin, em sua obra sobre Rabelais, revelou a visão do mundo elaborada no correr do século pela cultura popular que se contrapõe, sobretudo na Idade Média, ao dogmatismo da cultura das classes dominantes. Esses dados nos levam a inferir, como Bakhtin, que temos por um lado, dicotomia cultural, mas por outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente intensa na primeira metade do século XVI. Sabemos que, segundo Carlo Guinsburg, o que tem caracterizado os estudos da história dasmentalidades no campo de observação cultural do corpo é a insistência nos elementos inertes, obscuros e inconscientes de uma determinada visão de mundo, mas, hoje, a maior violência é a inexorável necessidade de se globalizar. Diz ele que as sobrevivências, os arcaísmos, a afetividade e a irracionalidade da violência delimitam o campo específico da história das mentalidades, distinguindo-a com clareza de disciplinas paralelas e hoje consolidadas como História das Ideias. Ideias que distinguirão a centralidade inexorável da pesquisa que o presente trabalho propõe aqui.
II- "Corpo, espelho partido da história": uma abordagem de sua multiplicidade.
... o corpo pregado ao pelourinho servia também à justiça, e de desculpa a todos os que desejavam humilhar o próximo, obter algum favor ou atestado de bom comportamento. O corpo mutilado, exposto em praça pública, visava suscitar a piedade, mas também servia de apelo à caridade. É necessário lembrar que frequentemente o "corpo ferido", diferente demais, servia para divertir (os anões da corte de Pedro, o Grande). Não esqueçamos também os negros mutilados, os eunucos negros do serralho, que, como espelhos da feiura, não só guardavam as mulheres do harém, mas, devido ao físico repugnante, exaltavam até o limite a imagem sublime, inigualável, do sultão ou do grão-mogol. Desde a Antiguidade, sob os regimes tirânicos, o corpo sofredor também representou a punição de todos os que não se submetiam ao poder. Nos corpos, o traço das torturas exemplares assinalava a dupla marca do mestre sobre os subalternos, isto é, a posse absoluta do corpo de outrem e de sua vida.
Continua o citado autor:
Narrativas sem conta ... de tortura do corpo exercida pelo poder revelam qual é a visão da vida do torturador; o mesmo se diga da marca, poderíamos dizer da tatuagem, que o mestre imprime na pele daquele cujo dever é apenas prolongar os caprichos da vontade do mestre. A frase de ARISTÓTELES: "O escravo deve fazer o que pensa o mestre" significa que o corpo do escravo não passa do reflexo mecânico do pensamento do mestre e substituto do corpo deste último para as tarefas ingratas que ele mesmo não quer executar.
Temos de fato uma verdadeira revolução quanto ao enfrentamento da vida cotidiana. Maléfico, mas com seus significantes. O século XX apresentou sinais de um trágico resultado para uma sociedade que ainda não apresentou sua verdadeira face em termos uniformes. É a verdadeira industrialização da morte como afirma:
A industrialização da morte no século XX foi uma tentativa para se desembaraçar do corpo testemunha da barbárie; nessa perspectiva, o forno crematório representa o apagamento absoluto do processo da morte em massa ....
O corpo no século XX também apresenta um problema muito complexo, em cuja topologia podemos desvelar os traços da história, os meandros dos totalitarismos e principalmente um aspecto escondido da história escrita in vivo...
... mesmo analisando as guerras, as ideologias, e tudo o que, na minha pátria eslovena, constituía material de destruição dos corpos.
Com essas jovens vítimas, imprimiram-se em mim imagens que me fizeram compreender o que significa o Olhar de Medusa,encarnado hoje nas invenções tecnológicas...
Na nossa defesa do olhar como expressão do corpo, referimo-nos sempre ao olhar redentor de Perseu e sempre nos lembraremos da visão mortal das Górgonas, que, no nosso tempo, se tornaram cada vez mais abstratas e mais perigosas...
Às vezes o próprio corpo não é mais do que a prótese de uma falsa moral que se recusa a arremessar contra os rochedos os filhos inaptos para a vida, com a radicalidade espartana.
O olhar considerado como um dos emblemas mais bem reconhecidos da civilização ocidental suscita problemas que me surgiram no curso de minhas pesquisas de estética e fotografia.
Ulisses é então o protótipo do olhar bidimensional que predomina na história da nossa civilização e caracteriza a Modernidade. O olhar tridimensional, o de Édipo ou de Tirésias, portanto, a visão que caracteriza o terceiro olho, só pertence aos cegos e a todos aqueles que aceitam a cegueira como a única possibilidade, no sentido da verdade tridimensional do mundo. O olhar em três dimensões é o do corpo que, por isso mesmo, confirma sua extensão no espaço e, pela gênese do seu olhar, também o ponto zero sempre renovado no universo.
Merleau-Ponty considera o corpo como um todo social, algo aberto, ou seja, uma forma de ponto de partida no espaço. Aqui traduzimos como o corpo dos pós-escravos, ou seja, aqueles que viveram as agruras da escravidão sendo incluídos como algo que representava simplesmente, o que confundiu a academia a ponto de tratarem como coisa. Ora, convenhamos, gente definitivamente não é coisa, algo inanimado, sem vida. Diz ainda o citado autor sobre o que afirma ser um espelho partido da história buscando no que considera ser uma arqueologia do olhar:
A arqueologia do olhar nos permite também compreender a ideia do corpo como espelho partido da história, mesmo fazendo abstrações da visão física. O corpo não arranca os olhos apenas para dizer sua alma, mas também para olhar para trás, para as trevas do olvido, lá onde as figuras míticas sacrificadas começavam a aprendizagem do olhar humano. O corpo torna-se assim, ao mesmo tempo, o espelho e aquele que observa, a visão e seu reflexo, isto é,o Eu sabendo-se visto, tanto como o Eu não se sabendo visto, que procedem da mesma experiência do olhar corporal. É por isso que, de acordo com Merleau-Ponty, tenho de não considerar o corpo como 'totalidade aberta' e o ponto zero do espaço.
Muitas vezes é fácil dizer que, se alguém perde um sentido como o ouvido e a vista, os outros sentidos se fortalecem, sem se considerar que o que importa é o coordenador supremo, isto é, o cérebro, que tenta encontrar substitutos para a percepção física deficiente. Não é preciso dizer que essa sobrevida dos sentidos não seria possível sem a complexidade do corpo. O substituto material de nossa espiritualidade torna-se assim a muralha contra todos os assaltos que nos ameaçam, e a linha de defesa mais eficaz contra a destruição do corpo e sua desaparição. De maneira mais simples, pode-se dizer que nosso corpo, nos seus infinitos refúgios, pode abrigar o sentido que falta... o exílio da vista.
... Vivemos pelo nosso corpo na obscuridade do momento vivido, como diria Ernst Bloch; mas talvez graças a isso possamos superar a condição humana e contar com a nossa utopia mais concreta, a do corpo...É opondo nosso corpo às agressões exteriores que defendemos a consciência de ser. A desaparição do corpo no século XX parece tanto mais grave quanto não podemos sequer suspeitar da existência do substrato material tornado cinza, coisa em que Giuseppe Fiorelli podia acreditar - Fiorelli, o célebre arqueólogo de Pompeia, que preencheu os vazios deixados na cinza pelos corpos calcinados para assim lhe conservar volume e forma.
Completando, o Bavcar afirma ser então um corpo deficiente. É insinuante, mas pode ser visto em nossas favelas, antigos mocambos dos nossos escombros sociais. O autor conclui:
... Os deficientes representam muitas vezes a parte doente da história, uma espécie de Terceiro Mundo no Primeiro ou no Segundo Mundo, talvez mesmo um Quarto Mundo em nossos países ditos civilizados e industrializados.É indispensáveis ressituar o problema do corpo no seu contexto histórico e tentar chamar as vítimas ao menos pelos seus verdadeiros nomes. Se ousamos dizer "inválidos da guerra", por que não deveríamos usar expressões como "inválidos do progresso" ou "inválidos da industrialização, da alimentação", em vez de "vítimas da fome?"
Acreditamos que o entendimento de nossas diferenças e identidades multifaces ao longo da construção histórico-social ajudará no esclarecimento e entendimento de nossa múltipla e complexa formação como corpo social recente. O Rio de Janeiro, como lente-eixo do presente trabalho, éa cara dos nossos vários brasis, como afirma Carlos Lessa.
Nacionalmente, o Rio é configurado como o grande conversor cultural nacional. É onde todo o Brasil se acha, se confraterniza e também entra em conflito. O Rio de Janeiro, assim como a Região Sudeste, vive o conflito da síntese sóciocultural nacional, respira-o. Temos uma lusofonia especial que merece cuidado, porque é ampla, gigantesca. Olhar a História Sócio-Regional do Brasil, focando principalmente o Rio de Janeiro é, antes de tudo, privilegiar o filão mais significativo de nossa identidade ainda não totalmente definida, não esclarecida. É olhar um corpo ou quem sabe corpos certamente de perfil e de substância inebriante, múltipla e complexa, tanto quanto conflituosos.
O convite que fazemos para juntos pensarmos e construirmos um severo e, o mais assertivo perfil possível da história fluminense, que seja capaz de desnudar suas diferenças, choques, somas, subtrações, para evidenciar a força da diferença aqui sabemos ser também um audacioso desafio para aqueles que querem produzir algo de qualidade única, verdadeiramente sine qua non.
Produzir algo com a marca da diferença e da novidade. Afirmamos que tal diferença e marca está latente no desafio do olhar crítico, verdadeiramente científico, o qual tanto faz falta à academia nos dias atuais.
Não haverá mais espaços para produzir uma simples mimese e jogá-la no mercado impunemente. Não se deseja manter o mórbido e enfadonho quadro de produção historiográfica que caminha em ritmo absolutamente lento e repetitivo, ou que paradoxalmente se contraponha a um tempo de combinações estranhas e desafiadoras, temos que ter mais audácia nas nossas pesquisas, valendo-nos, é claro, de combinações surpreendentes como a prudência diante da extrema velocidade de nosso passado século XX. Sabemos que as exigências de um mundo que se globaliza são maiores e mais surpreendentes. Mimetismo, definitivamente, não é o nosso desejo incentivar nem tampouco faz o nosso feitio de produzir história.
O presente dentro do citado século sempre nos desafiou enquanto historiadores. Fez nascer um compromisso novo e audacioso de busca de qualidade acadêmica na produção científica em todos os sentidos, ou seja, o pesquisador-docente, discente, assim como também se valendo da avalanche causada pela tecnologia nos tempos presentes é alguém definitivamente desafiado. É preocupado e incomodado com uma história que não "ousa", e que não aprofunda conhecimentos, que não questiona e que não tem compromisso com as várias faces da veracidade, ou que vive ainda a procurar apenas a face absoluta de uma verdade como se houvesse certamente se surpreenderá. O olhar científico abraça uma variedade de outros olhares, todos ou quase todos se rendem, ou tem se rendido ou se resumem aos enfoques e interpretações, correntes, linhas de abordagens, acreditam ainda apenas e unicamente nan verdade absoluta. Uma produção histórica comprometida com velhos métodos de pesquisa fundada no sonho das certezas absolutas. Estamos convidando você para levar os alunos a uma "produção científica", jamais para uma reprodução. Não é por acaso que estamos lhe integrando à equipe dos que pensam assim. Queremos que você não se contente com a reprodução. Por tudo isso, venha pensar e construir conosco novos vieses.
III - Uma história de controle e confrontos: os novos paradigmas e sua inserção na realidade vivencianda da moderna multicultura brasileira.
La Nature est um temple ou de vivants piliers.
Latssent parfois sortir de confusos paroles (...)
Observando sob a ótica do professor Boaventura de Souza Santos, podemos afirmar que os avanços apresentados na produção científica da história das "humanidades" no tempo presente significou um sério e explosivo processo de mutabilidade nunca visto pela sociedade pós-industrial.
Os tempos modernos foram, até aqui, importantes testemunhas de rápidas e revolucionárias mudanças em todos os sentidos. Para algumas pessoas dos países do "velho mundo", ainda hoje as mudanças causam estranheza; bem como alguns sequer tomaram conhecimento da sua importância como participantes do convulsionado processo. A própria ciência acostumada a conjugar produção/reprodução, como já dissemos, sempre marcada por um cauteloso olhar crítico, também foi abalada.
Como circunstâncias do momento, muitas vezes a humanidade no planeta se descobriu envolvida e desafiada pelas mudanças que assistimos na virada do milênio. Temas novos e problemáticos sinais como o equilíbrio ecológico, cuja complexidade exigirá ainda de todos nós um esforço jamais experimentado pela ciência para ser dominado. O avanço tecnológico foi responsável por abalos no universo do saber ao inserir novas ferramentas como infomotricidade e infotecnologia, sempre acompanhadas de surpreendentes novidades no campo da produção científica. Uma delas, o infobjeto, assusta sempre todo projetista que pauta seu comportamento de verificação no velho objeto. Tudo porque o primeiro, apresenta-se mais dinâmico em cuja face, ou faces, podemos notar mutabilidades variadas em um tempo marcado por um tipo de velocidade, cujo desenho ainda não construímos, apenas chamamos de just in time, ou tempo real.
A discussão alicerçada na metafísica da globalização, que se cristaliza no novo modelo de olhar filosófico conhecido como "holístico", garantiu substância, estranheza e complexidade para o mundo científico. Muitos ainda estão paralizados como se estivessem presos a velhas novidades.
O cartesianismocomo forma de pensamento passou a ser um elemento acessório na nova batalha para deslindar o curioso, complexo e, às vezes, ambíguo e paradoxal universo que se apresenta de forma desafiadora.
Encontramos-nos imobilizados, em um misto de frenesi, frisson e sofreguidão com relação ao futuro que anunciava as rápidas e sempre novidadeiras invenções. O deslocamento de corpos concretos e imaginários sem se sair do lugar através do fenômeno da infomotricidade tanto fascinou quanto assusta hoje a todos. Era surpreendente o que a Revolução Tecnológica dos anos cinquenta anunciou para o futuro da humanidade até a virada do milênio.
As possibilidades crescentes de avanços garantidos pelas descobertas da infotecnologia comprometeram, surpreenderam e abalaram velhas senhoras do universo conceitual. Soberanas e alicerçadas no campo científico, quase sempre cartesiano de pensamento, elas se viram concretamente ameaçadas, envoltas em um misto de encanto/desencanto. Os reboliços foram gigantescos nos campos de saberes diversos, notórios principalmente na Física Quântica e na Matemática Aplicada. As novas luzeslançadas no século XVII entravam em processo de franco esgotamento, cedendo espaço a um novo modo de enfrentar a vida. Repensar a ciência e sua produção fazia-se necessário.
As humanidades passaram a ser priorizadas como afirmou Isaiah Berlin. A natureza começou a passar por um grave processo de revisão em seus vários compartimentos e maneirismos de percepção, sempre marcados por modelos e lentes maniqueístas, simplórias. Da
Universidade de Coímbra, Boaventura de Souza Santos acenou para um novo paradigma que insinuava novidades para a produção científica mundial. Da Universidade Portugalense e da Universidade do Minho saíam o trabalho Ponto de Arquimedes: Natureza Humana, Direito Natural, Direitos Humanos . O pesquisador Paulo Ferreira da Cunha punha à prova de maneira brilhante, segundo meu ponto de vista, e intrigante a histórica opção por verificar a existência do embate: Natureza humana versus Natureza Animal. Convidando-nos a discutir se realmente havia uma natureza humana que logicamente pressupunha a admissão de sua existência. Punha em cheque o pensamento único, garantido pela tirania de seu espírito.
Ou o chamado dique da anomia social,afirmava o citado autor, cederia logo ao romântico apelo ecologista, ou seria o fim absoluto pela incapacidade de conceituar, ou seja, criar ferramentas para seguir em frente com qualquer construção teórica, produção científica, modelo, método, arquitetura, categorial sistêmico e outros. A ideia de modelo, tradicional, crível, estava ferida de morte pelo surgimento do imponderável como um elemento indefinível, ao menos naquele tempo, mas que influía em tudo; ao tempo que imponente, inebriava os que se atreviam tentar tocá-lo. A virada do milênio trouxe a complexidade como companhia da prática vivencianda cotidiana.
Ora, sabemos que, para a explicação da existência de uma natureza humana, faz-se necessário a existência de uma natureza geral. É necessário o desvendamento das suas conexões, que dariam sentido a uma ordem do mundo, seja no sentido de natureza das coisas ou qualquer outra. O elogio ao humano e a sua prevalência sobre o animal, com diferenças específicas como: racionalidade, religiosidade, arte e a própria sociabilidade, encontrava-se como ainda se encontra em profunda crise. Revelava então a fragilidade do nosso sôfrego corpo, marcado pelo mundo das certezas, abalado pela presença do intracorpo que se expunha. Hoje a Natureza Natural contrapõe-se à Natureza Artificial de maneira intrigante, jocosa, radical e perigosamente surpreendente. Nos dizeres de Clemént Rousset, podemos verificar a efervescente polêmica que gerou até aqui:
(...) Por isso, a única forma de verdadeiramente contrariar essa natureza (que volta a galope, como diz o aforismo francês) é estigmatizá-la e anulá-la, já que o naturalismo conservador seria uma mística de falsificação, o naturalismo perverso uma mística de transgressão, e o próprio naturalismo revolucionário uma mística de repressão.
A classificação que a epistemologia encontrou, assim como as implicações ético-jurídicas que tal questão nos impõe, possui significado e relevância impar. Merece ser tratada com o devido cuidado e respeito. Cultura, poder, controle, dentre outros, são componentes que carecem hoje de releitura a partir de sua redescoberta na passagem do século XX/XXI.
Qualquer decisão que se tome promoverá inexoravelmente grande influência sobre tudo o que se diga no campo das ciências. A partir dela, a lei natural, regra superior da ação humana, que sempre determinou comportamentos de acordo com nossa natureza, em contumaz conformidade com a das coisas, respeitando seu seres e fins, como afirmava Chorão, fica agora carecendo de profunda revisão.
Assim, a natureza fica por ser (re) definida novamente. E, por consequência, quando falamos nela, três visões aparecem. A primeira, diz respeito ao fato do que significa o existir de uma paisagem, como que axiologicamente indiferente pano de fundo ou mesmo um inócuo elemento de diálogo com o Homem. Inócuo, provavelmente, por ser do diálogo dos símbolos, inaudíveis aos que privilegiam o concreto, mecânico e funcional/prático da ação humana. A segunda é a natureza da seleção, da lei do mais forte, ou seja, a lei da barbárie presente entre nós ainda, insinuante nas nossas mais vulgares contendas e ações. A terceira, finalmente, a que afirma ser uma natureza estilizada, que estilizamos e culturalizamos, e na qual vemos o arquétipo da civilização e dos valores que assim nos parece ser. Fala-se que o "devir" do "ser" é uma falácia naturalística, que seus valores não se podem extrair da simples realidade natural. Ora, o homem não é ainda o Homem, tem que se tornar no que é, como diria Píndaro. Por isso mesmo, não adianta procurar no homem antropológico, ou no homem sociológico, o homem em sua real essência, ou sua real natureza.
Faz-se necessário reiterar que sempre se poderá dizer que o homem científico tomou uma atitude ou formou a sua personalidade contrária à natureza. Pelo menos, nessa perspectiva da natureza, não se pode falar da falácia naturalista; mas sim, questionar um conceito de natureza que certamente será considerado extremamente culturalizador e/ou ideologizador, ou ainda teologizador. Feliz ou infelizmente, temos que admitir que a virtude ainda está no meio e ele é também idealizado. É grave o problema que tratamos aqui, pois com o fim da Natureza Humana decorrerá a impossibilidade de um Estado de Direito Natural. É aí que o problema se agrava mais!
Está claro que estamos diante do fato de enfrentar um grandioso desafio. A Globalização e seus avassaladores sinais inexoráveis de existências e necessidades apontam-nos uma complexa encruzilhada. Como diriam os franceses: Que faire? Qual decisão tomar? Que caminho seguir? São perguntas que devem ser respondidas imediatamente no mundo em que vivemos. Não podemos ficar contemplativos diante do embate violento entre a Natureza Natural e a Artificial, diante de uma realidade social como a que vivenciamos, envolta em estranhos desafios. Grandes mudanças são apontadas no campo da relação entre ciência e cultura que tornam significativos nossos avanços na desafiadora presença da complexidade. As novidades apresentam-nos quatro novos paradigmas que combinam, ou pelo menos tentam combinar, ciência e cultura na natureza, no tempo presente, como podemos ver no organograma abaixo, que montamos.
Trata-se, portanto, de uma nova maneira de observar o tempo presente cientificamente. Um novo jeito, ou mesmo um novo ethos para, acreditamos, fazer ciência em história social. A história do tempo presente, como sabemos, convive com um novo e intrincado problema quando procura tocar adiante o grande desafio de decodificar o projeto de globalização da nossa pós-modernidade para cá.
Nota-se que existe um profundo esgotamento das reflexões em torno da questão. O'multiculturalismo' , dentre outros, representa um grande desafio moderno à citada nova empreitada dos viventes e conviventes. Como podemos verificar, não se pode mais ocultar a importância das quatro galerias temáticas no curso da produção científica mundial.
O Brasil, particularmente, vem sendo indicado como uma grande saída para os impasses vivenciados. Ora, sabemos que somos uma sociedade em que o híbrido representa sua marca maior. O caráter patriarcal de nossa formação cultural, apesar de viver uma crise em face de liberação/revolução sexual atingida no nosso tempo/mundo moderno e globalizante, ainda é forte e aparentemente até aqui inabalável em curto prazo. Verificar nossa sociedade é, antes de tudo, um exercício fundamental para que possamos nos entender plenamente.
Apresentar o Brasil ao mundo como exemplo de solução dos impasses da globalização nos parece uma grande irresponsabilidade científica ou total desconhecimento de nossa 'realidade vivencianda'. É atribuir-nos uma responsabilidade que não estamos capacitados para suportar.
Vale alertar para a necessidade de verificar a nossa realidade social pela ótica das quatro grandes galerias temáticas citadas, para que sejamos compreendidos de maneira mais completa. Todo cuidado será sempre pouco para se observar o momento em que vivemos. Não se pode esquecer que todo o conhecimento científico-cultural é científico-social; todo o conhecimento é local e total; todo o conhecimento é, acima de tudo, um autoconhecimento e, finalmente, todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum. No Brasil, o nosso maior problema é de cultura, ou seja, na base somos principalmente multiculturais, isso dentre os vários outros problemas que temos. Sabemos que tudo designa a coexistência de formas culturais ou de grupos, quem sabe corpos caracterizados por culturas diferentes no seio de nossas sociedades modernas, ou modernosas. Rapidamente o termo parece se tornar um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global.
Ora, segundo Boaventura de Souza Santos, cultura tem como ideia central a substância, o fato de estar associada a um dos campos do saber institucionalizado no Ocidente, as humanidades definidas como repositório do que de melhor foi pensado e produzido pela humanidade. A cultura é baseada em critério de valor estético, moral ou cognitivo que, definindo-se a si própria como universal elide a diferença cultural ou a espacialidade histórica dos objetos que classifica. O cânone é a expressão por excelência desta concepção de cultura, estabelecendo os critérios de seleção e as listas de objetos especialmente valorizados como patrimônio cultural universal, em áreas como a literatura, as artes, a música, a filosofia, a religião ou as ciências.
Assim, reconhecer a pluralidade de culturas, definindo-as como totalidade complexas que se confundem com a sociedade oficial, permite caracterizar modos de vida baseados em condições materiais e simbólicas. E os símbolos falam, dialogam entre si como veremos mais adiante na fábula da entologia entre o formigueiro chamado Mary e o Tamanduá. Nela fica patente a possibilidade de perceber o referido diálogo, o qual não pode ser percebido pela visão mecanicista do pensamento cartesiano. Este passaria a ser apenas um dos componentes de uma mecânica mais complexa que não percebemos, não enxergamos com as lentes da ciência que praticamos. Douglas Hofstadter apresenta uma fábula da entologia que surpreendentemente nos faz pensar.
Vem bamboleando o tamanduá numa bela manhã, quando se encontra com o formigueiro chamado Mary. E o formigueiro chamado Mary diz assim para o tamanduá: "Bom dia, tamanduá, você não gostaria de tomar um café da manhã feito de algumas das minhas formigas mais gordas e suculentas?". O tamanduá, encantado com o convite tão gentil do formigueiro chamado Mary, apressa-se em saborear aquelas formigas deliciosas e, quando enfim está satisfeito e se afasta, o formigueiro chamado Mary se despede dele dizendo: "Obrigado, tamanduá, volte sempre".
Ora, o formigueiro fala?
O formigueiro fala!
O diálogo que apresentamos acima pode assustar, mas, existe. Representa quase que graficamente o movimento do todo holístico em superar a soma das partes e até manipulá-la. Nos mostra como surpreendentemente o rabo é capaz de balançar o cachorro. São razões que a própria razão desconhece, como dizia o poeta popular. Certamente, são razões que explicam mundos diferentes, diversos, de sociedades paralelas, talvez, mas que convivem independentemente como corpos absolutamente legíveis em sua vida corporal autônoma. O interessante ganho concreto para o campo científico do problema que vivenciamos hoje com os embates entre polícia e bandido adquiriria leitura nova com a definição mais clara de suas conexões. O formigueiro, e o Tamanduá, paradoxalmente, convivem no mesmo universo, no qual a urbanidade é vitimada por conflitos e choques constantes também. Certamente, a relação entre eles é de colisão na geografia do exercício do poder.
Independente de outras questões, como a econômica, por exemplo, a primeira se estrutura, configura, fortalece e se define no poder,alicerçada na conjugação do binômio medo/caos. Estranhamente, a segunda, não só se estrutura e o utiliza, mas faz questão de ostentá-lo como seu monopólio absoluto. Usa-o segundo suas razões e justificativas, as quais pretendem uma postura sistemantista, ou seja, dominante como um imã. Imperiosa e dominante no espaço que considera seu, tanto quanto a outra também o considera. O embate acontece como componente do todo. Uma normalidade mecânica que as explica, isoladamente e, até mesmo a face de preconceito que as duas exprimem.
Contudo, presos em nossas razões maquinais e mecânicas, forjamos ambiciosos desejos de soberania. Possuidores de razões lógicas e compreensivelmente cartesianas, que não estamos discutindo aqui, ficamos à deriva no que se refere a audácias científicas maiores. A lógica mecânica satisfaz plenamente os desejos introvertidos no corpo concreto de nossa formação social. Impõe-nos verdades superficiais e imediatas. Assim, não somos capazes de perceber o diálogo simbólicomantido entre a favela e sociedade cidadã. A segunda resiste e se sustenta sempre acobertada na névoa absolutamente espessa que esconde as razões de sua existência e o desenho de seu volumoso interior. Herméticos, fundados na lógica binária daqueles que acreditam serem incluídos socialmente.
A observação que fazemos nos embala na crença, como diz Boaventura, que
...estas sociedades leva-nos a estabelecer distinções entre culturas consideradas diferentes e incomensuráveis, avaliadas segundo padrões relativistas, seja como exemplares de estágios em uma escala evolutiva que conduz do elementar ou simples ao complexo e do primitivo ao civilizacional.
No presente trabalho CORPOS SOCIO-CULTURAIS EM CONFLITO: Uma História de Controles e Confrontos dos novos paradigmas e suas inserções na realidade vivencianda da moderna multicultura brasileira, buscou-se pensar objetivamente o desfraldar da face mais desafiadora do problema que nos é apresentado pelos novos tempos. Dentre eles, a marca da velocidadeé o maior diferencial.
Buscar saídas, mesmo que tautológicas no princípio, faz-se mister para trilhar um caminho tão difícil e desconhecido. Porém, sabemos que se não avançarmos nada construiremos. Acreditamos não caber mais discussões sobre o perfil de nosso tardio capitalismo, ou coisas do gênero, se não considerarmos nossa necessária inserçãoem um universo de mundo global. Mundo em que as relações sempre complexas nos geraram imaginações de diálogos aparentemente impossíveis no quadro de relações em que vivemos sob o manto amparador do modelo de Estado/Nação. Diálogos não percebidos, e por isso mesmo, hoje, fazem-nos conformados com coisas tais como o público confundido com o privado no formato de uma mercadoria vendável pela mídia com facilidade. Ela que, com seu comportamento, poderia alavancar espíritos de cidadania concretamente construída.
CONCLUSÃO
Como vemos, é bastante difícil um desenho absolutamente acabado de nosso cultural e social étnico, se nos permitem chegar a tanto. Temos ainda o agravante de convivermos com uma "alegria" que, em certas ocasiões, chega à explosão do despertar do nosso já letárgico sono, como se estivéssemos alheios à realidade cotidianamente vivida. Em outros casos, acaba por soar como se fosse um banho de água fria, uma espécie de desejo frio que acaba por nos acordar sempre para uma nova experiência de "jogo da vida". Tudo certamente se deve ao fato de termos que amargar quatro séculos aproximadamente de escravidão, repleto de coisas pessimamente resolvidas. O medo que nos move ainda paira como sombra e, apesar dos pesares, sobrevivemos. Para tanto, nesse trabalho, o desafio é pensar objetivamente todas as facetas do problema, como se apresenta hoje. E levar em conta a sua especificidade maior: a velocidade, como já afirmamos.
Definitivamente, podemos afirmar que as razões que até a própria razão desconhece, certamente, representam não só mundos em conflito, mas, são razões que explicam diferenças que chegam a se apresentar monolíticas e organizadas, sociedades paralelas, talvez. Que convivem independentemente com outros corpos claramente decodificáveis em nossa realidade. Um ganho no campo científico do problema complexo que vivenciamos, com os embates entre polícia e bandido adquirindo quase forma, estrutura, lógica interna, vida em suas conexões. Não se pode negar que 'O formigueiro, e o Tamanduá, convivem no mesmo universo, mantendo sua independência.
Os tempos modernos foram importantes testemunhos de uma revolução extremamente rápida. Mudanças em profusão aconteceram. Para algumas pessoas ainda hoje elas chegam a causar estranheza pela importância como participavam do convulsionado mundo revolto. A própria ciência acostumada a conjugar produção/reprodução mudou radicalmente o olhar crítico, porque, abalada, sofreu significativas alterações.
Circunstâncias do momento? A humanidade se descobriu envolta pelas mudanças que assistia. Novos, problemáticos e desafiadores sinais de complexidade que exigia de todos um esforço jamais experimentado. O avanço tecnológico foi responsável por abalos no universo do saber ao inserir novas ferramentas como infomotricidade e infotecnologia, sempre acompanhadas de surpreendentes novidades no campo da produção científica. O infobjeto assumia o mote do grande projeto para vida humana. O medo passou a nos acometer, mesmo nós que ainda carecemos de uma indentidade mais cristalina. Sabemos que o menor sussurro pode ser ouvido, apesar dos desertos. Quando se diz a verdade!
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Publicado em 24 de abril de 2007.
Publicado em 24 de abril de 2007
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