Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
O Sonho acabou?
Leonardo Soares Quirino da Silva
Escola usa música para ensinar solidariedade e raízes culturais
Noite de terça, dia 27 de março, fui na Casa de Rui Barbosa ouvir o pesquisador e professor de música Bernard van der Weid falar sobre a Escola de Música da Associação do Movimento de Compositores da Baixada Fluminense. Sai de lá com a impressão de que o sonho não tinha acabado, e mais: de que "sonho que se sonha junto é realidade".
Em 1971, Gilberto Gil lançou o disco Expresso 2222. Entre as músicas estava O sonho acabou. Composta ainda no exílio na Inglaterra, a ideia surgiu ao fim de um festival "aquariano". Inspirada por John Lenon, que também declarara que o sonho tinha acabado, e pelo sentimento de que naquele momento não era só mais um evento que acabava, mas todo um período.
Longe dali, outros sonhos também pareciam acabar. O Brasil do início dos 70, para quem tinha entrado nos partidos e movimentos de esquerda, era, no mínimo, bem difícil. A repressão promovida pela ditadura esfacelava um a um os grupos da oposição não consentida. Deve se observar que mesmo para as pessoas da oposição legal a vida também não era fácil. As ideias circulavam sob o risco de seus médiuns serem calados. O clima foi bem traduzido em letras de músicas como Cartomante, Aos nossos filhos e Apesar de você, bem como reconstituído atualmente pelo filme Zuzu Angel.
Em 1973, sentindo o cerco se fechando, o então estudante Bernard van der Weid viu-se em uma encruzilhada. De um lado, seguir militando na esquerda tradicional, o que prometia mais isolamento - do povo ou das bases, para usar um jargão da militância - e, no extremo, a ameaça da tortura, do exílio ou da morte. De outro lado, o caminho que se abria para os jovens era o do "desbunde", rótulo que posteriormente estaria ligado a esta geração.
Van der Weid inventou uma terceira via para ele sem abandonar os ideais de construção de um país mais igualitário, que ele mesmo define como aquele que oferece igualdade de oportunidades aos cidadãos.
Nesse movimento, ele saiu da universidade e foi conhecer o povo brasileiro, tão falado nas reuniões estudantis e tão pouco conhecido por seus participantes. Foi assim que ele foi parar em Vilar dos Telles, em 1975.
Bom, essa ida para Vilar foi facilitada, digamos, por outro movimento que começava a tomar corpo no Brasil, o das Comunidades Eclesiais de Base, parte da implantação da Teologia da Libertação.
Onde a coruja dorme
O interesse inicial de van der Weid era conhecer, entender como a comunidade se organizava, como era produzida a cultura, como era o seu dia-a-dia. Foi por meio dessa observação que ele percebeu que os dois principais espaços de convivência eram o botequim e o campo de futebol. Consequentemente, o futebol era um tema e a música, no bar, outro.
Depois de muito calejar os dedos nos campos, aparentemente o professor resolveu que era melhor procurar os compositores, que ele descobriu existirem aos montes e com os quais ele fez vários sambas.
Movido por outros objetivos, ele acabou dando uma de Bezerra da Silva, que dizia ir "onde a coruja dorme". Como Bezerra, ele descobriu talentos como Derley, Ailton do Vilar, Ronaldinho da Matriz e Coquinho. Com alguns deles, iniciou uma parceria que foi além das rodas.
A primeira parte desse trabalho conjunto foi organizar um movimento de compositores. Se há músicas, por que não gravá-las? Daí, preparar um disco com uma seleção do material desses autores foi um passo natural, precedido pelo intercâmbio com músicos conhecidos, como o conjunto Galo Preto, que iam conhecer e ensaiar com os compositores da Baixada.
Seguindo uma ordem cronológica, esta foi a primeira revolução. A música antes, feita de qualquer jeito, batida no tampo da mesa, ganhou qualidade ao ser executada por bons músicos, o que serviu para mudar a forma como os compositores da Baixada percebiam seu trabalho.
Contudo, a grande revolução veio com a gravação do disco. Van der Weid declarou que, se fosse perguntado, diria que a maior contribuição do disco foi mudar a forma como aquele grupo de compositores era percebido em suas comunidades:
- Na verdade, esses caras eram conhecidos em suas comunidades como bebuns. Logo, tinham a autoestima lá embaixo. Mas, na verdade, eram pessoas com uma sensibilidade enorme para perceber o sofrimento do que estava sendo vivido. Então, de verdade, de verdade, eles são um pouco a caixa de ressonância de um povo que está ali, sofrido.
Exatamente por isso, van der Weid afirmou que a intenção do projeto não era fazer um disco por fazer:
- A ideia do disco, tanto na Baixada, quanto na Bahia ou no Vale (do Jequitinhonha) era dizer para aqueles caras: olha como isso que vocês fazem é bonito. A partir daí, eles sentirem em sua a autoestima e se organizarem para defenderem sua cultura.
Escola, cidadania, raízes
Na Baixada, do disco fez-se escola. A dificuldade de se encontrar bons músicos na região para acompanhar as rodas foi um dos fatores que motivaram o agora grupo abrir uma escola de música.
Van der Weid lembrou que Pixinguinha, por exemplo, não era filho de gente rica, mas teve a oportunidade de aprender a tocar um instrumento. Essa possibilidade não havia ali. Primeiro, a falta de recursos fazia com que as pessoas tivessem dificuldades para comprar instrumentos, substituindo os que se desgastavam. Logo, a escassez de instrumentos tornava difícil o surgimento de novos músicos.
Depois, a escola não chegava a oferecer uma alternativa real. A carga horária de três horas e o sistema de aprovação imediata faziam com que, na opinião de van der Weid, os alunos, ao terminarem o Ensino Médio, não tivessem nenhuma qualificação para um mercado de trabalho cada vez mais exigente. O destino deles era o mercado informal, como flanelinhas, e sem nenhuma outra opção de cultura e lazer a não ser a TV. O resultado era que as pessoas só conheciam o que passava na telinha.
A solução que a Associação do Movimento de Compositores da Baixada Fluminense (AMC) encontrou foi criar a sua escola. Primeiro tentaram conseguir financiamento externo com governos, empresas e fundações, sem sucesso.
Então, para viabilizar o projeto, resolveram fazer uma vaquinha. Chamaram os amigos, explicaram a situação e pediram de cada um uma contribuição mensal de R$ 30 até que o projeto se mantivesse sozinho, o que levou três anos. Com esse dinheiro, foi alugada a atual sede da Escola de Música. Os primeiros instrumentos foram conseguidos com recursos do projeto e os professores eram os próprios membros da associação.
Ao contrário do que os membros da associação esperavam, a escola, apesar de gratuita, não se encheu de alunos. Havia a percepção entre os moradores de que "música não dá futuro". Outro aspecto importante para a pouca demanda inicial foi a cultura individualista que reinava, que, como explica van der Weid, decorre do fato de a maior parte da população ser constituída por migrantes que tiveram que lutar sozinhos por sua sobrevivência.
Com isso, usar a música para ensinar a importância da solidariedade e do trabalho tornou-se um dos eixos do projeto da escola. Van der Weid ressaltou que ela não podia ser tratada como uma instituição para formar músicos, da mesma forma que um conservatório. Os alunos que passassem por ali "vão saber trabalhar em grupo, terão aprendido que coletivamente se faz um mundo muito melhor que individualmente".
O outro objetivo é o de apresentar às crianças e aos jovens o trabalho de compositores consagrados. Van der Weid e os outros membros da AMC não querem que ninguém adore Pixinguinha, mas querem que todos tenham a oportunidade de conhecê-lo.
Como a TV era e é a principal fonte de informação, talvez a única, os alunos chegavam à escola querendo aprender a tocar um instrumento para montar um grupo de pagode. A proposta da escola, contudo, é outra. É apresentar aos alunos nossa história musical, quem são nossos compositores, nossos poetas.
Ao fazer isso, van der Weid intuía que a exposição a esse conteúdo traria mudanças importantes no gosto dos alunos.
- Tinha absoluta certeza, intuitivamente, claro, que se mostrasse essa informação à criança, com a cabeça aberta, ela iria ter a oportunidade de escolher. Diante de uma coisa muito mais elaborada, bem feita, bonita, ela poderia optar por isto. Não tinha a menor dúvida e realmente foi o que aconteceu.
Como desdobramento do trabalho da escola, há a expectativa de espalhar no entorno o gosto pelo samba de raiz e os princípios ensinados ali, pois, como diz a letra de Sonhos e fantasias (Derley), "se o enredo for cada um por si, qual o sonho que não fica na ilusão?"
Publicado em 24 de abril de 2007
Publicado em 24 de abril de 2007
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.