Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Tudo Flui

Pablo Capistrano

Sempre fico estranho quando vou ao centro da cidade. Como cresci na zona sul de Natal, a sudoeste do Machadão (estádio de futebol da cidade), lembro que ir ao centro da cidade nas manhãs de sábado, com meu pai, era uma romaria. Sabe como é...  cidade minúscula... a zona sul parecia um imenso sítio, uma fazenda iluminada construída às margens do campus universitário. No centro era diferente. Ali havia todo um misterioso mundo de possibilidades. Havia as livrarias, as lojas de brinquedo, as lojas de departamento, as vitrines mais caras e mais coloridas. Sábado pela manhã, a cidade se encontrava no centro. Não havia praça de alimentação, nem banheiros com plaquinhas coloridas, nem ar condicionado, nem chão escorregadio. As pessoas viviam, compravam, comiam, bebiam, conversavam ao ar livre. Embaixo do céu sem fim de uma cidade que morreu. Sim. Fico estranho quando vou ao centro daquela cidade que morreu. Tudo mudou. As lojas sofisticadas sumiram, as vitrines mais caras fecharam, os antigos casarões foram sendo lentamente derrubados para, no lugar, surgirem estacionamentos lajeados que alugam suas vagas a 2,0 reais. Ainda há movimento nas manhãs de sábado, mas não é a mesma coisa.

Hoje a coisa é outra. A cidade que eu conheci na infância morreu e sobre seu cadáver uma outra cidade surgiu. Rivalizando com o céu, que antes, era senhor de toda essa terra que se estendia entre o quintal da minha casa e as mais importantes e movimentadas calçadas do hoje, velho e decadente, centro da cidade. Compreendeu porque eu fico estranho toda vez que tenho que ir ao centro? Ok. Todo mundo sente isso, de um modo ou de outro. Chame de nostalgia, banzo ou saudade, não importa o som da palavra, o sentido é um só: "saudades de casa". Aquela sensação de se estar apartado do seu país natal, do seu lar, da sua origem, da sua fonte, daquilo que compõe os fundamentos do seu Ser, ou, simplesmente, a lembrança de um momento agradável, morto na névoa do tempo. A melhor maneira de lidar com esse estranho sentimento é aprender as lições dialéticas de Tio Heráclito e aceitar que tudo passa, tudo flui. Nada permanece o mesmo. Tudo queima. As forças que fazem algo surgir são as mesmas que o derrubam. O poder que cria um corpo é o mesmo que o destrói. O oxigênio que dá a vida é o mesmo que envelhece o corpo. O elemento que constrói é o mesmo elemento que destrói. O balé da existência é a dança que mantém o mundo oscilando entre a força que constrói e a força que destrói. Assim como o meu velho centro, das manhãs de sábado, Heráclito me ensina que tudo que existe nesse mundo, um dia vai deixar de ser. Que o nada não é o oposto do Ser, mas que ele é o vazio que faz o copo ser copo.

Sabe o que é mais interessante? Ninguém domina esse fluxo. Ele nos submete, mas nós não temos como controlá-lo, retardá-lo, mudar seu curso, porque ele nos domina. Um dos fragmentos mais famosos de Heráclito é aquele que diz algo do tipo: "não se pode entrar nas mesmas águas de um rio duas vezes". Poderíamos completar: "nem nas de uma lagoa, Tio Heráclito". Por que? Porque mesmo que a água esteja parada, eu estou me movimentando. Sim. Mesmo que a água seja a mesma água (o que de modo algum acontece), eu não seria o mesmo. Meu corpo muda, assim como o rio muda, a lagoa muda e como a cidade em que eu vivo muda. Tudo está mergulhado no rio do tempo. Cercado de temporalidade. Envolto no desgaste do movimento das coisas. Você já parou para pensar, qual porcentagem da matéria que compõe seu corpo, é formada pelos mesmos átomos que você tinha quando nasceu? Quanto de sua personalidade, dos seus hábitos, dos seus desejos, dos seus sonhos, dos sons loucos que fazem sua cabeça, são os mesmos da sua infância? Talvez você tenha mudado também. Como o centro da minha cidade. Talvez você tenha morrido e renascido várias vezes nessa vida, possuído pelo rio do tempo que fez Heráclito pensar que a "guerra é senhora de tudo". Se Heráclito estiver certo, toda nostalgia é perigosa porque nesse lar que é o nosso, tudo passa, tudo flui e o apego nostálgico a qualquer coisa pode não ser um modo muito inteligente de lidar com esse mundo.

Publicado em 8 de maio de 2007

Publicado em 08 de maio de 2007

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.