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Cultura e consumo
Ieda Magri
O capital simbólico costuma ser, na sociedade atual, um meio de discriminação social. Entende-se que este dado, por si só, sustente a necessidade de ampliação de públicos nos circuitos de difusão de uma arte não-mercadológica, já que alguns segmentos envolvidos com problemas de ordem social, tais como alimentação, segurança e moradia, não reivindicam de imediato a sua inclusão nas políticas artísticas e culturais.
Falando-se de acesso à cultura vislumbra-se de imediato a necessidade de se fazer uma investigação acerca dos usos do termo cultura e suas relações com as novas formas de recepção inauguradas pelo consumo e pela ascensão da indústria cultural, tentando perceber, na situação contemporânea, o novo público receptor das artes e consumidor cultural.
A discussão em torno dos termos cultura de massa, cultura popular ou cultura erudita tornou-se, nas últimas décadas, um problema de difícil acomodação tanto nas discussões acadêmicas quanto nos círculos artísticos. O termo cultura, segundo Williams, é complexo devido à gama de definições que o compõe. Pode ser empregado tanto no sentido antropológico e sociológico como nas artes ou nas manifestações artísticas. Para Williams "há certa convergência prática entre os sentidos antropológico e sociológico de cultura como 'modo de vida global' distinto (...) e o sentido mais especializado, ainda que também mais comum, de cultura 'como atividades artísticas e intelectuais'".
Informalmente, o termo arte é mais usado no terreno das artes plásticas e o termo Cultura, para designar todas as outras manifestações. Por consequência, arte estaria no terreno do erudito; cultura no terreno do popular. No entanto, a palavra artista não designa apenas o especialista das artes plásticas: para o grande público, a palavra está mais próxima dos atores popularescos da mídia massiva.
Neste artigo, uso o termo cultura como maior que arte, pois ele engloba todos os tipos de arte, seja popular, massiva ou erudita. Desnecessário dizer que aqui não vai nenhum julgamento de valor.
No livro Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia, Jesús Martin-Barbero expõe as matrizes históricas que envolvem o uso dos termos cultura popular e cultura de massa antes e depois de surgirem os meios eletrônicos. Parte do que ele chama da "origem do debate", a descoberta do "povo" pelos românticos e pelos ilustrados no início do capitalismo.
Segundo o autor, com a Ilustração o povo ganha um significado político: como grande número ele passa a representar uma ameaça por sua constante ebulição, tornando-se "instância legitimante do governo civil". No âmbito da cultura, entretanto, o povo representa tudo aquilo que é contrário à razão: as crenças, superstições, a ignorância e a desordem. A descoberta do povo, assim, tem dois lados equivalentes: "A racionalidade que inaugura o pensamento ilustrado se condensa inteira nesse circuito e na contradição que encobre: está contra a tirania em nome da vontade popular, mas está contra o povo em nome da razão".. Responde-se ao povo colocando-o abaixo da razão: ele precisa ser governado, a ele é preciso dar a ilustração, o divertimento e as condições mínimas de sobrevivência. O povo é a "necessidade imediata" enquanto a pequena burguesia é a detentora do saber que precisa ser dado a ele como conhecimento. É nessa diferença social, segundo Martin-Barbero, que se articula a exclusão do povo da cultura: culto passa a designar o que é da burguesia e popular o que pertence ao povo. A definição do conceito de popular, neste momento, tem como premissa designar o "in-culto", algo que é de um grupo "que se constitui pelo que lhe falta e não pelo que é". A ilustração deixa como fruto uma "definição do povo por exclusão, tanto da riqueza como do 'ofício' político e da educação".
São os românticos que fazem progredir a ideia de que para além da cultura oficial dos ilustrados existe uma outra cultura. Segundo Martin-Barbero, os românticos chegam a essa afirmação pela exaltação revolucionária, pela reação política e estética contra os ilustrados e pela exaltação do nacionalismo. O povo é pensado, pelos românticos, como alma, entidade não analisável socialmente, abaixo ou acima do movimento social, e sua cultura é vista como algo que não se mistura, não se contamina com o comércio ou com a cultura oficial. Logo, a cultura do povo, numa ideia romântica, é aquela primitiva, folclórica, é a cultura-patrimônio.
A significação de povo tanto no sentido romântico como no da ilustração se dissolve no conceito de classe social na oposição entre proletariado e burguesia a partir da revolução industrial. Paralelamente ao conceito de classe social, nasce o de massa. Martin-Barbero localiza os usos dos dois termos ligando "classe social" ao marxismo, à esquerda que busca pensar o proletariado pelas relações de produção, que pensa as diferenças sociais a partir das diferenças de classes geradas na opressão que uma impõe à outra; e massa a um pensamento político de direita desencadeado "sob os efeitos da industrialização capitalista sobre o quadro de vida das classes populares". Busca, portanto, as origens do surgimento do conceito de massa (em lugar de povo), não na relação com o desenvolvimento tecnológico e com massificação da sociedade e sim no pensamento de Tocqueville e sua denúncia de "uma maioria" em busca de condições igualitárias e que é capaz de "subordinar qualquer coisa ao bem-estar." Com o nome de massa se designa pela primeira vez "um movimento que afeta a estrutura profunda da sociedade" e que tem poderes, justamente por se constituir da maioria, do grande número, de marcar as tendências políticas e culturais.
É, contudo, em finais do século XIX que a massa ganha uma conotação eminentemente negativa: algo que precisa ser controlado pela sua propensão à degradação da sociedade. Em 1895 (veja-se que é o mesmo ano do surgimento do cinematógrafo) Gustave Le Bon publica La Psychologie des foules, que busca pensar a irracionalidade da massa. Esta estaria dotada de uma "alma coletiva" que faria com que os indivíduos se comportassem de maneira diversa ao seu modo individual para agir instintivamente, compulsivamente, não havendo mais um modo individual de pensar na massa, mas um agir coletivo sem inibições morais. Massa, nesse momento, é sinônimo tanto de um "proletariado cuja presença obscena deslustra e entrava o mundo burguês", como de uma multidão irracional que precisa ser controlada. Para Martin-Barbero, a teoria da sociedade de massa que emerge do pensamento de Le Bon nega a possibilidade de se olhar para o social como espaço de dominação e de conflito, o que permitiria compreender o comportamento das massas em seu fazer cultural.
Com o pós-guerra, o eixo da economia se desloca da Europa para os Estados Unidos e o consumo requerido pela nova estrutura de produção não tinha para onde escoar, já que a grande massa populacional urbana e recém-chegada não tinha o hábito do consumo, preferindo a poupança. "Para o sistema, era indispensável educar as massas para o consumo." É então que a massa passa a ser vista como diferentes grupos de públicos a serem conquistados pela publicidade e pela produção cultural direcionada. Sendo o público o sustentáculo da nova indústria cultural, o imperativo torna-se a criação de estratégias para se atingir o grande número. Surgem as revistas para camadas específicas de público, "uma imprensa capaz de atrair leitores de toda classe de cultura", e os gêneros cinematográficos.
É nessa passagem que a massa ganha uma nova significação, sendo colada às discussões sobre a cultura, "pois os verdadeiros problemas se situam agora nos desníveis culturais como indicadores da organização e circulação da nova riqueza". Enquanto para alguns, especialmente para os pensadores europeus, a sociedade de massa representa a degradação da cultura, para os teóricos norte-americanos a cultura de massa representa a afirmação e a aposta na democracia. A partir desse ponto "a denominação do popular fica assim atribuída à cultura de massa, operando como um dispositivo de mistificação histórica, mas também propondo pela primeira vez a possibilidade de pensar em positivo o que se passa culturalmente com as massas". O autor recomenda veementemente que se inclua nos estudos e discussões do popular o que a massa produz e o que consome, não de um modo romântico, olhando o seu passado, mas situando-a na modernidade com todas as imbricações urbanas, mestiçagens e como espaço permanente de conflito, não apenas como um aglomerado de pessoas que passivamente recebe o que os meios oferecem.
Contudo, ainda que hoje se use o termo popular para designar o que está no gosto preferencial (mesmo que em permanente mudança) da massa sobre um determinado tipo de cultura, não se colocam como sinônimos os termos cultura de massa e cultura popular. Vários teóricos se empenharam em mostrar como a cultura de massa se apropria da cultura popular para torná-la mercadoria.
A relação entre arte e público certamente foi modificada pela indústria cultural, conceito forjado por Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do esclarecimento publicado em 1947. Tratava do problema da cultura de massa e criava o termo para demarcar de forma clara a diferença entre cultura popular e de massa. No texto A Indústria Cultural, escrito a partir de suas conferências radiofônicas proferidas na Alemanha, em 1962, Adorno retoma o tema e deixa mais claro o conceito:
Indústria Cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores.(...) Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos seguindo um plano, produtos adaptados ao consumo.(...) A Indústria Cultural abusa da consideração com relação às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, que ela toma como dada a priori e imutável.
A denúncia de Adorno de que a arte é tomada como mercadoria pela indústria cultural e adaptada ao consumo em larga escala, aponta para um receptor forjado no próprio sistema industrial. Apossando-se da "arte superior" e da "arte inferior", a indústria cultural tira-lhes o sentido original para tornar uma acessível, no sentido de ser aceita, entendida e consumida e outra mais limpa, com um tratamento mais aceitável, fazendo perder "através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude". Adorno deixa claro que a massa à qual a indústria cultural se dirige não é "o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo".
A leitura dos efeitos da industria cultural e sua capacidade de inserção na vida cotidiana das massas é tema de muitos pensadores e pesquisadores. Waldenyr Caldas, tentando fazer um apanhado das discussões que marcaram o auge do debate sobre a industria cultural, apresenta o que ele chama de "as duas versões da cultura de massa". Como primeira versão, apresenta em linhas gerais a Escola de Frankfurt e como segunda versão a Escola Progressista-Evolucionista. Embora claramente simpatizante das ideias de Adorno, busca expor, por um lado, as diferenças e por outro, pelo menos um ponto de convergência entre as escolas. O principal ponto de divergência pode ser localizado na forma como analisam o acesso da massa à cultura e o consequente debate sobre a perda ou não da qualidade da arte: enquanto a Escola Progressista-Evolucionista defende que a industria cultural produziu um número cada vez maior de pessoas que se sentem aptas a conhecer a "alta cultura", para a escola de Frankfurt, os produtos dessa mesma indústria não passam de descaracterização, rebaixamento e homogeneização da arte e suas estratégias funcionam como embuste para o público totalmente manipulado para fins de consumo.
Segundo Caldas, ambas concordam no seguinte:
...embora a tendência na sociedade de massa seja a homogeneização do consumo, é inegável que ela gera níveis de gosto, audiências e consumidores diferentes. Assim, a cultura é estratificada e seu consumo é diferenciado. Noutras palavras: existe na sociedade de massa uma cultura de classe, apesar de sua tendência à padronização. E, se pensarmos bem, há uma certa lógica nesse fato. As sociedades de economia privada apresentam-se divididas em classes sociais. Esta divisão, por sua vez, é o elemento mais importante para diferenciar uma pessoa da outra nos planos social e econômico. (...) A cultura vai servir exatamente de elemento diferenciador de classe.
Homogeneização de consciências, cultura de classes, gosto: esse debate está sempre em ampliação. O certo é que não é possível negar o irreversível desenvolvimento tecnológico do mundo que traz consigo novas formas de percepção da arte. A sensibilidade estética do mundo burguês do século XIX foi transformada definitivamente, seja pela expansão do capitalismo industrial, seja pela nova forma de relação dos homens com o tempo, uma exigência dos novos padrões de trabalho e da sociedade globalizada.
Tendo a indústria cultural como um fato presente na sociedade atual, importa perceber que a aproximação entre a arte que está fora do mercado e o grande público permite estabelecer novos espaços imaginários para a sobrevivência da arte enquanto experimentação e descoberta e pressupõe liberdade de escolha para o receptor.
Se, em nome da democratização da arte, operou-se numa concepção de cultura como produto a ser difundido de forma facilitada, no discurso do acesso à cultura, as proposições devem se inverter: em vez de facilitar a recepção da arte com a reestruturação das mensagens artísticas, ou seja, a adaptação das diversas formas de arte à recepção massiva, o caminho mais apropriado seria o de preparar o público para que possa receber as diversas formas de arte. Essa inversão, no entanto, para que fuja de uma concepção iluminista, não deveria se basear num receptor tolo cultural e nem numa forma de arte concebida como única a ser acessada ou com a conotação de "verdadeira arte". Antes, esse preparo, seria um predispor à recepção, uma re-significação dos sentidos, re-sensibilização para a percepção daquilo que está distante do cotidiano imediato.
E esse é o papel dos produtores culturais, dos artistas, dos intelectuais, dos professores: meu, seu, já que cada vez mais o Estado se exime de tal tarefa. Creio que Beatriz Sarlo, uma das mais importantes intelectuais da atualidade, tem um argumento irrefutável para nos convencer de nosso papel diante desse problema:
Os setores populares não têm mais obrigações do que os letrados: não é lícito esperar que sejam mais espertos, nem mais rebeldes, nem mais persistentes, nem que vejam com mais clareza, nem que representem outra coisa senão eles mesmos. Mas, em contraste com as elites econômicas e intelectuais, eles dispõem de uma quantidade menor de bens materiais e simbólicos, estão em condições de usufruto cultural piores e têm menores possibilidades de praticar escolhas não condicionadas pela pobreza da oferta ou pela escassez de recursos materiais e instrumentos intelectuais. (...) Os setores populares não dispõem de nenhum recurso todo-poderoso para compensar aquilo que uma escola em crise não lhes pode oferecer, aquilo que o ócio dos letrados pode adquirir quase que sem dinheiro, aqueles bens do mercado audiovisual que não são gratuitos ou que não se adaptam ao gosto que o mercado protege justamente porque é o gosto favorável a seus produtos padronizados.
Publicado em 15 de maio de 2007
Publicado em 15 de maio de 2007
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