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É que narciso acha feio o que não é espelho
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
Introdução
A terra não pertence ao homem; é o homem que pertence à terra. Disto temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. O que fere a terra fere também os filhos da terra. Não foi o homem que teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama, a si próprio fará.(Trecho da carta do Cacique Seattle ao Presidente dos EUA em 1855.)
Hoje, nos modernos centros urbanos, a reeducação do olhar científico sobre a existência humana faz-se cada vez mais necessária! No Mundo Científico da Globalização sabemos que as mudanças estão marcadas pela visão holística, sobrepondo-se à visão cartesiana. Não cabe mais ver o homem apenas do ponto de vista individual, ou mesmo como um ser marcado pelo individualismo. O Holism, doutrina que sustenta a visão do caráter global ou mais estruturado da realidade, aproxima-se do organicismo que, na verdade, corresponde a uma perspectiva do todo, principalmente no campo da biologia. Nele, o todo é sempre diferente da soma das partes.
Reeducar o olhar científico permite-nos ver com quantos e quais paus se faz uma canoa, ou se os paus estão harmoniosamente arrumados. Tomando forma e sentido de corpo, num formato que nos permita navegar. Sorry, o limite do homem foi sempre verificar a composição, entender a maneira como se apresentam as partes, compreender suas articulações, entender o sentido de seus movimentos, sempre decompondo componentes, conceituando-os, desmontando-os e/ou para montá-los novamente, com o claro objetivo de dominar suas formas.
A concepção sociológica da relação entre o todo e as partes, que alimentou diversas teorias científicas, e das quais passou a uma metodologia nas ciências sociais, nos mostra que é nele, no todo, que se encontram características que não se explicam pelas relações entre seus elementos componentes, nem a estes são redutíveis. O organicismo é uma visão do holismo, porque explica os organismos como sistemas complexos, onde as partes perdem sentido, natureza, função e até existência, quando removidas do todo. Repele toda a interpretação que seja individualista, sustenta a necessidade de conjuntos, ou todos dotados de natureza, funções e finalidades próprias, que influenciam e arrastam os indivíduos-membros. Assim, a corporificação dos grupos de pessoas componentes das sociedades paralelas, ou corpos autônomos, dos quais nos ocuparemos aqui, deve ser observada sempre dentro da perspectiva de sua natureza monística ou mesmo monovalente. Assim sendo, vale afirmar que não se entende o Punk, o Dark, o drogado, o nazista fora dos seus respectivos grupos. O que lhes confere autenticidade, justificativa e significação, sentido de vida, é a corporificação grupal. Esta é sempre marcada por alguma energia que os interliga, perpassando seus sentidos e comportamentos sociais intragrupos e intergrupo.
O quadro abaixo demonstra melhor como se deu o que chamamos de capitalidade irradiadora, inclusive, a maneira como se deu a formação de nossa nação, com o Rio de Janeiro irradiando-se pelo Brasil e provocando uma variada tipificação sociocultural especial por mímica e atribuição, que merece melhores olhares:
Os vestígios do Rio colonial | → | A capitalidade e a formação do Rio |
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1) O Rio de Janeiro Colonial organizou-se em suas estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais a partir do século XVI, despontando desde a sua fundação como centro de convergência e irradiação das diversas esferas de poder para o resto da colônia.Devido a esta situação torna-se, em 1763, a cidade sede, na elevação do Brasil a Vice-Reino. É, sem dúvida, a posição geo-estratégica, em comparação as cidades Salvador (BA) e São Vicente (SP), que dá o pontapé inicial da capitalidade do Rio. | 1) Para a capitalidade do Rio tivemos: a elevação do Brasil à condição de Vice-Reino em 1640 e que, a partir de 1763, passou a ser sede definitiva; a vinda da Família Real para o Brasil, em 1808, instalando no Rio a sua administração; a elevação do Brasil à condição de Reino Unido, em 1815, centralizando a administração do “mundo” português no Rio; o processo de Independência do Brasil, mantendo a unidade nacional e governo central no Rio e a criação do Município Neutro em 1815, que marca a separação política da cidade com a Província Fluminense, situação que avança para a República, só sendo mudada com a transferência da capital para Brasília, no Planalto Central, em 1960. “Somente em 1975 (fusão da Guanabara com o Estado do Rio), é formalmente reconstituído o recorte territorial preexistente à constituição do Município Neutro”. | |
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2) Só se tornou o entreposto de escoamento da prata vinda do Potosí e ouro das Gerais porque tinha uma baía, (Guanabara), que oferecia local seguro (fundeio dos navios à vela, condição indispensável aos navegadores da época) e proteção garantida por um sistema de fortes estrategicamente instalados na sua entrada (que inviabilizava ações de corsários e invasões), a isso somava-se a facilidade de acesso ao sertão em direção ao Rio da Prata e as Gerais. É por essas condições que o Rio desponta como local seguro para transitar a riqueza dos minérios, o lucrativo tráfico de escravos e a importação de produtos. O porto do Rio era a principal porta de acesso à África, às Índias e à Europa. O porto, “onde se processava o tráfico de escravos e grandes transações mercantis”, é o ponto inicial das transformações da cidade. É a partir dele que riqueza e diversas culturas se espalham, modificando o espaço geográfico nas proximidades da baía e em direção ao interior. | 2) Nesses mais de 300 anos de história (séc. XVI/XX) explicam o porquê da capitalidade do Rio. A princípio, é a posição estratégica em relação às demais cidades da colônia, oferecendo combinação perfeita de segurança e acesso às riquezas, centralizando no Rio o comércio português. Esse fluxo de capital atrai as atenções de Portugal e do mundo. A Corte Portuguesa envia seus legítimos representantes com fins de coibir o contrabando e controlar o fluxo de ouro e o comércio exterior para evitar prejuízos Monta-se a infraestrutura capaz de fazer uma eficiente fiscalização. A cidade é beneficiada com diversas construções, como prédios para acomodar a administração (foram criados vários órgãos como o Banco do Brasil, Força Policial etc), sistema viário/portuário, sistema de abastecimento de água e logradouros públicos. A presença da Corte Portuguesa no Brasil foi decisiva para a capitalidade e a formação do Rio. Com ela veio um contingente que modificou o conceito da cidade de vila colonial para cidade “cosmopolita”. A renda per capita dá um salto e as atividades econômicas e sociais se diversificam. Há melhorias na infraestrutura, como a iluminação pública. Concomitantemente, ocorria mudanças na área da educação: abriam-se escolas, instituições de nível superior e bibliotecas. A atividade cultural tem transformações com a abertura do teatro (atender o gosto refinado da corte). No popular, a música que se destaca é o lundu e a modinha, frutos da miscigenação do processo de formação do povo brasileiro, marcas indeléveis de sua formação cultural. | |
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3) Importância do Rio Colonial: a atuação dos ourives, os comerciantes influentes nas questões de economia e política; a pequena e crescente burguesia que representava os interesses da Coroa, os donos das grandes propriedade (ex.:a família Sá); a influência e a riqueza da Igreja. O Rio passou por sérios problemas em consequência da escassez de água, fato que influenciou decisivamente na distribuição sócioespacial da população. Os ricos recorriam às fontes de águas instalando-se em chácaras nos alto; os pobres se empilhavam no centro em volta dos chafarizes, sob condições terríveis de higiene, em busca de água. | 3) Com a Independência do Brasil, o Rio de Janeiro é mantido como cidade sede do Império, centro das decisões políticas, econômicas e militares de todo território. Recebe um número crescente de imigrantes europeus franceses e ingleses, que influenciam o dia-a-dia do carioca. No Rio foi proclamada a República (1889), mantendo-se na cidade as decisões políticas até 1960, quando a capital é transferida para o Planalto Central. E mantém até hoje a expressão histórico-cultural da capitalidade brasileira. O Rio assumiu a incontestável posição de cidade capital, reconhecida nacional e internacionalmente como a “porta” de entrada do Brasil, por sua história rica em fatos que moldaram o perfil do povo brasileiro, politização, costumes e tradições, sua crença, tornando-se centro de difusão da cultura nacional. O eixo do poder direciona-se para cá, trazendo consigo a estrutura e a infraestrutura. Após, segue-se um processo migratório que enriquecerá mais a cidade com sua força de trabalho e cultura. Ë o somatório de tudo gera a capitalidade. |
Assim, tivemos uma formação lateral à ordem social vigente de uma parte de nossa sociedade e cultura que, certamente, também se proliferou de maneira independente por todo o interior de nosso país, germinando uma multiplicidade de corpos socioculturais diferentes, levando consigo variadas formas de excludências sociais, que se foram construindo aqui, como podemos constatar. Gerando também uma espécie de capilaridade também irradiadora e, por essa razão, multifacetada.
No período regencial, o Brasil viveu seus momentos de grande mudança político-administrativa no que tange ao concreto perfil do poder exercido. Dentro de todo o Período Regencial tal fato se acelerou, como podemos ver abaixo:
Período Regencial: em busca da ordem na colonização
↓Regências: (07-04-1831):
Entre as forças políticas e sociais que combaliram os “excessos de autoridade” do 1° Reinado, opondo-se à Carta de 1824, os Liberais Moderados tornaram-se a mais importante. Deles saíram membros da elite dirigente do período, reunidos em torno da “Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência Nacional” (grandes proprietários escravocratas de SP. e MG. que controlavam o abastecimento da Corte). Coesos, dirigiam o Império com hegemonia política no RJ.
Embora adeptos de uma relativa autonomia política para as províncias, os Liberais Moderados defendiam a monarquia centralizada (equilíbrio entre Legislativo e Executivo). Na oposição, os Liberais Exaltados tiveram destacada atuação. Heterogêneos, articularam em torno da Sociedade Federal com 2 tendências: suas bases sociais tanto no setor exportador quanto no não-exportador, localizados fora do eixo Rio-S.P.- MG. Defendiam a Monarquia Descentralizada; possuíam muitas designações no Império de interesses diversificados; compartilhavam objetivos, como: eliminação do Poder Moderador, do Senado vitalício e Conselho de Estado e a concessão de maior poder às províncias; opor-se ao regime, queriam República Federalista, direito de voto e fim da escravidão. Base urbana: pequenos e médios comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais; sofriam oposição dos Caramurus (restauradores) que desejavam Monarquia Centralista aos moldes da Carta de 1824 e desejava retorno de D. Pedro I até 1834
↓Reunidos em torno da Sociedade Conservadora, grupo político mais coeso, mas com número reduzido de adeptos, bases na burocracia e comerciantes, grandes negócios de exportação e de importação, inclusive o tráfico africano, e detinham privilégios no comércio de cabotagem que abastecia as cidades da costa (tinham a simpatia de alguns cafeicultores do Vale do Paraíba).
Regência: marcada pelo agravamento de manifestações e revoltas, caracterizadas por ampla diversidade social e política: quarteladas lusófonas, confrontos entre facções locais ou regionais da classe senhorial, rebeliões envolvimento pobres, libertos, escravos e quilombolas.
A ênfase no viés descentralizador das reformas reduz erroneamente os embates a simples disputa pela centralização X descentralização (mundo do governo), liberdade e a propriedade, atributos da cidadania ativa no Império.
Regência trina Provisória – 17/06/1831 – a Lei de 14/06/1831 havia privado os regentes de importantes atribuições do Poder Moderador: dissolver a Câmara dos Deputados, concederem títulos nobiliárquicos, suspender as garantias constitucionais e negociar tratados com o governo, estrangeiros.
Apesar de manter a monarquia centralizada, pressupunha um Legislativo forte, assegurando à Câmara dos Deputados controle sobre o Poder Executivo.
A criação da Guarda Nacional 08/1831 manteve a ordem aos cidadãos ativos e introdução do critério eletivo para a escolha de oficiais de baixa patente; no mesmo sentido, promulgou-se do Código de Processo Criminal (1832), ampliou as atribuições do cargo de juiz de paz (magistrados locais eleito, assegurando controle jurídico-policial ao âmbito local).
Buscando compatibilizar os poderes central e local assegurou a unidade da ordem, medidas que atendiam às demanda de autonomia (interesse local/regional).
↓Pressões dos Liberais Exaltados e das divisões moderadas, a reforma do texto constitucional pelo Ato de 1834 limitou-se a criar o Município Neutro (R.J.), transformar os Conselhos Gerais das províncias em Assembleias Provinciais, não feriu a centralização política, os presidentes de províncias, nomeados e mantidos pelo Moderador e o Senado vitalício, majoritários na Câmara, os liberais moderados tiveram que ceder as constantes pressões dos deputados e senadores exaltados ou restauradores.
Oposição ameaçadora, fora dos espaços institucionalizados da política por meio da imprensa (pasquins, panfletos) movimentos de rua. As dificuldades multiplicaram-se com o crescimento das divisões no interior do grupo moderado.
O golpe de Estado parlamentar 06/1832: por moderados sob a liderança de Diogo Feijó (membro da Justiça) que pretendia transforma Câmara em Ass. Constituinte p/aprovar nova Constituição, sinais da 1ª cisão.
1835- eleições para o cargo de regente Uno, Holanda Cavalcanti obteve 2.251 votos, sendo derrotado pelo Feijó com 2.826 votos, tomou posse em 12/10/1835. Antes de concluído o mandato, surge a crise que eclode com Guerra dos Cabanos, Pernambuco 1835-40, Farroupilha – RGS e S. Catarina – 1835-45, Malês em Salvador – 1835, Sabinada – Salvador – 1837-38, determinou a divisão dos liberais em Progressistas e Regressistas.
Com a queda de Feijó 11/1837 e a subida de Araújo Lima 04/1838 como interino e após eleito, os defensores do restabelecimento da organização do Império nos moldes da Carta de 1824 seriam vitoriosos (inaugurado o Regresso), exaltados alinham-se aos progressistas futuros integrantes do P. Liberal (antigos restauradores) consolida-se bases sociais do P. Conservador e a vitória saquarema (designação dada aos conservadores fluminenses): setores da burocracia, grandes negociantes importadores, exportadores e detentores de privilégios e cafeicultores escravistas do Vale do Paraíba.
LEI INTERPRETATIVA DO ATO ADICIONAL de 12/05/1840: anula várias atribuições das assembleias provinciais vencendo o projeto centralizador. A construção do Estado foi consolidada em 1840 então com o alijamento dos outros projetos políticos. Reprimindo-se as revoltas herdadas.
O período Regencial teria representado um HIATO. 1°) Experiência positiva que interrompera o autoritarismo centralizador do 1° Reinado e que, seria recuperado pelo movimento republicano dos anos 70; 2°) Representava experiência anárquica, obstáculo ao andamento natural da revolução, iniciada com a emancipação política de 1822, que seria resgatada com a vitória do Regresso. O período regencial deve ser visto como parte do complicado processo de construção do Brasil.
A vida no Império Brasileiro tornava-se desprezível, mesmo porque a escravidão chegava a seus estertores sem um efetivo projeto de construção de cidadania plena para os oriundos dela. A vida destes elementos só se fará sentir quando absolutamente envolvidos na ambiência grupal, pois era o que lhes conferia corpo, lhe dava coesão, diante do assustador momento de transição. Fora dela, geralmente não encontram sentido para viver! Os valores formados intragrupos, não só são razões fundamentais de vida, como condição indispensável para a permanência como membro grupal. O caráter gregário dos corpos grupais entende-se sempre pelas conexões entre seus componentes. A tipologia de conexões, diferenciadas e especiais, garantem todo um conjunto de identidades intragrupais que se traduzem como regras e valores. É exatamente tecido nessa teia de relações o caráter, a conduta, o tipo de estima, a tradição, que colaboram para a permanência do grupo como corpo íntegro e integrado.
Privilegia a visão de processo em detrimento daquela marcada pela estrutura. Valoriza o todo em seu sentido corporal maior. Sustenta a importância das conexões ou relações que justificam o sentido do corpo do referido todo. O corpo parece residir num aprofundamento da concepção empírica da personalidade e numa teoria ontológica da pessoa, onde o substrato individual é indispensável a uma aspiração permanente do indivíduo ao convívio e à comunhão; e onde o outro é dado como elemento potencial de todo relacionamento social.
Podemos verificar tal cenário nos dizeres de Ruth Correa Leite Cardoso abaixo apresentado:
".... no campo da metodologia, o estudo de caso, a observação participante e a preocupação com a comparação estavam sempre presentes (antropológica), mas sem esquecer que o objetivo era e é, chegar a uma visão compressiva em que o geral não seja um empobrecimento do específico. A diversidade é desafiante, mas alguns acreditam que é preciso refletir sobre os contextos novos em que se desenrola a vida social para compreender os mecanismos de mudanças e, partindo dessas situações, buscar um novo quadro teórico para explicá-los.
O efeito das imensas transformações tecnológicas, na área da comunicação, trazidas pelas últimas décadas. Ainda mantendo seu gosto pelo materialismo, ele parte dessa nova base material para descrever o impacto da informatização sobre a cultura de todo o globo, e apresenta o conceito de sociedade em rede que resume as características do mundo contemporâneo globalizado.
A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram nova forma de sociedade, a sociedade em rede. ... Caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em rede; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e a individualização da mão-de-obra. ... cultura de virtualidade real constituída de sistema de mídia onipresente, interligado e diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida, o tempo e o espaço...criação de um espaço de fluxos e ... tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes.
... visão nova na construção de conexão que ligam as modificações do capitalismo contemporâneo e seus reflexos nas formas de trabalho e nos eixos fundamentais que organizam as culturas. Por um lado, a globalização impõe padrões comuns, difunde uma mesma matriz produtiva. ... nova tecnologia que apaga distâncias; por outro, propicia reações locais ... marcadas pela ampliação da comunicação e pelas novas práticas sociais. As transformações das bases materiais da vida deixam marcas locais não-visíveis,porque virtuais); ... mudam as formas de ação e as orientações básicas das culturas.... a questão da identidade, ou das identidades,... resistente à homogeneização ... mudanças socioculturais. ... existem tipos diferentes de manifestações identitárias.... marcadas pela história de cada grupo,.... E nem todas desenvolvem uma prática renovadora. ... se traduzem em resistência a mudança e ... em projetos de futuro.... porque a construção das identidades se desenvolve em contextos marcados por relações de poder. É preciso distinguir entre estas formas e as diferentes origens...base do processo de sua criação. Identidade legitimadora, origem ligada às instituições dominantes; Identidade de resistência gerada por atores sociais ... em posições desvalorizadas ou discriminadas. São trincheiras de resistência; e Identidade de projeto, produzida por atores sociais que partem dos materiais culturais a que têm acesso, para redefinir sua posição na sociedade.Qual grande interesse dessa tipologia? ... expõe a diversidade de manifestações que poderíamos enquadrar na categoria de movimentos sociais. ... novos movimentos... tradicionalistas... a própria classificação indica o papel inovador de certos movimentos, ... outros são obstáculos à mudança..... é que a dinâmica de cada caso explicará seu desempenho e, ... não existem 'bons' ou 'maus' movimentos, mas contextos dinâmicos a serem compreendidos.
.... a necessidade de enfrentar os fenômenos novos... dinâmica sociocultural. Sem classificações valorativas ou preconcebidas, e livre de um determinismo estreito. Castells apostou no movimento constante da sociedade e da cultura, ....
... atuação é fragmentada, ... redes globais e indivíduos centrados em si mesmos. ...não se articulam, ... suas lógicas são diferentes e suas coexistências não será pacífica; mas ... 'Produtiva' para a transformação da sociedade.
A globalização não apagou a presença de atores políticos. Criou... novos espaços pelos quais se inicia um processo histórico que não tem direção prevista. A criatividade, a negociação e a capacidade de mobilização serão... Importantes instrumentos para conquistar um lugar na sociedade em rede.
Assim, cabe sempre reeducar o olhar científico! Vale lembrar a letra da música que diz: "...é que narciso acha feio o que não é espelho..". A vida na diferença é mais rica em novidades e, por conseguinte, mais produtiva. Reside aí o que chamamos de reeducação do olhar. No sentido de estreitamento. Há uma quebra de padrão; uma mudança de paradigma! O mundo global anuncia uma nova forma de enxergar o mundo dos homens!
O conceito de Paradigma que adotado por S. khum como um termo científico em seu livro "A Estrutura das Revoluções Científicas", publicado em 1962, sugere que certos exemplos da prática científica atual, tanto na teoria quanto na aplicação prática, estão ligados a modelos conceituais de mundo, dos quais surgem certas tradições de pesquisa! Eles condicionam a atitude científica e estabelecem quais seriam os critérios de pesquisa, frequentemente ligados à maneira como se espera que o mundo deva funcionar. Valeria dizer que a ciência se constrói em cima de alguns fundamentos filosóficos bem definidos, mesmo que não sejam muito conscientes! Assim, o modelo induz a visão de mundo. A imersão em um paradigma, especialmente no paradigma dominante, prepara o cientista para se tornar membro de uma comunidade científica a que se sinta atraído. Se tivemos uma mudança de paradigma no mundo, nos deparamos com uma profunda alteração de percepção dele? Talvez devêssemos nos questionar se não foi sempre assim a nossa existência?!
Se o lugar é definido como ponto geográfico onde se reúne o conjunto de possibilidades e que ele pertence ao mundo todo, podemos dizer que o fato só acontece nos lugares do mundo! Mas principalmente, e tão somente, no mundo dos lugares! Basta termos as precondições para sua ocorrência. As possibilidades não estarão sempre latentes assim como as oportunidades, elas são fruto da criação humana! Nós fazemos a hora, sempre no calor dela!
Em todas as épocas históricas, as sociedades guardaram em sua forma de expressão uma simbologia própria, que garantia identidade, e traduzia para seu tempo as matérias como o poder, as relações sociais, a ética, dentre tantas outras.
Há muito sabemos da possibilidade de se mapear o perfil comportamental de um segmento social, ou de seus elementos, observando sua maneira de enfrentar a vida, suas formas de conviver, bem como os padrões de comportamento social, através de seus signos, ou seja, através das suas palavras. O dialeto próprio é, portanto, um instrumento importante para se conhecer a maneira de viver de um povo, uma sociedade, ou mesmo de determinado grupo social, em suas mais recônditas localidades ou em seu mais recôndito habitat, inclusive, dentro de seu próprio tempo. O conjunto dos símbolos que tratamos aqui, fazem parte do dialeto, que surge sempre entremeado de gírias, calões e jargões sempre regionais.
Por gíria, entende Aurélio, ser a linguagem dos malfeitores, malandros etc., com a qual procuram não ser entendidos pelas outras pessoas. Calão, a linguagem peculiar daqueles que exerce a mesma profissão ou arte. Entretanto, tal apreciação nos parece limitada e muito pouco esclarecedora. Ao consultar outros trabalhos como o do professor Benedicto Silva, verificamos que essas palavras se apresentam de forma diferenciada, separada e identificada com segmentos sociais distintos.
No conceito do referido professor, o vocábulo dialeto aparece como uma derivação do grego Dialektos, que designava, na Grécia Antiga, todos os sistemas linguísticos usados, para a expressão de determinado gênero literário, sem o prejuízo de sua condição de língua de comunicação usual. Contudo, já na língua atual, a palavra dialeto compreende as várias formas de língua, que são dotadas de sistemas lexical, sintático e fonético, diferentes em relação a essa língua. Todavia, guardam traços de seu recíproco parentesco, pois língua e dialeto pertencem à mesma família linguística.
O calão nos interessa especificamente, pois permite verificar o comportamento dos marginais, ou excluídos sociais, sua Vida Marginal e/ou de exclusão, e os móveis de seu mundo.
Segundo o professor Benedicto Silva, o calão corresponde a uma acepção bisca do dialeto, porque dotado de variação semântica, introduzida quer pela criação neológica, quer pela conotação e usado por alguns grupos sociais.
O calão constitui-se numa forma, ou caminho para a identificação grupal entre os membros do grupo, ou corpo, sendo ao mesmo tempo, diferente em relação aos demais, notadamente aqueles que compõem estamentos sociais dominantes.
Entretanto, seu uso permanece restrito àqueles grupos de marginais, ou excluídos, e são usados em momentos e circunstâncias extremamente particularizadas, por elementos não pertinentes a outros grupos. As Ciências Sociais o apresentam de maneira peculiar, e sua conceituação diferencia-se daquela sobre a gíria.
O calão é uma forma usual de identidade social, mas também de diferenciação. Observando antigos estudiosos como Durkheim, percebemos que ele associa a diferenciação social ao aumento do número de grupos e a impessoalidade e autonomia das relações que a marginalidade urbana, uma vez vista como tal, na época e região que observamos, guardava peculiaridades também na língua, no dialeto, no calão que usava. Essa diferenciação estava frequentemente presente entre eles, e guardava elementos fundamentais de identidade.
Ainda não temos informações completas que permitam verificar a diferenciação intergrupal, ou mesmo intragrupais, através dos calões usados pela marginalidade do século XIX no Rio de Janeiro. Mas acreditamos ser possível observá-la por esse viés.
Sabemos que a língua é o elemento básico na difusão do saber e de saberes dos quais nem desconfiamos existir. Sempre nos ilumina! Veicula e promove para uma determinada sociedade verdades de um povo, amores incontidos e até mesmo irrefletidos. Toda uma infinidade de emoções. E as emoções são sempre o que valem mais!
Tive sim! Outro grande amor antes do seu, tive sim! O que ela sonhava eram meus sonhos e assim, Iamos vivendo em paz. Nosso lar, em nosso lar sempre houve alegria, Eu vivia tão contente. Como contente eu a seu lado estou. Tive sim! Mas, comparar com o seu amor, seria o fim. E vou calar, pois não pretendo amor te magoar.
Cartola, sambista e compositor
O mais impressionante é poder apresentar o acima escrito, podendo dizer que se tratava de algo feito por alguém analfabeto. Em se tratando de sua propagação, ela permite ver mais, pois consegue adentrar, ver a dinâmica interna de um determinado grupo, ou corpo sociocultural, identificando-os sempre! Classifica e esclarece a relação de poder dentro do grupo. Possibilita que leiamos o não escrito e extraiamos o perfil de sua dinâmica social. Através da língua é possível identificar até mesmo a etnicidade e a índole de um grupo.
Observamos a marginalidade da cidade do Rio de Janeiro na época em questão, ou seja, início do século XX, procurando abordá-la pelos seus símbolos comuns, aqueles proferidos cotidianamente pelos seus elementos.
Buscaremos com isso demarcar o mais real espaço de atuação dos excluídos da sociedade na segunda metade do século XIX, revelando, se possível, seu mundo do saber, ou saberes, ou ainda pré-saberes. Tentaremos reconstruir os móveis que compunham o ajuste, ou o dito desajuste em que se encontravam e, com isso, nossa preocupação será a demarcação de alguns dos seus territórios. Acreditamos que tal apresentação demonstre possuírem luz própria, com a qual se conduziram na Vida Marginal e/ou corpos socioculturais da exclusão social.
O estudo trata de toda a forma de expressão usada por um participante marginal em geral e, especialmente, do capoeira, que caracteriza a época e o espaço frequentados por essas pessoas, que se comunicavam com facilidade dentro do seu mundo, usando uma codificação que não passava pelo conhecimento dos transeuntes comuns, alheios ao seu linguajar.
Essas maneiras de usar palavras não comuns ao convívio da sociedade oficial traduziam toda uma cultura particular, saberes singulares que lhes conferia poder até quando se falava do amor, do sublime. Sempre foram capazes de se revelar. A posse desse saber garantia-lhes o espaço do poder necessário à autodefesa do grupo. Isso gerava, como gera até hoje, uma das diferenças entre os marginais, ou os habitantes da exclusão sociocultural, e os outros grupos, ou seja, a diferença provocada pelo acúmulo de saber.
Esse saber era formado por um conjunto de signos, que servia como mais um escudo contra os possíveis invasores, principalmente a polícia, no somatório geral dos elementos que compunham a vida marginal na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX.
Não se pode estudar o capoeira como grupo social paralelo sem verificar a desafiadora relação do seu universo simbólico com o ideológico. Há muito que se tem tentado fazer incursões no referido lado. Há uma forte conjugação de interesses entre os historiadores modernos no sentido de verificar a história por esse viés.
O pesquisador Carlos Ginzburg, partindo da perseguição, partindo do chamado Sabá com o claro objetivo de levantar indícios de sua origem mais remota, desenterra um estrato de crenças rituais de origem imemorial que existira por um grande espaço geográfico, comportando o extremo leste da Sibéria até o litoral ocidental da Península Ibérica.
Empreendeu esta tarefa através da utilização da morfologia histórica da cultura religiosa pan-europeia caminhando pela convergência de ritos, mitos e indícios.
Em seu trabalho partiu de fontes do folclore europeu, e da documentação jurídica da Inquisição, realizando magistral pesquisa de história cultural, que causou verdadeira revolução no trato da temática sobre as raízes da mitologia e da religiosidade europeia.
Em nosso caso, o que levantamos, embora não demarque de forma acabada um perfil da tradição africana no Brasil, possibilita estabelecer um contexto histórico rico em indícios na Vida Marginal, ou vida de corpos socioculturais autônomos do Rio de Janeiro na época.
Estes denotaram uma trama existente nos conjuntos de elementos culturais e simbólicos dos comportamentos do capoeira, dando-lhe coerência no papel desempenhado.
Há muito que se tem tocado criticamente no tema do capoeira para elaboração de estudos sociais, haja vista a construção de uma variedade de abordagens do assunto que diferem de forma múltipla. Várias indagações foram feitas. O primeiro escritor totalmente integrado nesse estudo foi Alexandre Mello Morais Filho, cuja obra destacava-se pela contemporaneidade no trato do capoeira, mesclada com o sentido de luta nacional. Tal maneira de observar vai marcar grande parte da produção literária no Brasil.
Como a febre amarela, que não sabemos porque espanta tanta gente e quer-se a todo transe debelar, a capoeiragem, que, uma luta nacional degenerando em assassinatos tem merecido perseguições sem descanso, guerra sem condições.
Melo Morais acabou tão importante no trato da questão que chegou a ser citado por Machado de Assis em suas Crônicas e Silvio Romero na obra A Poesia popular no Brasil. A partir de 1890 surgiu a primeira edição de O Cortiço, de autoria de Aluízio de Azevedo, onde aparece a figura de Firmo, um mulato capoeira, compondo um estereótipo característico. A Revista Kosmos que pertence à virada do século XIX para XX, mostraria a questão do capoeira pelas virtudes defensivas de luta.
Dois grandes capoeiras,... com conhecimentos exactos, perfeitos e totaes do jogo, jamais se ferirão, a não ser insignificante e levemente,...
Após, o escritor Pires de Almeida mostraria a capoeira como sendo algo semelhante ao boxe. Nos anos trinta do século passado, Coelho Neto publicava em Portugal um pequeno trabalho que realça as qualidades de ginástica da capoeira, dizendo que deveria ser ensinada nas escolas,quartéis, lares, ou seja, em qualquer lugar. Vários outros autores caminharam no sentido de seguir os passos de Coelho Neto. Foram eles: Luiz Edmundo, Manoel Antonio Almeida, Lima Barreto e outros. Outra corrente que não procurava o resgate da capoeira, procurando retirá-la da situação de esquecimento em que havia sido envolvida foi representada por Elísio de Araújo, Vieira Fazenda e Feijó Júnior.
Fora esses havia aqueles que tratavam a questão de maneira folclorística, pois tinham uma visão do capoeira voltada para a origem escrava e tentavam rastrear seus passos através do abolicionismo, como Manoel Raymundo Querino, Francisco Augusto Pereira da Costa. O ponto alto da produção literária sobre a capoeira foi com a obra de Edison Carneiro e Luís da Câmara Cascudo.
O primeiro, buscava ver o capoeira como uma festa, um espaço de encontro, via nela uma atividade lúdica. Câmara Cascudo já observa a questão pelo campo obscuro de sua origem. Busca um elo entre o Brasil e a África. Em seu trecho abaixo apresenta essa preocupação.
Jogo atlântico de origem negra, ou introduzido no Brasil pelos escravos bantos de Angola, defensivo ofensivo, espalhado pelo território e tradicional do Recife, cidade de Salvador e Rio de Janeiro,...
Durante os anos cinquenta e sessenta tivemos uma grande variedade de publicações sobre o assunto, onde se destacaram: Renato Almeida, Hermeto Lima e Agenor Lopes de Oliveira. Em suma, a linha folclórica busca recuperar o capoeira pelas festas, manifestações culturais genuinamente brasileiras e expressão da nacionalidade. Entretanto, no plano da observação histórica, esta visão somente recupera o lado do memorialismo sem maiores aprofundamentos.
Uma importante tentativa de avançar no campo da investigação histórica foi o trabalho de Waldeloir Rego que apresenta a particularidade de adicionar ao estudo da escravidão uma análise com base em hipóteses sobre a raiz da capoeira. Foi o auge da corrente folclorística. Observando a produção moderna sobre o tema, em busca da história da vida marginal coletiva, procurando nela o cotidiano do povo, destacou-se Adolfo Morales de Los Rios Filho, que faz um conjunto de importantes observações sobre a origem escrava e capoeira, apontando a escravidão urbana como berço da capoeira.
Durante os anos setenta a antropologia e a história voltariam seus olhares sobre a questão. Destacaram-se Gerhard Kubike e Julio César Tavares.
Los Rios, pela primeira vez, aponta a capoeira urbana como a configuração mais perfeita da origem da capoeira:
Adeptos da capoeiragem fizeram-se, desde logo os pretos ao ganho, os negros de carro e carrinho, os mariscadores, peixeiros e pescadores de canoa e caniço, e toda classe de carregadores marítimos ou não.
Júlio C. Tavares constrói um conceito do saber corporal que, segundo ele, era parte da cultura africana, diferente da nossa posição, que afirma ser esse gestual construído na rua, dentro do Rio de Janeiro. Afirmamos isso por ser a cidade o espaço da liberdade para aqueles que viviam principalmente na desocupação. As memórias gestuais, que o autor aponta como fruto dessa liberdade vivida nas ruas, onde o híbrido se conjuga, cria o espaço da resistência e da identidade. Contudo, quando se deteve sobre esse particular apresentou, na época, uma forma revolucionária de abordar a questão.
Muniz Sodré, já parte para a construção de um conceito de cultura explicativo de diáspora afro-negra do Brasil, afirmando que a capoeira funcionava como símbolo da resistência a escravidão, possuindo um significado de mistura em que se conjugavam através da luta-festa que, de uma certa forma, os mantinha reunidos na dispersão.
Durante os anos oitenta, encontramos uma variedade de produções literárias sobre o tema. Comemorava-se o centenário da abolição que incentivou uma produção febril sobre o assunto. Vários artigos e trabalhos foram escritos. Autores como Marcos Bretas e Thomas Holowey demonstraram existir vasto material ainda não explorado acerca do capoeira.
Dentro do Rio de Janeiro o pesquisador Luíz Sergio Dias analisa a capoeira e sua força enquanto arma de resistência do escravo dentro do ambiente urbano. Os autores Luis Renato Vieira, Maria Ângela Borges Salvadori e Letícia Vidor de Souza Reis, apresentam as novas tendências da pesquisa acerca desses objetos de estudos.
O primeiro voltou seus estudos para a capoeira chamada Regional na Bahia de 1930, apresentando-a como uma nova influência da elite intelectual na cultura do povo. A segunda, embora não apresentasse a capoeira como tema básico de seu trabalho, fala sobre a malandragem do Rio de Janeiro no século XIX, voltando-se para a observação musical popular do período, e preocupa-se com os dois estilos que vão servir de parâmetros para a capoeira no século XX, o Angola e o Regional. Analisa as linguagens corporais da capoeira, procurando compreendê-las no interior do processo de construção da identidade negra, a partir da observação das duas manifestações referidas, considerando-as como propostas negras distintas de integração na sociedade do branco.
Carlos Eugênio Líbano Soares busca levantar indícios que iluminem o caráter da participação política dos grupos de capoeiras na Corte nos últimos anos do regime monárquico, tendo como referência dois eventos que marcaram a história do império. A Guerra do Paraguai e a Abolição do Cativeiro, em 1888. Procura ainda desenvolver uma conexão política, ou vaso-comunicante que ligaria o Partido Conservador e as Maltas de capoeiras, ou seja, corpos socioculturais autônomos que infestavam a cidade do Rio. Tal ligação só poderia ser por conveniência e conivência, talvez cooptação, mas se trata de uma outra discussão que também já foi por nós iniciada aqui em outros trabalhos como O desafio do olhar..., também publicada por este site.
Voltando ao assunto, este trabalho empenhou-se em verificar a questão citada pelo flanco do dialeto, ou semidialeto das ruas, buscando demarcar os vários espaços onde se encontrava não só o capoeira, mas o marginal comum, do cenário da exclusão sociocultural do Rio de Janeiro, ressaltando as áreas de acesso da marginalidade, ou melhor, a prática marginal e os tipos de poder exercidos dentro do período que vai de 1850 a 1890 na cidade.
Como nenhum desses trabalhos mencionados tratou da questão do discurso, do dialeto, optamos por esse viés que acreditamos bastante interessante para demarcar a Vida Marginal, a vida da exclusão sociocultural das ruas. Através dela podemos observar os sinais do ideológico que marcava o referido segmento social, ou corpo sociocultural. Por exemplo, o fato de ver o mundo de pernas para o ar, demonstra uma forma peculiar de comportamento diante dos desafios da vida cotidiana, onde invertido o eixo do corpo, habitualmente localizado no plexo solar, este papel passou a ser desempenhado na capoeira pela região de entre pernas, parte vital tanto no ataque quanto na defesa, como denota a letra desta música da capoeiragem.
O facão bateu embaixo / A baioneta caiu / Pega esse nego / Derruba no chão / Esse nego, valente / Esse nego, o cão / A canoa virou, marinheiro / No fundo do mar tem dinheiro / Marimbondo me mordeu / Me mordeu foi no umbigo / Se mordesse mais embaixo / O caso tava perdido
Autor desconhecido.
Na segunda estrofe, uma clara preocupação em levar o oponente para baixo (chão), pois era o local onde o capoeira melhor ludibriava o outro. Era na região da cintura para baixo que se concentrava toda a ginga, malícia e, portanto, era lá que se concentrava a dança-jogo-luta na sua acepção mais forte e significativa. Ali, o mágico da mandinga se configurava e desenhava os movimentos do ludibrio, totalmente ilusório e surpreendente, ampliando-o numa luta cuja reserva de saber concreto dentro dos PEGAS convergia para o abdômen do oponente rasgado pela navalha. Nessa área ele sabia mais e, por isso, detinha o poder e o controle absoluto dos movimentos, da surpresa, da ilusão, quase sempre logrando vitórias ao evitar que o espaço do outro se estabelecesse.
Tratava-se de um tipo de poder embasado no saber mágico, que demarcava a área de atuação do capoeira e aparecia sempre para o oponente como o lugar onde devia se cercar de muita prudência.
No campo simbólico, encontramos inclusive uma certa rivalidade mesmo entre os citados símbolos usados por eles, que passava pelo ideológico. Identificavam-se por sinais, cores, signos, por onde se expressavam na luta, e por essa rivalidade. Dentro do simbólico, as cores também representavam ligações significativas. Câmara Cascudo nos revela seus significados.
Branco, pureza, alegria, dedicação aos santos não martirizados, a Virgem Maria. Vermelho, sangue, sangue dos mártires, língua de fogo de Pentecostes. Os santos africanos (orixás jeje-nagôs), tem suas cores e suas filhas, usam dessas cores como os fidalgos usavam as cores das Casas onde serviam como vassalos. Oxalá, branco, Xangô, vermelho....
Podemos verificar que havia uma ligação entre a cor e a importância dela no mundo do capoeira. Ela se constituía em muito mais que mera identificação. Representava o desejo incontido de conectar suas práticas a um sentido maior do divino. A explicação dessa vontade consistiria na própria marginalidade, ou exclusão sociocultural, em que viviam sempre buscando identificação com aquilo que lhes garantisse algum suporte dentro do sabrado. O vermelho era afugentador dos maus espíritos, representava o sangue, era usado para afugentar os elementos adversos, assombração de inimigos e oblações religiosas. Já o branco significava a paz, a pureza etc. Tais cores também eram e são sacralizadas nos terreiros de 'Umbanda', onde representam o Exu Tranca-Rua, ou Zé Pelintra, que são entidades distintas. Moraes Filho revela-nos uma forma particular de divisão entre eles através do vestuário usado:
"Qual seu pessoal? Geralmente era composto de africanos que tinham como distintivo as cores e o modo de botar a carapuça, ou de mestiços (alfaiates e charuteiros), que se davam a conhecer entre si pelos chapéus de palha ou de feltro, cujas abas reviravam segundo convenção.
Contudo, o universo dos calões sempre apresentava o modo de tratar determinadas coisas e situações, demonstrando a forma própria de pensar sobre elas. O entendimento de sua simbologia refletia-se nas maneiras de pensar a vida vivenciada pelo marginal, principalmente o capoeira, dentro da segunda metade do século XIX, na conjuntura dos fatos que os cercava na cidade e dentro do segundo Reinado.
Os calões exprimem sempre a cultura dos marginais e das pessoas excluídas da sociedade. Tanto o capoeira como o marginal comum, tinham um discurso próprio, que traduzia sua visão de mundo.
Cada Malta tinha sua bandeira e sua forma de pensar própria, cuja expressão também aparecia nas músicas, como podemos ver abaixo na quadrinha que registra a importância do líder, alguém que realmente incomodava, ou deveria incomodar os componentes de outras Maltas, mas trazia estímulo aos seus companheiros. A figura do líder demonstrava a necessária referência de ordem reclamada pela Malta, pois lhes garantia elementos como coesão, objetivo, segurança, e principalmente, um reforço maior aos poderes subalternos dentro do Grupo de capoeira.
O Castelo içou bandeira/ São Francisco repicou, / Guayamú está reclamando/ Manoel preto já chegou!
Assim, temos um quadro em que o simbólico aparece confundido e representando uma prática de Vida Marginal, vida essa que apresentamos como uma das principais componentes do espaço da desordem, da mitologia e da religiosidade europeia.
Tais formas de solidariedade expressas pelos grupos marginais, principalmente os capoeiras dentro da cidade do Rio de Janeiro do século XIX, eram variadas. Sua A solidariedade passava pela negação do individualismo. Formava um grupo definido dentro damassa indefinida, o povo marginal sem identidade, viviam uma forma grupal diferenciada enquanto nebulosa de pequenas entidades locais. Suas "máscaras só valem por serem representadas em conjunto e elas atribuem a ideia de totalidade dentro do corpo grupal. Seu discurso traduz uma forma de vida marcada pelo localismo. Suas expressões traduzem formas de vida e movimento do mesmo grupo, estabelecendo uma coesão empática pela solidariedade grupal.
Cada malta tinha suas regras específicas e exigia muita fidelidade. Na verdade, as maltas de capoeiras configuravam-se em braços armados dos dois partidos mais importantes do poder. Garantiam, também por esse viés, sua sobrevivência, pois a perseguição que sofriam era por demais violenta. Evaristo de Moraes faz deles um relato enquanto elemento de instrumentalização política da época.
Estava no domínio público a razão principal da impunidade que eles gozavam. Era que chefetes políticos de algumas paróquias não se vexavam de protegê-los, em compensação de serviços que prestavam por ocasião das eleições...
Cada uma delas se escondia de futuras perseguições da polícia, ligando-se a partidos políticos da época. Apesar disso mantinha sua linha de conduta e, de certa forma, sua integridade grupal.
Aos poucos os capoeiras foram se agrupando, a ponto de constituírem duas nações; a dos guaiamus, que mantinham entre si rivalidade intransigente, fazendo guerra uma outra. ... Uma das nações se ligara aos conservadores, outra aos liberais. Assim, quando eram perseguidos os guaiamus, folgavam as costas dos nagôs, e vice versa..
Possuíam localidades de domínio, que geralmente eram bairros, locais onde se reuniam sempre. Em tais locais estabeleciam sua territorialidade.
O capoeira antigo tinha igualmente seus bairros, o ponto de reunião das maltas. Suas escolhas eram as praças, as ruas, os corredores. A malta de Santa Luzia chamava-se de luzianos; a do Castelo de Santo Inácio; a de São Jorge da lança; dos ossos; do Senhor do Bom Jesus do Calvário; Flor da Uva, a de Santa Rita, etc....
No que tange ao corpo de suas regras comportamentais, configuradas sempre pela ação, o capoeira demonstrava ter um domínio absoluto do seu papel no grupo. E isso nos revela uma outra face de seu perfil. Ele não conseguiria manter-se enquanto grupo, se não tivesse um conjunto de comportamentos regrados por hábitos e costumes extraídos do convívio comum. Tal fato demonstra que, independente das ligações político-partidárias, eles eram um grupo coeso, sólido, e com um script a seguir, qualquer que fosse a manipulação externa que poderia vir a sofrer. Tinham cores, enfim, toda uma simbologia de identificação e, nesse particular, não havia qualquer influência que lhes corrompesse o quadro de referências.
O fato de se ligarem a partidos políticos devia-se a uma forma de coopção oportuna pelo lado das correntes políticas da época, que garantiam, assim, o envolvimento de parte de uma população marginal num tipo de luta. Todavia, dentro dessa luta, encontramos uma outra, aquela em que se enfrentava maltas adversárias por questões diversas, principalmente a de territorialidade e disputa pelo poder, não só nelas, mas, entre elas.
Um dos embates que frequentemente provocava choques entre maltas de capoeira era causado pela invasão de território, como abaixo descrito:
... às 8 horas da noite de ante-hontem uma numerosa malta de capoeiras reunida na rua dos Ourives, esquina de São José, ponto de predileção dos capoeiras... De repente levantou-se o tumulto, sacaram-se facas e aquele pedaço transformou-se em campo de batalha. Poucos minutos depois um desgraçado corria gritando, e com as mãos apertando o peito, de onde escorria sangue, enfiara pela rua da Ajuda e logo cahiu morto. Era o criolo Oscar... era conhecido como capoeira, e já uma vez fora ferido na Freguesia da Glória. Ante-hontem vinha elle desta freguesia como chefe de um bando, e ao chegar . rua dos Ourives encontrou-se com outro bando, dahi a lucta....
Formava-se em partidos aguerridos, definido pela empatia, ou seja, grupos muitos fechados onde a mobilidade social se fazia pelo destemor nas lutas e o acúmulo de saber na prática da malandragem, do ludibrio das dificuldades.
Foram formados os partidos aguerridos, as maltas como eram chamadas: Conceição da Marinha, Moura, Lapa, Carpinteiros de São José, etc..."
Dentre os calões mais característicos, estavam aqueles que caracterizavam os capoeiras que mudavam de um partido (Malta) para outro. Quando isso acontecia, dizia-se que o elemento acabara de CAMBAR. Tal fato trazia desconfiança, demonstrava que o integrante não era mais fiel as cores de sua Malta de origem. Quem cambava perdia toda a proteção que outrora gozava no grupo anterior. Acabava ficando numa condição pendular temporariamente, pois, por um lado, o fato de ter pertencido a outro grupo impunha-lhe o dever de conquistar a confiança dos novos companheiros. Era-lhe muito ingrata tal posição, mesmo que momentaneamente. O esforço para ser aceito devia ser muito grande, e a condição de insegurança um fator de forte instabilidade. Por outro lado, teria que buscar a conquista, no novo grupo, da confiança perdida no anterior. Cambar, para o grupo, era violar a ideia de corpo do grupismo. A insegurança deveria trazer-lhe a sempre fantástica imagem do medo de errar. Sabemos que a relação que existe entre a imagem do medo e a real condição de risco de perigo, quase sempre, é extravagantemente fantástica. Somente pelo fato de ser uma imagem, já permitia abrir espaço as fantasias mais absurdas.
Daí acreditarmos que não seria fácil conviver com tal situação, mesmo que apenas imaginária. Envolvido por esse quadro, devia sofrer muito, ainda que fosse por um tempo. As pressões da condição social pendular em que se encontrava eram reforçadas pela falta desconfiança do novo grupo, que naturalmente o poria em processo de teste constantes. Ficava ele sempre na obrigação de provar fidelidade a nova malta. Tornar-se do corpo, era elemento necessário para o ingresso, ou mesmo reingresso, no grupo.
Todo o tempo que aquele elemento que cambava tinha para conquistar a confiança dos novos companheiros capoeiras, se apresentava como espaço da incerteza. Era um momento em que não podia mais contar com o apoio do antigo grupo, que passava a repudiá-lo, como traidor e não podia confiar totalmente nos novos companheiros. Cambar era a maneira mais fácil de perder a identidade e, por conseguinte a proteção de um grupo qualquer. Mas, por outro lado, readquiria a individualidade, mesmo que provisória.
Cambar era, sobretudo, perder temporariamente, pelo menos o direito de Bramar, ou seja, gritar o nome da área, ou casa a que pertencia, com a certeza de que seria acreditado. Porque simbolicamente isto traduzia a importância e o poder do grupo como um corpo integral. O grupo passava a ser um vigilante de seus atos. Observava-o sempre, na desconfiança de que o elemento continuaria ou não, a proferir o nome de sua Malta de origem, da qual ainda lhe restassem alguns vínculos. Caso isso acontecesse ,poderia ser castigado.
Portanto, o elemento vivia sempre perseguido. Tal situação se dava na relação das Maltas entre si. Era uma questão de identidade levada a sério entre a marginalidade dos capoeiristas. Nesse caso, a individualidade readquirida não gozava de liberdade plena. Estar sem grupo configurava uma condição de fragilidade ao capoeira. Notamos que a vida marginal, no que se refere as relações entre os integrantes, era bem rígida e envolvia sérios compromissos.
O grupo que havia abandonado poderia vê-lo agora como um Mole, ou seja, um covarde. Mole também era aquele que fugia da luta corporal, que evitava sempre o confronto e o desafio. Enquanto o indivíduo não começasse a endireitar, ou seja, enfrentar o inimigo, não ganhava o perdão e a confiança de seus pares.
Como podemos ver, as regras eram rígidas. Contudo, permitiam uma abertura possibilitadora de reentrada do capoeira no grupo.
Tal possibilidade lembrava-o da segurança de viver no corpo grupal, coletivamente. Era-lhe mais seguro socialmente. Não fugir era conhecido como Firma, tinha um significado oposto a palavra Mole, e a conquista dessa posição devia ser muito difícil para aquele que cambava. Mole era também uma forma de classificar aquele em processo de exclusão no corpo do grupo.
O ato de fugir está representado aqui de maneira bastante clara nas palavras de Plácido de Abreu:
Quando faziam uma qualquer marcha que, um partido ir de encontro a outro para briga, procedia-se sempre mediante aviso . casa contrária afim de que reunisse o bando. Na ocasião da pegada era costume cantarem versos em uma toada sertaneja... Manoel Preto foi um capoeira temível, chefe do bando de Santana. Os capoeiras que na ocasião da pegada fugiam por cobardia eram navalhados pelos próprios companheiros..
No claro objetivo de evitar tais comportamentos, havia empenho no sentido do componente integrar-se plenamente a sua malta. Daí haver a necessidade de recrutar jovens para a prática da capoeiragem.
O recrutamento do capoeira era feito ainda quando moço. Havia todo um processo de aprendizado e internalização dos conceitos, normas de conduta do grupo, pautado por um conjunto de regras. Os registros de Plácido Abreu demonstram esse processo.
Há pouco tempo o bando Guayamu costumava ensaiar os noviços no morro do Livramento, no lugar denominado Mangueira. Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manhã e constavam dos exercícios de cabeça, pé, e golpes de navalha e faca. Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores . àqueles que começavam. A princípio os golpes eram ensaiados com armas de madeira e por fim serviam-se dos próprios ferros, acontecendo muitas vezes de ficar ensanguentado o lugar dos exercícios.
Acima vimos uma descrição do processo de enfrentamento entre eles nas Maltas. Mas, entre o ensaio e a situação de real perigo, havia enormes distâncias e as reuniões para o iniciante funcionavam também como um exercício de coesão, força organizativa, frente às maltas adversárias. Todas faziam isso.
Os Nagôs faziam os mesmos ensaios, com a diferença que o lugar escolhido por eles era a praia do Russel, para os partidos de São José e Lapa, e morro do Pinto para o de Sant'anna.
Eles treinavam constantemente e eram muito hábeis. O fato de serem chamados de desordeiros acabava tornando-se impróprio. Se aceitarmos essa colocação de desordeiros, temos que admitir, havia uma ordem inversa neles, que se contrapunha à repressão. Não havia condições de enfrentá-los sem que se admitisse e conhecesse a sua ordem interna. Para termos uma ideia disso, apresentamos todo o seu rito de saída para um pega.
A notícia da saída de uma banda de música corre com rapidez de relâmpago entre os bandos de capoeiras. Desde logo começam a reunir-se nas fortalezas a espera da hora em que devem tomar a frente a frente do batalhão ou sociedade, e ali combinam o que devem fazer, Quase sempre a miuçalha, incumbida de levar as navalhas e mais armas. Em outras épocas estes instrumentos de combate eram escondidos em samburás, entre verduras e carne fresca, para assim iludir a vigilância da policia; na atualidade, foi desprezado esse meio por ser muito conhecido. Quando, por exemplo, a banda de música sae do centro da cidade, isto é, da terra dos Guayamus e dirige-se para os lados da Lapa, ou Cidade Nova, os capoeiras que pertencem aqueles partidos acompanham o batalhão prevenidos para o encontro com os Nagôs, visto irem em terra alheia.
Estes já os esperam, e chegada a música ao local onde se acham, sae o carrapeta (pequeno, esperto e atrevido) de entre os companheiros com direção aos Guayamus e brada: É a Lapa! ... É a Espada! Quando , daquela província.
- É a Senhora da Cadeira! ... Quando de Sant'Ana. O Velho Carpinteiro! ... Quando, de São José.
Então trava-se a lucta..
Neste brado estava a presença do simbólico invasor do território alheio. Elemento veiculador do antagonismo. Lembrava também que a territorialidade do outro estava ameaçada. Audaciosamente, o comportamento do carrapeta anunciava a presença de um outro corpo grupal oponente, que era estranho aos domínios do grupo local.
O treinamento era constante, embora reprimido pela autoridade policial.
Por se achar em exercício de capoeiragem anteontem a tarde no Largo da Carioca., foi preso o preto Augusto, escravo de João Gomes Xavier.
O treinamento constante em praças e largos também contribuía para lembrar aos transeuntes a área geográfica de seu domínio. Mesmo sofrendo repressão da polícia:
APRENDIZ CAPOEIRA. Ante-ontem divertia-se o menor Antônio Soares de Araújo em exercícios acrobáticos de agilidade, que o vulgo chama de capoeiragem. O campo de exercícios era o largo da Sé, onde o rondante, não apreciando aquela cena, levou Antonio para a primeira Estação da Guarda Urbana.
A formação do capoeira, designada em Antropologia como rito de passagem, que consiste no conjunto de representações simbólicas que preparam o jovem para se tornar homem adulto, ou o conjunto de desafios obrigatórios para o referido jovem participar plenamente do grupo ao qual pertence. O Rito de Passagem, um fenômeno muito comum, pertence a uma variedade múltipla de formações sociais.
O aprendiz da capoeira era chamado de CAXINGUELÊ. Ele acompanhava as maltas em seus pegas, ou embates, como veremos mais adiante. O aprendizado as vezes era feito de forma coletiva. Levando-se em consideração que a prática de capoeira representava, na maioria das vezes, uma afronta ao direito de liberdade e segurança dos súditos da coroa, pois provocavam turbulências entre as maltas e a polícia, ela demonstrava no mínimo, a falta de eficiência na ação de combate aos praticantes desse jogo-dança-luta.
Parece averiguado que o Largo da Sé, o campo escolhido para os recrutas da arte. Hontem as 2 horas da tarde José, Leandro Franklin, veterano experimentado, e o noviço Albano, aquele ensinando, este aprendendo,as artes e agilidades da capoeiragem, foram surpresos nos seus estudos pelos Guardas urbanos que mudaram-lhes o curso para o xadrez da polícia. As preleções de Franklin assistiam muitos colegas, e talvez aspirantes, mas estes infelizmente evadiram-se.
O grau de violência dos capoeiras para com a polícia era tão alto, que se discutiam, na oposição, as características da comportamentalidade da ordem oficial vigente naquela época. Mas a disputa pelo espaço territorial entre as Maltas também acabava trazendo uma necessidade de coesão e beligerância entre eles. Conhecemos essa disputa pelo espaço urbano pela designação de territorialidade. Ou seja, salvo exageros, não é mais ou menos, o que se dá hoje? Ela define um outro espaço do poder, aquele que se delimita apenas na geografia física da área de domínio.
Na noite de seis para sete de janeiro de 1870, sahindo a passeio uma Sociedade de Reis, dirigida por um Reginaldo de tal, foi agredida pelos capoeiras da Glória, capitaneados pelo Pinta Preta, ficando ferido o menor do Arsenal de Marinha Eduardo Felício, que tocava pistom, acompanhando aquela sociedade. No dia seguinte, Manoel Maria Trindade, vulgo Manduca Tambor, ou Manduca Trindade, Antônio Pereira da Silva, vulgo Antonico Moleque ou Antonico Capitão, Prudêncio José, Ferreira, José, da Silva Balão e outros, concertavam tomar um desforço dos capoeiras da Glória, considerando aquele ferimento um insulto a sociedade da qual eles faziam parte. À noute, acompanhando a mesma sociedade, tiveram aviso de que o Pinta Preta e os 'Nagôs' (Capoeiras da Glória) estavam na Rua da Alfândega: para alli correram disfarçados, deram-lhes algumas cacetadas, e quando elle caiu, Trindade fez-lhe o ferimento. Trindade e os seus apitaram de modo que quando veio a polícia, figuravam elles como vítimas dos Nagôs e serviram de auxiliares em algumas prisões que foram feitas de capoeiras da Glória. No dia seguinte foi preso João Maria da Silva Seabra, conhecido por Dr. Cereja, por estar com uma faca, gabando-se de que com ela tinha sido ferido o Pinta Preta. Respondeu a jury e foi absolvido."
A verdadeira razão que embasava todo o episódio narrado acima foi desconhecida pela polícia. Isto demonstra o quão distante estava a repressão de conhecer a realidade dos grupos marginais (capoeiras) envolvidos. Estes possuíam trajetórias de vida coletiva que não era compreendida pelo poder policial. Eram dois mundos diferentes, cuja comunicação somente se fazia pela violência. À polícia, somente interessava a ordem do poder e a segurança individual e coletiva da população como um todo. À marginalidade somente interessava a permanência da ordem e integridade interna, grupal, além da segurança e permanência do mesmo, principalmente no aspecto físico. Eram microgrupos compostos de desordeiros da sociedade, na visão das forças de repressão dentro do Rio de Janeiro.
No segundo Reinado o Rio de Janeiro vivia totalmente redimensionado por maltas de capoeiras. Era um dimensionamento do marginalismo, em se tratando de uma observação do espaço urbano da cidade. Depois, passa a comportar duas grandes Maltas que se destacavam: a dos Guayamus e a dos Nagôs. No caso dos Guayamus o ponto mais frequentado era a freguesia de Santa Rita. Tal localidade era uma área portuária repleta de cortiços exatamente entre os morros de São Bento e Providência. A malta dos Nagôs tomava desde a Praça 15, até o Campo de Santana. Esses dois grupos tinham uma forte subdivisão. Eram as maltas que se agregavam.
Estabelecia-se fisicamente, na cidade, o poder da ordem (polícia) e a potência oposta (marginalidade, e/ou excludência sociocultural), que conviviam numa luta cotidiana. Contudo, o segundo, apresentava um perfil multifacetado, pela multiplicidade de grupos que o compunha. Cada grupo de capoeira era um microgrupo dentro da formação marginal paralela de sua organização geral. Embora, neste momento, estivessem perigosamente reunidos sob duas bandeiras opostas e independentemente à força do poder policial também contrário a eles.
Tendo aparecido nessa freguesia (Sacramento) vários grupos de capoeiras, os quais têm cometido os maiores desacatos e nesses últimos dias por eles feridos gravemente quatro pessoas, tenho empregado todos os meos esforços para acabar com esta espécie de desordeiros, hum dos flagelos peculiares dessa nossa bella cidade..
Eles viviam se enfrentando, e as brigas de rua acabavam em trágicos resultados. Abaixo dois relatos sobre pegas de maltas de capoeiras, que resultou em morte, publicada no periódico Diário do Rio de Janeiro:
FERIMENTOS: Hontem, das 8 para 9 horas da noite, fora gravemente ferido no peito, no lado esquerdo, um indivíduo de cor preta,representando ter 20 anos de idade, na rua dos Ourives canto da de S"o José, o qual, seguindo depois de ferido pela rua da Ajuda, caíra junto da casa 17, falecendo imediatamente.
Podemos ainda apresentar:
Uma malta de capoeiras, da qual faziam parte Florentino, escravo de Manoel Joaquim Alves Rocha, Zeferino, escravo de Luiz José da Silva e Antônio Correia de S. Lobo, chegando na rua dos Ourives, esquina de São José, encontrou-se com outra com quem andava de rixa, travando-se desde logo uma lucta desesperada, que obrigou os pacíficos transeuntes a fugir, e algumas lojas a fechar. No conflito caiu logo gravemente ferido e morreu pouco depois o escravo Oscar, do Dr. Carlos Frederico Taylor, afamado capoeira da Glória. Ficaram feridos também e acham-se em perigo de vida Henrique da Conceição, escravo do Dr. César Farani, e Raymundo, escravo de Manuel Joaquim Alves da Rocha, com confeitaria no Largo do Capim.
As duas grandes Maltas de capoeiras tinham uma formação heterogênea. Mas as suas áreas eram distintas: a dos Guayamus frequentava área urbana do município da Corte. Os Nagôs frequentavam as chácaras da região, onde as camadas sociais daqueles mais abastados optaram por habitar, fugindo ao barulho da cidade, era essa uma área onde se encontravam muitos quilombos.
Nessa luta pela manutenção do espaço, certos elementos irão transformar a capoeira numa espécie de exército paralelo da marginalidade, combatendo em três frentes distintas. A primeira consistia na contrariedade que provocava na sociedade oficial, recebendo dela todo expurgo e distância necessários para a manutenção de sua integridade como comunidade de fato e de direito. A segunda era a polícia que, organizada como um braço do poder, agia no sentido de garantir a tranquilidade pública e a segurança individual, defendendo o transeunte. A terceira, a mais complexa, porque interna, constituía-se aquela em que lutavam maltas de capoeiras entre si, para manter sua hegemonia seja no respectivo território, seja para desbancar outras em áreas geográficas de seu interesse.
Uma prova da ameaça de segurança em termos de coesão de grupo, e inclusive, de cálculo de risco do perigo que corriam no terceiro tipo de embate, esta claro em notícia publicada no Diário do Rio de Janeiro. A prática da capoeiragem era, sobretudo, uma atividade consciente, feita com claros objetivos de uma política ideológica que definia o alinhamento da Malta com os partidos políticos da época. Todavia, também, demonstrava haver umas linhas ideológicas próprias que, na maioria das vezes, definia seu comprometimento interno, presente na ideia de corpo apresentado por nós. Daí é que podermos falar da existência de uma opção política autônoma das maltas. Opção que as faria sobreviver independente de seus alinhamentos políticos com os partidos, como podemos notar abaixo:
Quando a raça está ameaçada de morte, começam os cursos de aprendizagem, provavelmente para a organização de um novo corpo. Ante-hontem, os 9 e meia da noite, segundo nos informam, um magote de pretos e moleques,empregados todos na estação de bondes a rua do sabão do mangue, estavam todos a ensaiar capoeiragem, fazendo grande algazarra, reunidos do lado da rua Miguel de Frias, proferindo obscenidades.
Notamos além da ideia de corpo, que era buscada por eles, os claros comportamentos vulgares, tendentes ao proxemico de sua trajetória no grupo, ou corpo sociocultural, pelas obscenidades proferidas e registradas no trecho acima.
Eram extremamente violentos no que se refere a defesa de seu território. Diz Gilberto Freyre que eram:
Simples meninões turbulentos, mulatos que navalhavam ventres de portugueses por puro sadismo de adolescentes pobres contra adultos ricos.
Uns capoeiras valentes, corajosos, destemidos, eram conhecidos como alguém DIREITO. Tal elemento era sempre respeitado e, de certa forma, cultuado dentro do grupo. Exercia uma forma de liderança junto aos outros. Dificilmente era contestado em suas iniciativas. Para superá-lo, ou mesmo contestá-lo, era preciso batê-lo em enfrentamento.
Havia também aqueles que deixavam de jogar a capoeira, abandonando o próprio grupo. Eram chamados de ARREIADORES. O ato de ARREIAR era extremamente perigoso, pois lhes traria condição de esquecimento e abandono. Não contariam mais com a proteção dos efetivos praticantes, a não ser, supomos, que fosse uma pessoa idosa. Então, esse elemento seria detentor de um saber, adquirido pela experiência de vida na capoeira, que lhe conferiria poder sobre os outros. Muitos, fora desse quadro, acabavam por perder a identidade.
A cultura do capoeira, assim como a do marginal comum, demonstra a cultura daqueles que viviam nas ruas. Ao mesmo tempo em que demonstrava, inclusive, sua forma e procedimentos diante da repressão da época, repressão essa que algumas vezes, revestia-se de uns tratamentos galhofeiros, moleques.
Sabemos que isto traduzia sempre uma forma de código entre eles. Sempre no viés do calão, passava-se com frequência a informação sigilosa. Era por outro lado, uma maneira de se protegerem uns dos outros, dos perigos da rua e da vida marginal na qual habitavam cotidianamente.
O ludibrio também estava nesse aludido viés. O calão, a expressão codificada, verbalizada da malandragem, da mandinga, ou malícia de driblar a vida oficial, e as dificuldades que lhes causavam. O termo TAPEAR traduzia muito bem o espírito desse segmento social da marginalidade. Significava enganar o adversário, ou adversários, com o qual quase sempre buscavam DISTORCER, ou disfarçar, ou até mesmo, retirar-se, por qualquer outro motivo, de cena.
O ludibrio estava no centro das ações do capoeira e de toda a marginalidade da cidade. Tapear ou ludibriar era uma arte cultivada com grande requinte e esperteza. A arte de iludir trazia uma forma de envolver o outro através de certeza de que era verdadeiro. Ludibriava-se a boa fé. Enganava-se a esperança que seu oponente tinha sobre os movimentos, golpes etc, que poderiam surgir de suas gingas. Sucede que os golpes, através de suas gingas, acabavam sempre em surpresas.
A ginga aparecia como elemento da dança-jogo-luta que fazia pensar, ou seja, enquanto ludibriava abria espaço ao capoeirista para pensar no golpe a ser desferido. Era também uma forma de embalar o oponente na tapeação para a surpresa. Nela estava presente o TAPEAR em seu sentido lato, expresso pela referida palavra.
DAR SORTE era se desempenhar bem em qualquer embate. E traduzia sempre que o perigo era visto como algo de difícil transposição. DAR SORTE era, sobretudo, para o capoeira, o ato de se comportar bem nos embate. DAR SORTE, não contava com nenhum ingrediente de certeza, mas sim do inesperado, do inusitado, levando o oponente a imaginar toda sorte de truques.
O surpreendente era que a sutileza dos golpes, nas ações beligerantes dos capoeiras, eram marcadas pelo fato deles garantirem para si o espaço do pensar enquanto gingavam, e o oponente era alguém a quem deveriam iludir, ou seja, garantir apenas a incerteza, não permitindo pensar corretamente sobre o golpe a ser desferido.
A surpresa era o elemento constante, habitante das ações do capoeira. Contraditoriamente, a fidelidade era cobrada entre eles nas maltas, como algo a ser observando com grande seriedade, sob pena de expurgo. Havia um jogo de poder e contrapoder dentro do comportamento desse tipo de marginalidade ou da excludência sociocultural com vida de saberes independentes.
Tal jogo imbricava conceitos que colidiam constantemente e que, na maioria das vezes, serviam para confundir o observador. Na verdade essa situação servia mais para iludir o elemento de fora da malta, pois o caráter de coesão entre eles no grupo, ou corpo sociocultural, somado às rígidas regras de conduta, demonstravam que a fidelidade era cobrada com força e tenacidade pelos líderes.
Quando se feria um adversário, dizia-se que o sujeito havia sido TUNGADO ou BALEADO. Não significava matar o adversário, quase sempre era só para dar uma lição ou um aviso.
O momento em que duas maltas rivais se encontravam eram denominado de PEGADA. A luta era quase sempre feroz. Ocorriam mortes e ferimentos graves.
Quando ocorriam as PEGADAS, acreditamos que o capoeira fosse impulsionado a praticar a MARVELHA, ou seja, procurar o adversário. Acreditamos que aquele que não tivesse essa iniciativa acabava sempre surpreendido por golpes de quem estivesse nessa condição, pois a surpresa era a principal feição de comportamento do capoeira em luta. Um praticante da MARVELHA acabava sendo visto como um firme.
A MARVELHA era feita através da CARRAPETA, ou seja, um grito atrevidamente desafiador para o inimigo. CARRAPETA era também o grito daquele capoeira pequeno no tamanho: o CAXINGUELE.
Significava ainda pequeno e esperto, mas hábil nos golpes. A ginga, possuindo malícia na luta. Aqui se pode verificar definidamente o dever do aprendiz de capoeira: O CAXINGUELE. Este elemento carregava as armas, gritava desaforadamente anunciando a chegada da malta e era, na verdade, um auxiliar de valor. Além disso, participava de exercícios em locais distantes da cidade e praças, mas posteriormente sua prática passou a ser feita na cidade.
Diz o professor Roberto da Matta que ... nesse espaço intermediário,... entre o momento de transição do jovem para o adulto, é que se dava o recrutamento do capoeira. Em tal momento, ele se encontrava numa condição pendular, vivendo ao mesmo tempo o limiar de novos desafios, inclusive o de ser adulto. Eles se encontravam ... longe dos olhares inibidores ... e protetores de seus pais e parentes, podiam aprender a ser homens e mulheres, descobrindo o valor de certas ... regras sociais, canções, gestos, emblemas..., ou seja, toda uma simbologia nova, já que, uma vez recrutado pela malta, teriam a identidade dela. Aprendiam também o tipo de solidariedade do próprio grupo marginal ou corpo sociocultural independente. O professor explica que eles aprendiam ...a natureza das solidariedades horizontais.... Aprendiam a fazer parte do corpo grupal.
Os desafios se efetuavam concretamente em seguida. Muitas situações imprevisíveis, inesperadas, aconteciam. O jovem capoeirando tornava-se um elemento invisível socialmente. Via-se no ... limite do seu mundo diário.... Ficava num certo tipo de isolamento, mergulhado em um "... universo marginal e perigoso, ficando individualizado,.... Assediado pelos perigos da vida da rua. Contava somente, na maioria das vezes, com suas próprias armas. A identificação do jovem capoeira como produto concluído era a posse da navalha e do chapéu, que lhe conferiam o status de elemento preparado para enfrentar qualquer tipo de problema na VIDA MARGINAL, ou de exclusão sociocultural em relação a sociedade da ordem.
A identificação de locais era outro mundo com calões particulares. Quase sempre se expressavam nomeando símbolos das maltas mais famosas. A freguesia de Santana era conhecida entre eles como SENHORA DA CADEIA. Talvez numa alusão a sua importância no cenário dos símbolos da repressão ao crime, ou talvez ainda, como padroeira dos aprisionados por prática de capoeiragem. De qualquer maneira, podemos observar nesta nomenclatura a junção oportuna do sagrado ao profano. Por um lado, como facho de proteção daqueles que se encontravam na vida marginal mas, por outro, como representante de uma forma de permissão ao comportamento errante. Através de sua crença, justificava-se o perdão. Permitia-se, pelo viés do misticismo, a continuidade da prática do jogo-luta-dança.
Esse era o aspecto do sagrado que era expresso através de calões. Havia outras maneiras de evocar, através desse código, as santidades. VELHO CARPINTEIRO era São José, VELHO CANSADO São Francisco. A SENHORA DA PALMA era Santa Rita, que ao mesmo tempo, representavam locais, como: Lapa cujo símbolo era a ESPADA. Em síntese, tudo se construía em uma forma, camuflada, de expressar um sincretismo.
A prudência era constante entre eles, inclusive durante as PEGADAS. Aconselhava-se entre os capoeiras do mesmo grupo o seguinte: NÃO VENHAS QUE SAE DE PASSINHO MOLE! Esta frase era muito mais do que um conselho, uma advertência, às vezes, com som de ameaça. Lembrava ao outro a necessidade muita prudência na situação de constante perigo em que viviam.
A vida do capoeira era demasiado penosa, pois ele acabava sempre exposto a numerosos riscos, que vinham da possibilidade de confirmação prática das ameaças de outras maltas rivais ou mesmo da ação da polícia. Esta, quando vinha em contingente numeroso conhecido como RUJÃO, significava uma situação virtual de enfrentamento feroz. Individualmente, recebia a denominação de BOTÃO AMARELO, devido aos botões dourados das fardas dos soldados. Quase sempre a presença deles provocava ações de fuga, que era conhecida como DESGALHAR.
Em fuga, dizia-se sempre a palavra RODA, que significava: vamos embora. Assim, os calões demarcavam os vários campos geográficos entre as maltas e a aparelhagem montada para a repressão. Para nomear uma determinada localidade, caso fosse uma taverna, chamavam-na de FORTALEZA, ou CAPELA. Geralmente esses locais eram pontos de encontro. Demarcavam a geografia das maltas, e delas em relação à ação policial em seu trânsito pela cidade. Violar esse ponto era ofender a honra do grupo.
Assim quando em uma fortaleza (taverna), encontram-se capoeiras adversários, o guayamú pede vinho e aguardente, e derrama esta no chão e saracoteia em cima, lançando por fim o vinho sobre a aguardente. O bastante isso para começar a luta, por que não consente que sua cor seja pisada, e muito menos que se coloque sobre ela a cor dos adversários. E por este motivo que muitos trabalhadores honestos, que usam fachas de cor são navalhados.
Quando um componente havia sido preso pelos botões amarelos, dizia-se que ele tinha sido levado para a JANGADA, ou seja, preso. Quando isso acontecia era um verdadeiro caos, por que significava fracasso. Quando o capoeira era levado para a Casa de detenção, dizia-se que estava no PALÁCIO DE CRISTAL. Quando estava preso na Casa de Correção, dizia-se que o capoeira tinha ido para a CHÁCARA.
Um outro espaço da vadiagem, agora no sentido do tempo, era os dias do não trabalho, os dias de folga. Provavelmente, haja alguma ligação com as reuniões de escravos para tramar e conspirar contra seus donos. De qualquer maneira, os dias de não trabalho, traziam uma outra sinalização. Era a de trabalhar nas táticas e estratégias que pautariam um possível plano de ação das maltas adversárias.
Assim, podemos ver que se tratava de toda uma sociocultura que identificava corpos socioculturais independentes pela cidade do Rio de Janeiro. Trazendo para ela um novo colorido social que ainda carece de definição mais específica. Esse novo tipo de identificação estava no 'underground' da vida urbana social da ordem. Talvez, fosse uma verdadeira sociedade paralela, ou como querem alguns, corpos socioculturais independentes, cuja identificação ainda não foi totalmente definida. Advogamos o fato de haver uma carência nesta área, pois a historiografia ainda ignora tal realidade que está no germe e no agravamento da situação atual.
Conclusão
Assim, reeducar o olhar científico, como dissemos, permite-nos ver com quantos e quais paus realmente se poderá fazer uma canoa ou, se depois de feita, se os paus estarão harmoniosamente arrumados, ou não. Fabricar uma história, nem sempre é o ideal. Ela deve seguir seu curso natural, ou seja, ao sabor dos documentos e evidências comprovadas que nos são oferecidas pelo tempo, mas, criticar faz-se sempre necessário, até mesmo uma endocrínica do feito, para permitir um (re) olhar, mesmo que caiamos em armadilhas, pois sabemos que elas fazem parte do ato de pesquisa e construção científicas.
Os limites do homem para verificar a composição, entender a maneira como se apresentam suas partes, compreender suas articulações, entender o sentido de seus movimentos, sempre com a preocupação de decompor os seus componentes, conceituando-os, desmontando-os e os montando novamente e/ou, observá-los com o claro objetivo de dominá-los, fazem o processo, além de ser extremamente difícil, bastante espinhoso.
Na Sociologia, a concepção da relação entre o todo e as partes alimentou diversas teorias científicas, que passaram a uma metodologia nas ciências sociais, que nos mostrou que é no todo que se encontram as características que não se explicam pelas relações entre seus elementos componentes e que nem a estes são redutíveis. O organicismo é uma visão do holismo, porque explica os organismos como sistemas complexos. É a única maneira, até agora, de permitir-nos adentrar em seu desafiador corpo, onde as partes perdem sentido, natureza, função e até existência, ou nos podem levar ao ludibrio.
Principalmente, quando removidas do todo, é que tal fenômeno acontece de maneira mais assustadora. Repele toda a interpretação que seja individualista, sustenta a necessidade dele no conjunto, ou são todos dotados de natureza, funções e finalidades próprias, que influenciam e arrastam os indivíduos-membros.
Assim, a corporificação dos grupos de pessoas componentes das sociedades paralelas, ou corpos socioculturais autônomos, dos quais nos ocupamos aqui, devem ser observadas sempre dentro de uma perspectiva de sua natureza monística, ou mesmo monovalente. Assim sendo, vale afirmar que não se entende o Punk, o Dark, o drogado, o nazista e até mesmo o PCC, Comando Vermelho fora dos seus respectivos grupos, corpos socioculturais, independentemente. O que lhes confere autenticidade, justificativa, significado, enfim, sentido de vida é a corporificação grupal! Esta é sempre marcada por alguma energia que os interliga talvez, perpassando seus sentidos e comportamentos sociais intragrupos e intergrupo.
Demonstrar melhor como se deu o que chamamos de capitalidade irradiadora geradora de uma capilaridade irradiadora, inclusive, a maneira como se deu à formação de nossa Nação, com o Rio de Janeiro irradiando-se pelo Brasil como sociedade, provocando uma variada tipificação sociocultural especial por mímica e atribuição, que merece melhores olhares. :
Nos dizeres de Milton Santos temos:
... se o universo é definido como um conjunto de possibilidades, estas pertencem ao mundo todo e são teoricamente alcançáveis em qualquer lugar, desde que as condições estejam presentes, o lugar é o encontro entre possibilidades latentes e oportunidades preexistentes ou criadas
Por isso, atentar para nossa composição sociocultural parece de vital importância para o momento presente. Poderá nos remeter a um novo horizonte, repleto de surpreendentes novidades analíticas. A academia agradece.
Outro autor ainda nos revela que:
... O mundo só o é para os outros, mas não para ele próprio, pois só existe como latência ...o tempo nele algo abstrato, só se justifica como relação... Somos presos ao tempo mecânico (relógio).Tempo de Longa Duração (fato) e Curta Duração (Fato).Tempo do Evenementille.(acontecimento)
Segundo Anthony Guidens, vivemos um tempo vazio, do espaço vazio. Assim, estamos sempre surpreendidos pela forma de um Complexo de Cassandra, ludibriados pela notícia sobre o fato e o presente do novo tempo. Abrir-se sempre ao novo e desafiador é nosso maior motivo de continuar uma luta pela melhor visão científica que nos esclareça o quadro complexo que sempre temos e teremos a enfrentar.
Publicado em 15 de maio de 2007
Publicado em 15 de maio de 2007
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