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A resistível ascensão da Morte Cruel

Luiz Alberto Sanz

O filme, realizado clandestinamente em 1970-1971 (reeditado em 2006), defende a tese de que o Esquadrão da Morte, chefiado em São Paulo pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury foi um ensaio geral para a violenta repressão política que veio a seguir.

Utilizando matérias publicadas em jornais e revistas, bem como material de telejornalismo, cria um painel daquela época negra de nossa história recente. Também usa fragmentos de duas peças de teatro então em cartaz - A Resistível Ascensão de Arturo Ui, de Bertold Brecht, com a participação do Teatro de Arena e O Interrogatório, de Peter Weiss, do Teatro São Pedro - para dar uma ideia do que era impossível documentar por meio de entrevistas.

Sergio Muniz inseriu, na edição final, um documento filmado único, no qual o delegado Fleury é condecorado, por serviços prestados, pela Marinha brasileira.

Você também pode dar um presunto legal, de Sérgio Muniz, é um filme essencial. Como documento, Arte, Jornalismo e Estética. Move-se pela linguagem do documentário mas, livre de preconceitos, dá ênfase a metáforas e assume a encenação como parte da realidade. Busca no Brecht de A resistível ascensão de Arturo Ui e no Peter Weiss de O Interrogatório as evidências que a repressão lhe impede coletar. Explora a transdisciplinaridade e dá um salto de qualidade. Não bastasse a força dos elencos dessas peças (Guarnieri, Othon. Zanone...), conta com a interpretação vigorosa e cirúrgica de Lafayette Galvão repetindo as falas autênticas do torturador Sergio Fleury.

Arrisco: o filme é pioneiro em duas épocas tão distintas e cada vez mais semelhantes - a passagem dos anos 60 para os 70 (quando realizado) e a atual contemporaneidade (em que é lançado), momento cada vez mais retrógrado e conservador que, ao arrepio das evidências, arroga-se pós-qualquer-coisa.

"Presunto" vai à essência daquilo com que lida, na interseção de duas condições, de dois tempos, lembrando Baudelaire - para quem o moderno era a tensão entre o eterno e o efêmero.

Sergio Muniz age em meio a e sobre:

  • A atualidade e a circunstancialidade do Jornalismo, território do efêmero; faz uma crônica de sua época e das gentes, sejam protagonistas ou vítimas passivas.
  • A eternidade e a irredutibilidade da Arte; persegue a expressão do indizível nas entrelinhas do discurso jornalístico-político-social.
  • O realismo definindo-se forma de aproximação e revelação da vida e do mundo, rompido com a obrigatoriedade de ser escola e estilo; faz um cinema que mergulha e traz à tona a realidade, oculta pela aparência.
  • A violência intrínseca do estado, vivenciada nos extremos de um regime policial.
  • A História como continuidade, tradição e transformação, ao mostrar que a opressão contra os pobres e os diversos é perene e fundamenta a formação de algozes que também saberão agir contra transgressores oriundos das elites, pois sua finalidade é perpetuar e proteger o poder.

É um filme autoral, característica das cinematografias progressistas, rebeldes e/ou revolucionárias das décadas de 60/70/80, mas, ao mesmo tempo, expressa um rompimento com a autorreferência do documentário feito por aqui, à época, geralmente neorrealista, naturalista ou corriqueiramente "realista".

Você também pode dar um presunto legal, penso eu, constrói sua linguagem - como toda boa obra - do contexto em que o artista exerce o ofício e dos materiais disponíveis.

Trabalhando na clandestinidade e sem recursos financeiros, quer dizer, sem grande mobilidade para realizar uma efetiva pesquisa de campo, o documentarista recupera elementos de linguagem comuns em cinematografias mais pobres que a brasileira posterior aos anos de ouro do Cinema Novo. Envereda pelos caminhos do cinema de montagem, combinando diferentes tipos de fontes secundárias: notícias de jornais e revistas, anúncios, cenas de espetáculos teatrais, encenação de transcrições de depoimentos autênticos etc.

Ações que lhe permitem construir um estranho mosaico em que encontramos parentescos com o americano Robert Flaherty, o uruguaio Mario Handler, o cubano Santiago Alvarez, o holandês Joris Ivens, os chilenos Peter Chaskel e Héctor Ríos e o francês Chris Marker, por exemplo. Todo mestres em olhar a realidade com olhos de perceber e que se aproximam do que Roger Garaudy batizou de "Realismo sem fronteiras".

Mas o filme de Sérgio Muniz, parte desta variada família, não é igual a nada que tenha sido feito até ou depois de 1971. É único. E o mosaico é estranho por combinar estranheza (condição essencial da interação simultânea de múltiplos fragmentos que, por vezes se opõem, mas formam, finalmente, um conjunto) e estranhamento, aquela condição em que somos capazes de olhar o rotineiro como novidade.

Seria muito fácil realizar um panfleto (como alguns dos melhores filmes de Alvarez) ou um ensaio (como toda a obra de Flaherty), mas Você também pode dar um presunto legal se apresenta como manifesto. Penso no poeta russo Maiacóvskii, já que, neste filme, conteúdo e forma são revolucionários.

Lançado agora, "Presunto" vai enfrentar dois graves problemas, que possivelmente encontraria em menor grau nos anos 70 e 80:

  • A desinformação sobre o caráter essencial da repressão, alma do estado, e os métodos que os governantes usam para exercê-la (desinformação para a qual os meios de comunicação e o próprio Cinema Brasileiro têm contribuído), bem como
  • o fato de que a pequena burguesia, hoje como ontem, em lugar de rejeitar os esquadrões da morte, considera-os um mal necessário; a diferença está em que, nos anos 60 e 70, os "esquadrões" matavam também os filhos da pequena burguesia; então, ela se revoltava.

Não basta exibir Você também pode dar um presunto legal. É preciso trabalhá-lo, discuti-lo e aprofundar a essência do manifesto que é.

Ficha técnica do filme:

  • Título: Você também pode dar um presunto legal
  • Direção: Sérgio Muniz
  • Gênero: Documentário
  • Produção: Sérgio Muniz

Publicado em 9/1/2007

Publicado em 09 de janeiro de 2007

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