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Crônica de criança e de gente grande

Ieda Magri

Um menino barrigudinho, bico na boca e uma força tamanha no pé, respondeu com raiva, mas sem palavra, ao convite de Chacovachi para dividir com ele o lugar do palhaço na rua do mercado no Anjos do picadeiro. Parecia saber bem a piada que o aguardava. Se o palhaço, esse ser que finge ingenuidade, mas é o cara mais sabichão do planeta, achou que encontraria ali, disponível, a candura de uma criança pequena, teve que fazer uma busca mais demorada; pareceu-me que as crianças doces e amáveis, nesses tempos de hoje, estivessem extintas. E o palhaço: "alguma criança normal na plateia?". Triste, mas o normal, a gente grande pensou, é ser criança e ser assim: embirrento, dono do mundo, sem limites e profundamente egoísta. Claro que não se pode dizer isso desse menino ainda de bico, mas ele já manda o recado: no próximo Anjos do picadeiro, os palhaços que se cuidem!

A imagem muito clara de uma criança-pestinha um pouco maior nasce sem susto no panorama das imagens de quem viu o cabaré comandado por Sérgio Sérgio ou Jogando no quintal. Ambos os espetáculos tiveram o lugar do palhaço ou do ator disputado por um menino de 7 anos, que insistiu durante todo o tempo em discutir e interferir em todas as falas. Um chato! Para o público e para os artistas. "E esse filho não tem pais?", foi a frase mais murmurada nas primeiras filas.

Essa imagem me remete ao espetáculo Homem-Bomba, de João Carlos Artigos, não apresentado no Anjos do picadeiro, mas visto aqui no Rio pouco antes. João se dedica, em mais ou menos uma hora, a mostrar como as crianças, ao contrário do que o senso comum indica, podem ser manipuladoras e perversas. Não que nasçam assim, é claro, mas porque "gente grande" se acostumou a crer que crianças assim são normais. Os pais, desde cedo, instigam as crianças a se comportarem como adultos na competição escandalosa que reina na sociedade. Acham que quando o pai não está em casa é o filho de 10 anos quem manda. Esquecem que um mundo melhor não precisa de gente que mande. Como público, não sou adepta da psicologia barata de "umas boas palmadas resolve". Só se for nos pais, pra que acordem e vejam que o mundo não precisa de mais pestes, mas de mais ternura, de mais gente preparada pra ouvir sem se impor, de gente que não quer ganhar no grito ou ridicularizando o outro, de gente, enfim, que está disposta a ver no outro um igual, alguém que merece seu respeito. Ensinar desde cedo a usar a força da palavra e do gesto no lugar certo - porque não na luta por um mundo melhor? - deveria ser a nossa maior preocupação se estamos dispostos a reproduzir nossa espécie. Se não, pra quê? Se for pra colher o que se planta hoje - violência, jogo de poder, corrupção e desafeto - não vale a pena.

Mas nem só de crianças destruidoras e de palhaços pra gente grande foi feito o Anjos. V. Aziz Gual amoleceu vários coraçõezinhos. Mas foi uma menina - infelizmente, com o terrível rótulo Princess estampado na blusa - que amoleceu o coração de gente grande e cética como eu - no espetáculo de Moshe Coen.

Depois de uma risada distraída e saborosa, a menina foi convidada a ir ao palco e ficou tímida de repente. "Ai, ai", suspirou. E achou melhor não subir. Mas diante da insistência daquele palhaço que - desconfiava - era um mágico, acabou subindo. Aos poucos ganhou confiança e passou a olhar para o público e a acertar os passos da dança guiada pelo palhaço-mágico. E, mais que de repente, viu-se envolvida por quadrados vermelhos que viravam bolas e que apareciam e sumiam sem que seu olhar conseguisse desvendar o mistério. Diante da solicitação estranha de, com uma bolinha vermelha fechada na mão apertadíssima, esticar o braço mostrando-se mais ao público, diz aflita, "não consigo, não consigo", quase um sussurro. Mas claro que conseguiu! E conseguiria muito mais, conseguiria fazer com que o meu coração começasse a cavalgar o peito numa velocidade incrível e não sei se foi por causa do meu coração ou pela desconfiança da menina que quando abriu a mão, lá dentro, tinha duas bolinhas vermelhas. E ela, num espanto, levou a mão na boca e disse: "ah". Só uma entrada de ar nos pulmões com barulho. E quanto mais a menina desconfiava que aquilo não seria possível, mais as bolas se multiplicavam e desapareciam na sua mão fechada - "mas por onde entravam, por onde saiam, meu Deus do céu!" - e mais ela se admirava e ficava feliz com as descobertas. Aos poucos foi se esquecendo do público e começou a soltar de leve suas risadinhas gostosas, completamente envolvida pelo palhaço-mágico. E olha que, como todos os excelentes palhaços que estiveram no Anjos do picadeiro, esse não era um especialmente contratado para fazer as crianças felizes. Moshe Coen estava interessado em fazer rir, em fazer abrandar essa pedra quente que trazemos no peito e com singeleza pediu à criança que o ajudasse. A gente grande agradece (desconfio que vai dar pra consertar o mundo)!

Publicado em 29 de maio de 2007.

Publicado em 29 de maio de 2007

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