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O Tempo circular dos Deuses

Mariana Cruz

O tempo mitológico é o tempo cíclico das estações do ano, do plantio e da colheita, da vida. Um espelho da natureza arcaica, cujo papel é soberano. Nela, os Deuses mitológicos e o tempo deles se organizam. Não há uma separação entre Deus, homem e natureza. Um é continuação do outro, todos esses elementos estão interligados, ou melhor, são uma só coisa. É a physis.

Com o enfraquecimento do pensamento mitológico, natureza e homem separam-se. Como escreve o filósofo Eudoro de Souza: "quando ocorre a cisão, nasce a filosofia e com a filosofia nasce o homem como sujeito que investiga. A aurora da humanidade é o crepúsculo da naturidade (...) a physis é a natureza recolhida perante o Homem".

Um tempo sem tempo

Ao usarmos nossos parâmetros baseados na relação de sucessão para tentarmos entender o tempo mitológico, cairíamos no absurdo, simplesmente porque esta forma de percepção do tempo, dividida em três momentos distintos - passado, presente, futuro - inexiste naquela esfera. Se utilizarmos tais categorias de apreensão temporal na leitura do poema mitológico Teogonia, de Hesíodo (séc. VIII a.C.), várias passagens serão consideradas contraditórias. Como, por exemplo, o fato de Zeus ter poder sobre o nascimento dos Deuses anteriores a ele.

Da mesma forma que os acontecimentos não são caracterizados por uma rigidez na sua ordem sequencial, ao contrário, são facilmente desmembrados e recolocados de maneiras diferentes, cada acontecimento tem seu próprio tempo. O fato de Crono, pai de Zeus, saber por desígnio de seu próprio filho, antes mesmo de seu nascimento, que por ele será derrotado, é para nós algo impossível de se imaginar devido à inexistência de qualquer linearidade factual. Mas Zeus, por ser o maior dos Deuses, tem poderes sobre os demais, mesmo aqueles que nasceram antes dele.

Isso não ocorre apenas em relação a Zeus e a sua onipotência, que faz com que tudo que esteja relacionado a ele seja possível. As Musas, por exemplo, ao cantarem a vitória de Zeus estão dando origem a este acontecimento, o que de acordo com a visão do tempo em linha reta seria igualmente inaceitável, uma vez que elas só foram geradas após a vitória do filho de Crono. Isso demonstra mais uma vez a impossibilidade de pensar a Teogonia como uma sucessão de acontecimentos submetidos a uma ordem cronológica, onde o "antes" e o "depois" são elementos excludentes, pois, "essa noção de tempo como pura extensão e quantificabilidade absoluta é uma representação elaborada por nossa cultura moderna e exclusivamente nossa, não há isso em Hesíodo nem em nenhuma parte a não ser em nossas convicções culturais".

O canto "presentificador" das Musas

Cada vez que um mito é cantado pelas Musas, ele se presentifica, se origina, se funda. A marcação circular da dança das Musas que giram em torno da fonte do altar de Zeus trás essa concepção de tempo, que, apesar de ser cíclico, não é uma repetição. É um tempo que retorna, mas sempre se dá de forma diferente. Simbolicamente garante inesgotabilidade ao fluxo da fonte, causando uma renovação perpétua que faz com que o tempo volte à matriz, à origem do acontecimento que está sendo narrado.

A força presentificadora das palavras

A poesia mítica é anterior ao advento do alfabeto, daí o imenso poder dado às palavras que, não estando aprisionadas pela escrita, são tomadas de uma força quase mágica, como se trouxessem à tona a própria coisa pronunciada. Assim, tanto o futuro quanto o passado, ao serem pronunciados, presentificam-se, isto é, são postos à luz da Presença, enquanto que o não dito fica relegado ao mundo do Esquecimento, até que seja recolhido pela Memória.

No pensamento arcaico, elementos considerados por nós contraditórios em nada se opõem, ao contrário, convivem lado-a-lado. Isso se dá devido à concidentia oppositorium que existe nas suas figuras, que podem apresentar características contraditórias, antitéticas, sem que isso signifique uma impossibilidade.

Por não haver uma ideia de linearidade, nem de progresso, e sim de concomitância e simultaneidade, o tempo mítico também não traz em si a relação de causa e efeito. O tempo quantificado, as relações de causalidade são elementos referentes a nossa época, são traços meramente culturais.

O nascimento de um Deus, um nascimento de um tempo

Ao ser instaurada a presença divina, isto é, assim que um Deus nasce, ele funda seu próprio tempo. Não há um tempo único; são múltiplos os tempos. Ao começar a existir, o Deus passa a pertencer a todos os tempos e lugares. Quando um Deus é derrotado, ele não cessa de existir, apenas deixa de estar presente na atual fase do mundo, do tempo ordenado pelo Deus que está no poder, passa a fazer parte do não-presente, do além mundano. "O Deus não é senão a sua superabundante presença e está todo ele presente em todas as suas manifestações, já que presença não é senão manifestação, negação do esquecimento, verdade, a-létheia" . Desse modo, talvez fique mais fácil compreender porque a relação entre os próprios Deuses não pode estar inserida numa linha de tempo. Ela acontece segundo a força de ser de cada um.

A própria palavra grega que indica "ano" - aniatus - serve para definir tudo aquilo que é circular, como um anel. A ideia de círculo (annus, anus, annulus) ligada a ano diz respeito à circularidade deste.

Tempo e espaço, na língua de Hesíodo, não existem de forma abstrata, é um tempo concreto que nasce junto com cada Deus.

A história sem fim

Podemos lançar mão de vários mitos onde a ideia de repetição incessante é tratada concretamente, onde um indivíduo, castigado por alguma falta, é condenado pelos Deuses a sofrer castigo eterno que nunca cessa, pois uma vez terminada a pena, ela recomeça.

No mito de Sísifo, os Deuses condenam-no a rolar uma rocha até o topo de uma montanha e, sempre quando chega ao cume, a rocha rola de volta à base, fazendo com que nunca termine sua ingrata tarefa. Há também o mito do tonel das Danaides, que narra a história das irmãs que foram condenadas a encher por toda a eternidade um vaso furado que nunca se completa. Por fim, temos o mito de Prometeu, que tem perenemente seu fígado devorado por uma águia (ou abutre), mas que, por ser um imortal, seu órgão é regenerado todos os dias. Esses são apenas um dos muitos exemplos do tempo mítico retornante, cíclico, não-linear.

Em tais casos, a circularidade é colocada como um dever, um labor infindável, uma dor incessante. É um castigo interminável que pode ser interpretado com um desdobramento, uma manifestação negativa do tempo cíclico arcaico.

Vestígios desse eterno fazer-se também são encontrados nas epopeias homéricas, bem como em algumas tragédias.

Na Ilíada, por exemplo, vemos a predominância do estado de guerra, como de fato deveria ocorrer no tempo das migrações, onde o espírito heroico era soberano entre os homens valentes e honrados. As refeições, os sacrifícios, os Conselhos eram os elementos que simbolizavam as pausas anteriores às batalhas. Um ciclo. Na Odisseia, Ulysses tenta retornar para o lar, enquanto sua esposa, Penélope, durante o dia trabalha no grande tecido que serviria de mortalha para Laertes, desfiando-o todo durante a noite a fim de prolongar sua tarefa até a volta de seu marido.

O eterno retorno

A aproximação do tempo circular arcaico com a ideal de "eterno retorno" de Nietzsche talvez seja inevitável. Mas tal comparação é inadequada em certos aspectos. O tempo em Hesíodo é concreto, já o "eterno retorno" é algo bastante dado a abstrações. A despeito de tais distanciamentos, existem alguns traços comuns entre o eterno retorno e o pensamento mitológico, como o fato de considerar o curso circular uma lei originária, algo que sempre existiu. Há também uma desqualificação do pensamento causal e calculista do homem moderno.

Em Nietzsche, tal desprezo, porém, pode soar como provocação, enquanto na poesia arcaica não existe esse caráter provocativo, proposital, pois, elementos como causalidade, quantificidade, simplesmente não tem peso na concepção mítica. Um pensamento não é causa nem efeito do outro, uma vez que podem ser recolocados, justapostos e recontados de infinitas formas.

Tais aproximações do pensamento nietzschiano com a cultura arcaica talvez ocorram devido ao grande interesse do filósofo alemão pela Grécia pré-socrática. Ele considera o mundo subsistente, um vir-a-ser que nunca começa nem termina, não há um estado final, um objetivo, o seu começo está no seu término e vice-versa.

Ventos do Olimpo

No estudo sobre a Teogonia escrito por Jaa Torrano, indica-se o caminho a ser seguido para uma melhor compreensão e aprofundamento na atmosfera mitológica: "pensamos o tempo puramente extenso e quantificável como mero traço cultural é preciso que, por um breve momento que seja, nos despojemos de crenças religiosas (i.e., concernentes ao significado final de nossa vida e do mundo) tão profundamente arraigadas em nós que nem sequer podemos usualmente percebê-las como crenças (i.e., opiniões inverificáveis, aceitas por um ato de fé subjetivo) e muito menos ver nessas crenças qualquer vínculo de identidade com o que consideramos religioso em outras culturas ou em nosso próprio passado cultural (já que atualmente nossa visão do mundo se pretende rigorosamente não-religiosa na mesma medida em que se diz científica)" . O tempo calculável é uma imposição cultural com fins de organização, mas não deixa de ser uma crença que sob o manto da ciência passa-se como a mais cristalizada verdade.

Se nos despirmos momentaneamente dessas duas grandes entidades da cultura ocidental - o cristianismo e a ciência - e nos deixarmos levar pelos ventos do Olimpo, aceitando o inefável sem questionar as razões, talvez seja possível vivenciar o tempo mítico e chegar na sua verdadeira arkhé.

Publicado em 29 de maio de 2007

Publicado em 29 de maio de 2007

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