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Escola de favela versus escola na favela
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
(desafios fronteiriços entre mundos diferentes da educação na vida urbana fluminense na era da globalização)
É necessário haver um caos dentro de si para dar à luz a uma estrela que dança. Nietzsche
Nosso centro de preocupação apareceu com a verificação do longevo processo de acumulação primitiva de capital na História do Brasil. Quase quatro séculos de chicote e pelourinho não se apagam com apenas pouco mais de um século de 'liberdade' e 'cidadania'. Nele está o pano de fundo de nosso trabalho.
O fato desse processo se relacionar com o quadro de penúria de grande parte da humanidade, notadamente nas áreas urbanas de vários países como o nosso, é outro inequívoco indicador de nossas certezas. Por aqui, como em outros países, temos uma forma capitalista conhecida como tardia. Essa tipologia fez nosso país mergulhar numa variada teia de relações sociais de produção da vida marcada pela acentuada mancha da injustiça social, fundada na extrema desigualdade entre as pessoas. É uma forma profunda e sistemicamente perversa, caracterizada pela exclusão social. Países com essa tipologia tiveram a banalização da vida como marca de sua área social mais pobre. O Brasil é um deles. A forma de convivência de nosso urbano social esconde uma complexidade digna de um olhar científico mais detido e preocupado. É no Rio de Janeiro que encontramos formas agudas de um confronto especial que começaremos a tratar no presente trabalho.
No que tange a administração nossa história desde a fase de colônia até os estertores do Império, comportou uma duradoura construção de Estado Nacional, cujo poder foi centralizado. Todo o processo teve como alimentador, no espaço das relações de produção, a utilização da mão-de-obra escrava. O trabalhador escravo não teve sequer o direito de ser expropriado de seus meios de produção. Na condição de trabalhador compulsório, a esmagadora maioria não dispunha nem da sua força de trabalho. Eram considerados mercadorias. O fato marcante até o início de nossa fase de construção do pensamento republicano, e que grassa nossa historiografia, é o modelo de relacionamento de produção não mudar nem tampouco se flexibilizar. Tivemos um escravismo colonial marcando-nos absolutamente a alma. Por isso, após o nascimento de Jesus Cristo, somos o país de maior tempo de escravidão na historiografia universal e com tipologia especial. Acima de tudo, somos o país que conseguiu sobreviver aproximadamente quase quatro séculos de vida com a maioria de sua população sob o manto e estigma coisificação para alguns, e através da mercantilização, fazendo de gente mercadoria para outros.
A maioria de nossa população foi educada como mercadoria ou para mandar no que considerava sê-lo. Ainda nos é forte a insensibilidade e a vulgarização do lado humano. André Antonil nos apresenta algumas frases como: "Ao negro três ps: pau, pão e pano", ou ainda "A branca serve para casar, mulher negra para trabalhar, a mulata para fornicar" escritas pelo viajante alemão Handelman ao ler a sociedade brasileira na corte imperial, numa tentativa de escrever o que denominou pretensiosamente História social do Brasil. Seguramente trazemos muitos reflexos de tudo isso.
Será que somos uma sociedade-instrumento? Estamos inexoravelmente fadados a ser uma população facilmente dominável? São inevitáveis as sinalizações desse tipo em nosso comportamento? A marca da submissão em nossa educação, a condição de mercadoria que ainda é uma sombra forte de nossa população oriunda da escravidão, realmente gerou a maioria de nossos contrastes culturais e problemas sociais? Se o professor Boaventura de Souza Santos nos alerta para a distinção entre políticas públicas e práticas pedagógicas no mundo da educação, como podemos pensá-las sem antes fazer uma cuidadosa leitura de nossa realidade? Sabendo que a educação é simultaneamente um localismo globalizado e também um globalismo localizado, como a Escola pode responder a eles tendo que se preocupar com a construção da cidadania na modernidade, construir uma cidadania competitiva , fechando os olhos para nossas imensas diferenças sócioeducacionais, socioeconômicas e socioculturais? Como poderíamos estudar a educação no campo moderno da transnacionalização sem antes aprofundar as ligações entre as mudanças na economia global e na política e prática educacional? Certamente não estamos numa Europa Unida e não podemos nos esquecer que ainda temos grandes reflexos hoje da europeização praticada pelos nossos colonizadores. Será por isso que a cidade do Rio de Janeiro é conhecida por outro nome que não o de "Cidade Partida" do professor Zuenir Ventura?
1 - Acumulação primitiva de capitais e seus reflexos na relação socioinstitucional recente: uma abordagem em torno da acumulação primitiva de capital.
"Nunca a mesma água, sempre o mesmo rio. Nunca as mesmas flores, sempre a primavera".
Confúcio (Comentários Ching, o Livro das mutações)
Hoje, em função da velocidade com que se processam as mudanças nos diversos campos da ciência e da tecnologia, bem como as adversidades resultantes da complexidade como se estabelecem as relações socioeconômicas entre pessoas e povos, torna-se imperativo ao homem um olhar que encurte as distâncias e os limites entre as ciências. A revolução que experimentamos nesses últimos 30 anos é, antes de tudo, singular nas áreas humanas e sociais. Sem esperar esgotar o assunto, objetivamos, nesse trabalho, construir um traço cuidadoso sobre a necessária aplicação dessa transdependência necessária e urgente entre a história e as demais áreas do saber científico para o bem do saber humano, que está preso ao todo holístico. Temos o propósito de apresentar as causas e efeitos históricos do complexo hibridismo social construído no perímetro urbano fluminense e sua periferia. Sabemos que ele foi construtor de novas fronteiras sociais no espaço das relações de produção da vida na cidade, quase sempre a fórceps.
Para tanto, faz-se mister, a partir da releitura crítica do nosso contexto histórico, buscar a origem de alguns fenômenos sociais responsáveis por importantes influências no corpo dinâmico de nossas relações sociais. Nossa história social foi geradora de privilégios de variadas formas e maneiras em várias áreas.
A longevidade da acumulação primitiva de capital, prelúdio do nosso sistema capitalista de produção (e também de algumas outras sociedades conhecidas), foi e é à razão do quadro de penúria assustadora atual. Em áreas urbanas de países que não conseguiram ultrapassar a referida fase rapidamente, notamos uma sociedade mergulhada em complexos quadros sociais de violência que, de maneira singular e a grosso modo, se identificam e se justificam com elementos de suas raízes culturais mestiças.
Acreditamos encontrar aí razões históricas que explicam o lado miserável do planeta. São espaços geográficos cuja população vive sob o império da miséria e da fome. Lugares onde a mais-valia é tão brutal que o homem é mais capital de uso do que homem. Espaços onde a indigência beira as raias do intolerável.
Na realidade, a história do capitalismo mostra sempre os sinais dos maléficos movimentos comerciais e práticas de negociações entre grandes potências do mundo mercantil. Inexoravelmente apontam para uma forma complexa de sistema econômico que se configurou em "capitalismo Industrial". Ao final do séc. XIV e na passagem para o XV, especialmente por ocasião da fragmentação do sistema feudal, tivemos um corolário de mudanças. Na Europa, gradativamente, verificou-se a liberação do produtor direto, ou seja, o trabalhador (servo), que se libertou das obrigações Senhoriais.
Muitos dos que abandonavam os feudos não conseguiram sobreviver sem o amparo do referido Senhor. Sabemos, por intermédio de alguns estudos de fôlego, que alguns servos obrigados à redução social, possuíam lotes de terra. Alguns vinculavam o lote à sua habitação com direito de acesso e usufruto das terras comuns. Podemos afirmar que o processo de transformação do trabalho servil em assalariado, só se completou com o livramento dos artesãos das corporações dentre outros, que subordinavam e tolhiam a liberdade do comércio na Europa.
O processo que possibilitou a transformação do Sistema Feudal, libertando o trabalhador dos grilhões da servidão, também expropriou a classe trabalhadora dos seus meios de produção e lhe retirou as garantias oferecidas pelo velho sistema. Ao converter o produtor direto em assalariado, transformou os meios sociais de subsistência e os de produção em capital. Ao trabalhador só restou a liberdade de vender sua força de trabalho como assalariado mergulhando assim em um novo universo.
Em suma, ficam evidentes e bem caracterizadas as duas espécies de proprietários de mercadorias interdependentes. Por um lado, o capitalista, proprietário do capital, dos meios de produção e de subsistência. Por outro, o trabalhador livre, dispondo apenas da sua força de trabalho para oferecer como mercadoria. Segundo Marx, a partir do momento em que se estabelece esta bipolarização começa-se a criação de condições para a acumulação primitiva de capital.
Cabe ressaltar aqui que, uma vez desprovidos de seus meios de subsistência, só restou a massa trabalhadora, principalmente camponesa, o deslocamento para áreas urbanas. O que deu origem a um exército de mão-de-obra excedente que, na sua grande maioria, era sem qualificação. E o que é pior, paupérrimo. Assim, aqueles que antes eram explorados pelos Senhores Feudais trocaram de exploradores. Agora estavam envolvidos na nova relação de produção com fortes desenhos capitalistas. São conhecidíssimos pela historiografia os agravos trazidos pela referida mudança ou revolução. Como o aumento da jornada de trabalho possibilitando a produção de uma mais-valia mais complexa, sustentáculo do novo sistema que em formação se configuraria como autogestor a partir da Revolução Industrial da passagem dos séculos XVII/XVIII.
Com a transformação da força de trabalho em mercadoria, o trabalhador passou a depender essencialmente da classe dos capitalistas. O fato da força de trabalho não ter utilidade quando separada de seus meios de produção é um dos sinais disso. Sabemos que quando a oferta de mão-de-obra, por razões várias, é superior a demanda, o trabalhador recebe apenas o salário equivalente ao valor para prover a sua subsistência, embora produza muito mais.
Na realidade, no processo de mais-valia, o capitalista paga por um número de horas e recebe duas ou mais vezes esse número, gerando um sobreproduto não remunerado. Configura-se dessa forma a real diferença entre capital e trabalho clássicos que se denomina mais-valia, fonte real do lucro. Em outras palavras, é a diferença entre o valor do que se produz e o valor de sua remuneração pelo que fez.
No Brasil colonial até o fim do Império, ou seja, início da construção do pensamento republicano, os reflexos dessas mudanças provocaram um corolário que nos marcou profundamente. Nossa força de trabalho se fez transformando gente em mercadoria. Compôs assim um desumano e especialmente desigual resultado social, cujos sinais se refletem até hoje. Os trabalhadores passaram a ser propriedade principal e essencialmente da classe dos grandes proprietários (aristocracia). Faziam parte do seu patrimônio. Poderiam ser descartados, usados conforme a conveniência de seu dono. A força de trabalho não tinha utilidade quando separada de seus meios de produção.
Segundo Marx, "... à utilização da mais-valia como capital; a sua reconversão em capital chama-se acumulação de capital".. Com isso, podemos concluir que acumulação primitiva de capital teve realmente caráter preludial, pois, foi à expropriação dos meios de produção do trabalhador e, por conseguinte, a transformação da força de trabalho em mercadoria seu desenho mais insinuante. Não obstante, a conclusão óbvia é que o modelo econômico da atual sociedade capitalista foi construído, salvo exageros, nos estertoreis do modelo econômico da sociedade feudal. Na Europa, o fruto da fase que se sucedeu entre o século XIV e a passagem do XVII/XVIII (História Moderna), além de ter sido um passo importante na direção da construção do pensamento racional burguês, foi o momento da deflagração do híbrido e embrionário capitalismo. A derrocada do Sistema Feudal e a construção do Estado Nacional proporcionaram a liberação dos elementos necessários à formação do posterior modelo político capitalista.
Em que pese todos os impedimentos e dificuldades apresentados pelas práticas mercantis, pode-se afirmar que a acumulação primitiva de capital "constituiu a pré-história do capital e do modo de produção capitalista".
Enfim, centrados no referido movimento acima apresentado, podemos novamente passar os olhos no Brasil, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, para entender melhor sua trajetória e composição social de nossa gente. Sempre em torno da acumulação primitiva de capital: uma idade moderna prolongada brasileira.
2 - Acumulação primitiva de capital no Brasil e seus reflexos e contradições : uma educação sob o signo da invariância.
Todo discurso sobre a Educação é um discurso sobre os fins últimos da sociedadeCharles Péguy
Segundo Novaes, entre 1530 a 1800, toda atividade econômica do escravismo colonial orientou-se segundo os interesses da aliança entre nobreza e burguesia comerciais, principalmente europeias, porém com uma participação intermediária de uma aristocracia territorial local que não pode ser descartada. Ela irá providenciar toda a reprodução do modelo de dominação colonial internamente viabilizando o que denominamos de monopólio da COLÔNIA para a colônia. No entanto, no perfil comportamental do nosso colonizador havia muito da herança feudal. Mesmo assim, vinham de um Portugal cujo Estado era unificado e de poder centralizado. Estado que se apresentava muito ousado no método de ocupação da terra descoberta, conforme também afirma Fernando A. Novais:
... a colonização por meio da agricultura tropical, como a inauguraram pioneiramente os portugueses, aparece como a solução através da qual se tornou possível valorizar economicamente as terras descobertas, e dessa forma garantir-lhe a posse (pelo povoamento).
O modelo adotado de colonização foi eficaz, atendeu aos propósitos da Empresa Colonial Mercantil lusitana. O processo de construção dos Estados Nacionais Absolutistas Modernos unificados e centralizados, sempre exigia maior eficiência do sistema de produção colonial. A própria dinâmica do desenvolvimento capitalista, em sua fase embrionária, provocava o desenvolvimento urbano, possibilitava o afloramento de setores comerciais (burguesia). Contudo, o monopólio existente na relação metrópole/colônia funcionava como sustentação da política lusitana. Podemos afirmar que o tão conhecido monopólio da metrópole sobre a colônia gerou, por isso mesmo, o 'monopólio da Colônia para a colônia' que nos referimos anteriormente. Desde o século XV consubstanciando o processo de colonização portuguesa.
O fato dele se tornar agudo em nosso país, acabou por gestar aqui uma sociedade do patrimônio, ou seja, patrimonialista. Notória em nossa maneira de pensar a administração da coisa pública. Em outras palavras, educou toda uma sociedade sob a sombra da absolutização do poder. Não se podia esperar nada muito diferente disso, quando observamos uma sociedade onde o homem foi propriedade do homem.
A partir da fundação da Vila de São Vicente, a intervenção direta dos investidores europeus pôde ser sistematicamente verificada no âmbito da produção, o que fatalmente viria a se multiplicar sistemantista na sociedade como um todo. Portugal (Lisboa), desfrutava de uma excelente posição no cenário dos Impérios Mercantis. A colonização, ou seja, a implantação de um sistema de produção agroexportador no Brasil, requeria numerosa mão-de-obra com domínio de técnicas de cultivo. A produção da cana e do açúcar, longevas enquanto sistema, garantiu muitas riquezas aos lusitanos. Porém, permitiu a aplicação prática da hedionda mercadização humana dos africanos, preferencialmente, que nela trabalhavam, reprimindo-os e banalizando suas vidas. O homem preto ingressou em nossa sociedade como mais um dos instrumentos de produção.
Até o início da República o que grassa em nossa história é a nossa pouca mobilidade social, provocada, talvez, pela invariância do próprio modelo de produção aqui implantado. Tivemos um escravismo colonial que marcou definitivamente a vida da nação. Somos um país que conseguiu sobreviver a aproximadamente quatro séculos de história, tendo a esmagadora maioria de sua população sob o manto e estigma da mercantilização humana. Somos um povo facilmente manipulável porque outrora a maioria de nossa gente fora submetida totalmente. Dominada violenta e desumanamente com o aval e complacência de respeitáveis instituições como a própria Igreja.
Por tudo isso, não é de se estranhar que sejamos a sociedade cuja complexidade desafia o mundo da intelectualidade lusófona moderna. Ainda convivemos numa sociedade atingida por fortes influências da cultura europeia. Ainda trazemos muitas marcas da europeização ibérica do passado. Aqui as distâncias e limites são imensos e diferentes entre ricos e pobres.
A explicação disso não se reduz apenas aos mecanismos concretos da percepção e abordagens centradas na ótica marxista de nossa intelectualidade nacional. Em que pese seu imenso valor, fica algo carecendo de resgate e que foge totalmente ao seu domínio e abrangência. O que causa especial preocupação é o fato disso ainda ser estranhamente pouco perceptível aos olhos da maioria. Ítalo Calvino, na sua obra Palomar, fala da importância e capacidade de dizer coisas que não seriam ditas, mas partindo de premissas e implicando consequências que deem a coisa dita o seu máximo valor.
... em tempos de silêncio generalizado, conformar-se com a mudez dos outros é certamente culpável.....
É impressionante constatar como os ensinamentos de sábios professores do passado foram esquecidos rapidamente. Parece que esquecemos um Florestan Fernandes, um Roger Bastide, que tão bem souberam ler as nossas raízes. O silêncio a que se refere Calvino aqui pode ser transportado para uma certa conivência coletiva presente no imaginário de nossa sociocultura. Parece que lidamos com algo que não se deve tocar, pois pode alertar e acender o indesejável. Ora, ora, será que ainda vamos demorar muito para voltar nossos olhos para nosso umbigo? Não nos parece correto permitir que fique intocado tão forte passado!
O final do período escravista foi trágico. A abolição não foi fator de reorganização do trabalho anteriormente existente, mas a resposta à desorganização do próprio modelo de produção vigente. Era insustentável por vários fatores já explorados fartamente pela historiografia nacional. Segundo Evaristo de Moraes, havia um avançado processo de deterioração do corpo do trabalho servil praticado aqui. A liberdade passou a ser por conta e risco dos libertos, os quais, por inaptidão quase absoluta, exacerbavam. Não houve nenhum projeto que preparasse o indivíduo (liberto), recém saído da escravidão, para a nova vida.
... A revolução burguesa praticamente baniu o negro da cena histórica. Ela se desenvolveu em torno de duas figuras: o fazendeiro de café e o imigrante
A maioria esmagadora de nossa população foi educada como mercadoria utilizável ou algo que fosse proto-humano, ou até subumano. Outra pequena parte foi educada para comandar. Daí geralmente o tratamento dispensado à parte significativa de nossa população mais desamparada ter traços de um passado triste.
Ainda é forte entre nós o gosto pela manipulação ou instrumentalização do outro. É possível que em todos os movimentos contra a fome estejam embutidos a forma de autossalvação. Um recôndito sentimento de culpa de quem dá, de quem generosamente dá. Na maioria das vezes estão impregnadas de um certo resquício do sentimento cristão medieval, quando dar esmolas era sinônimo de salvar-se diante de Deus. Ou seja, comprar um pedacinho do reino dos céus? Porém, sabemos que temos muitos caminhos a percorrer. A marca de nossas diferenças e contrastes é nosso mais aterrador resultado. Somos marcados por um elenco de preconceitos, cujos freios ainda não foram criados.
O ser humano como valor de uso é o nosso desenho social mais insinuante no que tange as relações sociais de produção. Por isso mesmo, a cultura da submissão foi nossa maior marca até aqui, derivando daí uma configuração mais acabada do que conhecemos como 'cultura do medo' em função da reação que gerou e gestou.
Os fazendeiros trataram de culpar os escravos e, em seguida, os ex-escravos pelo abandono do trabalho e consequente desorganização, e não se interessaram, nem se comprometeram, com a situação pós-libertação-abolição em seu tempo.
A lei que promulgou a abolição do cativeiro consagrou uma autêntica espoliação dos escravos pelos senhores.
É de Roger Bastides a maior constatação do abandono dessas almas como podemos verificar abaixo:
... o negro não ficou apenas à margem dessa revolução. Ele foi selecionado negativamente, precisando contentar-se com aquilo que, daí por diante, seria conhecido como 'serviço de negro': trabalhos incertos ou brutos, tão penosos quão mal remunerados.
O combustível realmente básico do duradouro processo de construção do nosso Estado Nacional, principalmente naquilo que concerne à relação de produção e utilização de mão-de-obra foi o escravo. Havia um conjunto de incentivos mercadológicos externos e internos que garantia e incentivava a durabilidade desse tipo de sistema. O nosso trabalhador não teve sequer o direito de ser expropriado de seus meios de produção, pois na condição em que se encontrava não dispunha sequer da sua força de trabalho.
Demoramos a começar a sair do que poderíamos chamar de banda podre do sistema de produção colonial que também não agradava a parte de nossos setores sociais. Pétreo por toda Idade Moderna até a nossa contemporaneidade (Império até 1888), foi presente em todo o território, não dando chances para fugas e o fácil estabelecimento de um tipo de capitalismo pleno, mesmo que tardiamente, que uma vez autogestor, sinalizava perniciosamente para imensa capacidade de reduzir ou transformar nossos contrastes.
A permanência mais prolongada do referido tipo de acumulação dificultou o surgimento do sujeito cidadão, que ficou adormecido principalmente pelo fato de lhe ter sido negada a cidadania plena, quando livre. O resultado econômico, político, administrativo e, principalmente, sócioeducacional colhido por nós, foi o mais aterrador e facilmente perceptível aos olhares do observador externo menos atento.
Assim, o ex-escravo que era um possuído, ou seja, tinha dono, sendo, portanto propriedade, torna-se um despossuído depois de alforriado, como afirmava o professor Darcy Ribeiro. Torna-se assim, um verdadeiro paria a luz da sociedade oficial. Após sua libertação, encoutrou-se completamente abandonado, sem parâmetros de comportamento. Restava-lhe, dentre poucas opções, apenas reproduzir a submissão apreendida de quando escravo. Era comum vê-lo dando tristes espetáculos pelas ruas das cidades, principalmente no Rio de Janeiro, como afirmou Florestan Fernandes em seu trabalho.
A esmagadora maioria não conhecia sua cidadania. Possuíam-na negadas, ou seja, possuíam-na, mas não tinham a noção de como exercê-la por pura ignorância. Encontramos aí a raiz do que chamamos de excluído social. Tipologia de indivíduo que frequentemente se encontra pelas ruas da cidade, favelas, palafitas. Geralmente parece-nos gente sem rumo, sem destino, sem o conhecimento sequer da propriedade que tinha sobre si mesmo. Gente que vivia violando de maneira bestializada as regras sociais. E por isso mesmo, por uma extrema necessidade de sobrevivência, preferencialmente coletiva e identitária, constituiu o grupo social que desafia até hoje a sociedade oficial, o qual denominamos em trabalho recente de Sociedade Paralela: a ordem do diferente, ou como quer a professora Helena Katz, Corpos Socioculturais, ou ainda como quer Evgen Bavka, ...Corpo: espelho partido da história. Formam hoje a vasta população habitantes das cidades macrocéfalas cuja população, em sua vasta maioria, convive em condições subumanas com escolaridade e qualidade de vida muito inferior aqueles que vivem no campo. São pessoas que sofreram o processo de atração e ao mesmo tempo de repulsão. Suas identidades ou são precaríssimas ou ainda absolutamente precárias, ou ainda inexistentes na prática.
3 - A relação escola, sua interlocução e representação.
Sentir piedade de um ser humano, é conduzi-lo a destruição(Nietzche)
Assim, grupos com os quais a academia tem se mostrado totalmente incapacitada para o contato, leitura e entendimento. Quanto ao trato, inclusive, nem se cogita. Caso esse contato venha a existir um dia, certamente, cremos, faltará tecnologia e discursos adequados, principalmente porque falta interlocução e representação na relação entre os que vivem em uma sociedade urbana totalmente integrada nela. Sobre ser a favor, ou contra, pode-se comprovar que sobre eles pairam apenas os seguintes e extremados comportamentos: o medo ou então a pena, que enseja sempre a triste crença de que não seriam capazes de recuperar o que perderam ou nunca tiveram por absoluta negação.
Acreditamos ser a Escola uma instituição igualmente tardia no trato da referida questão. Ainda cultua, quando muito, o trabalho de resgate para inclusão pura e simplesmente sem o saber que a questão aqui tratada exige.
Ora, convenhamos, quais os artifícios sedutores existentes entre esses dois mundos sociais capazes de reuni-los, somá-los, se seus códigos de identificação diferem radicalmente pelas históricas distâncias entre eles? Provavelmente, não se trata de discutir um problema de tanta grandeza apenas sob a ótica da reunião, o que fatalmente resultaria numa centralidade paradigmática. Porém, como promover o resgate dos excluídos sem sequer perguntar se desejam? Para ser eficiente, a Escola pensada pela academia não pode e nem poderá ter essa incumbência sem antes animar o sujeito cidadão, que habita cada um e que é sempre revelado de maneira irrefletida e com resultados inesperados, porque pensados sempre como uma maquiagem da cidadania. Talvez se deva, pelo menos, promover esse tipo de corolário a partir de suas ações educativas. Cidadania se constrói e se ensina, principalmente, a cidadania competitiva!
Suspeitamos que tal construção, para ser tarefa da Escola, deve ser concebida de maneira transdisciplinar. Do possuído ao despossuído e daí para o excluído social, ou ainda o que a Viviane Forrester afirma ser o 'eliminado social', existem imensas distâncias que são plenamente recuperáveis.
Certamente, o quadro de exclusão social que descrevemos garantiu praticamente a construção de uma Escola diferente em termos de práxis. Esta se apresentou sempre como alternativa daqueles que se viram envolvidos no manto estigmatizador da Sociedade Paralela ou corpos socioculturais independentes. Uma sociedade cuja maior identidade sempre foi à cultura da criminalidade, signo identitário absolutamente negativo. Sua população sempre foi vista como vagabunda e perigosamente misturada com os restos dos descamisados, caso queiramos fazer comparações. No mais profundo abandono, acabaram por construir uma cultura paralela de difícil identificação, competitiva também, porém, dentro do seu especial universo social e cultural. Um universo gerador e gerado pela forma multi-identitária, sempre paralelo à sociedade oficial, configurado numa espécie de Escola de Favela. Lá é sempre comum ouvir, como forma de distinção social, frases que são verdades identitárias, como essas: malandro é malandro, mané é mané; ensinamentos de conduta como, Urubu que voa com morcego acaba dormindo de cabeça para baixo; ou ainda, Meu chapa, tome cuidado que canguru carrega filhote no bolso.
São inúmeros os elementos, frases, construções de imagens de todo um especial imaginário, que ajudam a configurar todos os seus corpos socioculturais paralelos e a respectiva Escola na favela. Porém, nosso propósito maior é evidenciar sua real existência. Abrir um viés que permita sua percepção e um tratamento distinto e qualificado. Enfim, discutir as novas fronteiras socioculturais, tratamentos, desafios, conflitos, diálogos, inclusive, no espaço onde a palavra não aparece na relação entre a Escola na Favela versus Escola de Favela.
4- Gente de favela tem que tipo de cidadania quando habita o espaço da exacerbação da violência?
Sabemos que a relação violação-violência foi e tem sido uma presença constante da vida coletiva e encontrou sempre no Estado seu maior freio, ou seja, a ordem, cujo monopólio e proteção que é dele, sempre serviu como freio a qualquer processo de desordem promovido pela referida relação.
No Brasil, a partir do governo Collor de Mello, observamos uma acelerada construção de um Estado do tipo neoliberal, modelo onde residiu a maioria das razões que explicam a aceleração e corporificação de uma onda de relações de violação-violência que só fez aumentar a instabilidade social, principalmente no urbano fluminense. Valendo-se da atmosfera e espírito ideológico vivido no país na ocasião, o neoliberalismo ganhava espaço, fundado e definido exatamente pela máxima da ausência do Estado, o Estado mínimo. A precária ou indesejada e negada cidadania dos despossuídos sofreu então um sério golpe. A presença do Estado tornava-se cada vez menor. Sua vital importância parecia diminuir rápida e significativamente nas relações organizadas existentes no nosso coletivo. E a vítima maior disso tudo foi o baixa renda, o despossuído, cujo abandono em que vivia tornava-o excluído social.
No que concerne à ausência do Estado, esclarece Gramsci, a sua legitimação se dá na medida em que consegue juntar política e cultura de uma forma indelével. O Estado então constitui agentes que vão produzir e difundir elementos e conceitos que estarão no cotidiano da sociedade. Assim, é obvio que é na cultura, ou nos códigos culturais de uma sociedade, que passa residir a hegemonia, a qual se estabelece com a apropriação do capital cultural. E mais, no caso que tratamos aqui a hegemonia do Estado começa a se desfazer, dando espaço a formações microscópicas de pseudo-Estados no interior da sociedade urbana, inclusive com universos culturais identitários, ou seja, próprios. Uma vez que a sociedade começa a criar suas novas diferenças e relações, o conjunto descaracteriza-se e dá origem a uma multiformação social com hegemonias próprias.
Ser hegemônico é ser detentor do poder de interferência no conjunto organizado (Estado), alterando, dirigindo e/ou criando um novo código cultural para si. Assim, a hegemonia política, no que tange ao interior de uma realidade de Estado democrático neoliberal, torna-se ineficiente em uma democracia cambiante como era a nossa em grande parte do séc. XX. O nosso modelo político acelerou o alargamento de nossas contradições. Como em Gramsci o papel do intelectual neste Estado é o de formador de opinião, comportamento e conceitos; bem como o de disseminador de uma identidade cultural, qual seria o seu papel na sociocultura de corpos paralelos construída principalmente nas favelas? Quem é o formador de opinião na cultura de favela? Quem sustenta e alimenta o imaginário da população? São perguntas que exigem ainda respostas mais competentes. Certamente não é somente do intelectual.
O morador de favela, geralmente e inversamente aos que estão fora dela, vive quase sempre na contramão da ordem. Os periódicos da cidade do Rio de Janeiro insistentemente mostram com uma participação avessa, não-participativa, oculta no manto do sofrido. Reside lá muito comportamento pouco obediente às leis do que se considera Estado. Dessa forma, o Estado ausente do neoliberalismo acaba por abrir espaços para uma cultura ainda não decodificada, marcada pela violência, culturalmente diferente, imprevisível aos olhos da ordem do Estado. Surpreendente sempre a ele mesmo, porém, misturada no seu manto protetor. Entregar a escola a tarefa de educar seus frutos, geralmente vistos como braço podre da sociedade, é por demais cruel e irresponsável.
Exige-se do Estado, portanto, fineza de percepção para vislumbrar a necessidade de escolas específicas e diferenciadas. A reestruturação modernizadora que precisa sofrer a escola nos nossos tempos encontra raízes na nova leitura desses coletivos organizados que chamamos de favelas. Seguramente não há mais espaços para a pulverização de informações sem que antes sejam filtradas e adaptadas às realidades com as quais se está lidando. O que a mídia tem feito é obviamente merecedor de crítica, seleção e censura nos referidos casos.
Escreveu Betinho:
O controle dos meios de comunicação de massa constitui privilégios de alguns grupos que editam a realidade do país, segundo interesses e visões, onde o que menos importa é o que acontece. A mídia se apropriou do imaginário e com ele tenta dirigir a realidade em benefício da ordem dominante, excludente. A questão hoje é saber se a mídia é o 4º ou o 1º poder da República, e como sua gestão pode ser democratizada.
Sem dúvida a Sociedade Paralela na favela vê-se envolvida pelo poder da mídia. Não é novo que um criminoso atinja posições de destaque no seu meio pela fama e, muitas vezes, ela é alimentada por um forte e sensacionalista noticiário irresponsável e aterrorizador. Seguramente, o poder da mídia provoca uma forte substituição do Estado na maioria das suas ações. A sociedade paralela é refém da mídia quando se trata do seu poder de influenciar. Não nos esqueçamos que o líder não só cria, mas vive da fama. Ocorre então, nesses casos, uma verdadeira dilapidação do Estado que ideologicamente ausente, inexoravelmente pode se tornar impotente e ineficaz. Pode chegar até a não conseguir ser reflexo da sociedade pelo distanciamento. No Estado Neoliberal corre-se o risco perigoso de se trocar de condutor, devido ao imenso distanciamento que se verifica. Neoliberalismo somente com efetiva inclusão social. Para Francisco de Oliveira:
"Essa dilapidação proporcionou o clima para que a ideologia neoliberal, já avassaladora nos países desenvolvidos, encontre terreno fértil para uma pregação antissocial".
Segundo Biondi, o sistema neoliberal provocou uma dissolução do consenso estatista. Nele, a mídia entra em cena junto à opinião pública, numa campanha em busca da aceitação natural das privatizações. Ora, as privatizações contribuem para a desconstrução material do Estado (e não desejamos discutir as razões puramente materiais). Não podemos esquecer que as privatizações tiveram o propósito de fazer um Estado mais ágil, sob a justificativa de ser exigência de um capitalismo leve, flexível, que dispensa pesados equipamentos, construções, organização burocrática sólida e vigilante. Um capitalismo cuja sociedade não valoriza pactos com as organizações sindicais ou investimentos duradouros no local e, principalmente, tende à produção de relações fugazes, fluidas, contrastando-se com a velha solidariedade operária e as formas de identidade cultural de classe abordado pela historiografia marxista inglesa. Reduziu-se e se procura reduzir mais significativamente os velhos cabides de emprego. Currais políticos mantidos a custa do dinheiro público, começaram a sofrer pressões. Mas, por outro lado, relegou-se ao ostracismo uma grande e conhecida camada da população de desassistidos, uma vez que a livre iniciativa, ou iniciativa privada, fundada em máximas como livre negociação de salários, construiu como corolário um capitalismo mais excludente e insensato. Juntamente com as novas exigências do mercado de trabalho num mundo que se globalizava cada vez mais, aumentou-se desmesuradamente a exclusão social
As favelas se multiplicaram não só em número, mas em tamanho, abraçando uma variada tipologia de gente, formando, perigosamente, um coletivo híbrido nos centros urbanos como o Rio de Janeiro. O Estado, com sua ausência, passa então a dar espaço a um tipo de violência simbólica, que custa muito caro, hoje, para ser resolvida e permitir melhorar o desenvolvimento humano.
Sobre esse tipo de violência a professora Sônia Regina Mendonça afirma que:
"... a mais profunda e estrutural modalidade de violência perpetrada pelo Estado: a violência simbólica, cujo modus operandi se dá à sombra da permanente naturalização de seus objetos e/ou alvos, configurando o que se poderia chamar de um permanente 'estado de violência', onde o que está em jogo não é a integridade física de indivíduos ou grupos, mas sim a integridade de sua participação cultural".
Ora, sabemos que uma forma de se avaliar e compreender a ação do Estado neste momento em que buscamos ler a ação e o movimento de um dos seus braços mais importantes (Escola), está em entender o significado de violência simbólica que pratica. Com esse comportamento, o Estado se distanciou de suas tarefas fundamentais. Provocou uma séria fragmentação dos códigos ou os deixou ao sabor das construções diferenciadas de formações sociais multifacetadas que a sociedade urbana do Rio configurou. Aí se constata como corolário a corporificação de uma formação social violenta, perigosa cujo combate é discutível, complexo e delicado em todos os aspectos.
Voltando a visão de Estado em Gramsci notamos que a busca do consenso só se dá a partir de uma dominação cultural e de uma certa hegemonia na produção e divulgação desta cultura a qual, como capital simbólico do Estado, passa a ser ineficaz, porque pulverizada, multiforme e variada dentro da cidade que desvirtua o discurso educativo. Porém, se a sociedade paralela é corporificada na favela, podemos supor, então, que respeite uma outra forma de hegemonia, uma outra forma de Estado, uma outra forma de organização social. Sendo a legitimação da ausência do Estado marca do neoliberalismo, ela se dá na medida em que este acaba por juntar política e cultura de uma forma indelével. E se cultura pode ser entendida como as mais diversas formas de comportamento e pensamento de uma dada sociedade, até mesmo a paralela, o conceito gramsciano parece-nos bastar.
Contudo, quando verificamos que a sociedade paralela se corporifica e se multiplica numa velocidade e proporção que ultrapassam as fronteiras hegemônicas do que consideramos o próprio Estado, notamos aí ineficácia do conceito gramsciano para os tempos atuais. Sendo assim, o Estado que constitui agentes que vão tratar de produzir e difundir elementos e conceitos identitários do universo social, no caso o da favela, não escapa a inexorável condição de ser por vezes inconveniente.
Bourdieu diz que o esforço da legitimação da lógica neoliberal de Estado Mínimo gera na sociedade brasileira um consenso em torno dos ideais estabelecidos no código cultural apropriado pelo referido sistema. Entende ser possível a questão de formação de consenso. Nele, o consenso passa a existir no momento que todo um coletivo social estaria coeso em torno das ideias difundidas pelo poder central.
Porém, sabemos que ainda não é apenas neste nível que acontece sua explicação para o desejado consenso. As consequências oriundas das ações do Estado hoje na cidade do Rio de Janeiro mostram um sério conflito social de uma sociedade multifacetada, cuja identidade cultural não é unificada e tampouco unida. O referido autor define também a existência de um campo, que é exatamente o lugar onde as necessidades dos agentes vão estar em conflito. É o espaço onde as relações de poder vão estar postas, e se dará à relação entre o que ele vai chamar de dominantes e dominados. Fato também marcante se olharmos para a vida na favela. Principalmente, se a olharmos como uma sociedade paralela, cuja qualidade e variância dos conflitos refletem a sua multiformação social.
Se Gramsci está correto, esta relação de dominação estará sempre interligada com a organização de determinados setores sociais em aparelhos privados de hegemonia, espaços privilegiados para a difusão de propostas que buscarão consenso. Para isso, o Estado, em sua definição ampliada guarda um espaço de consenso. Neste caso, a análise da questão ganha nova complexidade. Pois, a sociedade paralela que detém a Escola de Favela, apresenta-se sempre em oposição a representante oficial que hoje é uma Escola na Favela. Caso a questão seja apenas territorial, a segunda escola é a invasora, não importando aqui discutir suas causas. Porém, o inverso também se justifica.
Contudo, não se trata de uma invasão qualquer. No campo simbólico, ela se mostra como geradora de conflitos entre os códigos identitários distintos, demarcadora de uma espécie de hegemonia presente no nível da disputa por uma territorialidade não decodificada por nós. Mundos culturais onde o não consenso é mais forte do que o inverso. Podemos notá-lo com muita facilidade. É claro o desejo expresso por eles nessa direção.
A professora Sonia Regina Mendonça traz uma importante contribuição com sua afirmação na qual diz ser peculiar ao Estado contemporâneo guardar um espaço de consenso e de violência. Fica claro o digno respeito à dialética de sua formação e composição. Quando a professora apresenta a política, o Estado e a cultura como inseparáveis, procura perceber algo maior que abraça e cuida do todo complexo que representa o Estado contemporâneo. Apontando essa tríplice inseparabilidade, levanta e abre caminho para se pensar em formas e maneiras de solucionar ou talvez administrar o conflito com vistas ao bem comum. Porém, a composição e o movimento dos da Escola de favela reage sempre negando o que lhe é sugerido e proposto. Uma coisa é conceber as duas formas num universo democrático, outra são constatar sua impossibilidade radical e real. O Estado neoliberal não é e nem foi eficaz no espaço restrito da favela. Lá, a maioria da população é formada de despossuídos, pessoas historicamente negadas em sua cidadania.
As políticas e o poder são inseparáveis da cultura. Até mesmo instituições tipicamente relacionadas com a violência como o Exército e a Polícia demonstram pelos seus atos que o Estado está distante e impotente para atuar nos conflitos urbanos internos do país. Primeiro, por não refletir mais a verdadeira tradução da práxis que diferencia ordem de desordem. Segundo, por não conseguir mais definir seus comportamentos éticos, pois vivem na linha de frente do combate, ora sendo caça, ora sendo caçador. Sua geografia territorial de trabalho é a rua que é de todos.
Configura-se assim, aos nossos olhos, um Estado perigosamente ausente. Ele não terá condições de ser reflexo da ordem. E, exatamente por sua ausência, passa a ser responsável por um variado caldo de desordens. No que tange à ideologia, sua ausência exala uma imagem de covardia, escapa-lhe a capacidade de assumir suas reais responsabilidades, puras e simplesmente por não ter decodificado antes o novo cenário de nossa complexidade social. Sua ausência lhe reserva a tarefa final de cuidar dos espólios de uma guerra surda, na qual ele passa a sofrer de um certo autismo. Na esmagadora maioria das vezes mudo, parece fingir não perceber. Compromete todo um elenco de responsabilidades individuais e coletivas de uma convivência cidadã em repúblicas do nosso tipo, fracas, cambiantes e impregnadas de dono, como a tivemos em um longevo tempo de nossa história recente. Uma república produzida do espólio de uma nação educada no centralismo administrativo imperial do século XVIII, eurocentrica, bastante contemplativa, híbrida e mestiça, ou seja, crioula, principalmente na cultura e pensamento. Proliferaram aqui múltiplos mundos culturais não percebidos aos olhos do hegemônico poder de um bestializado Estado naufragado em suas próprias incertezas. Incapaz de perceber que ao seu lado crescia e se corporificava uma imensa sociedade paralela, cuja identidade é infelizmente apenas encontrada na criminalidade, na cultura do crime, delinquência e ludibrio. Geografia onde a Escola oficial tem sido absolutamente tímida e produtora de ínfimas ações. Obviamente, que respeitamos os limites últimos dela. Mas é impossível não admitir sua gigantesca importância nesse universo.
Feliz ou infeliz na interface de tudo isso, entra a mídia eivada de forte carga ideológica para fazer a vez dos instrumentos de legitimação do Estado. No nosso caso, ela se apresenta sempre com esse útil perfil. Como na maioria das vezes não é acompanhada de interlocutores capazes de sustentar um debate substantivo sobre a reverberação de sua, muitas vezes, perigosa contaminação, principalmente nas camadas sociais mais desamparadas e desassistidas de consumidores, acaba por ser usada ao sabor do centro hegemônico de poder. Promove, forma e educa quase sempre de maneira avessa ao que pretende a educação como um todo. Contudo, nem sempre podemos culpá-la, pois se trata apenas de um veículo de comunicação. Tem compromisso com a notícia, com a informação. Com algo que por si só é apenas mensageiro, informativo.
Como resultado de sua atuação o que se verifica, quase sempre, é a apresentação de um Estado apenas no que se refere ao desenho gráfico de sua existência. Dificilmente ele pode se apresentar vivo, dinâmico e atuante. Jamais poderá ter sua eficiência e capacidade de solução totalmente testada. No quadro neoliberal em que vivíamos, a máxima que vaticinava sua ausência acabava por configurá-lo como o inverso, principalmente, no que concernia às populações que aqui tratamos. É comum sentirmos uma estranha presença que facilmente podia ser denominada de um Estado Ausente. Transformador da utopia neoliberal num simulatório caótico de vidas e experiências compositoras, em seu conjunto, de um conteúdo cultural desconhecido, localizadas no território que antes fazia parte do grupal e que, com seu crescimento ainda que desalinhado e desordenado, tornou-se um diferencial que chamamos de favela, onde habita a sociedade paralela. Tudo isso se torna portanto um grave empecilho aos pretendidos globalismos locais ou localismos globais.
"A propaganda ideológica (...) é mais ampla e mais global. Sua função é a de formar a maior parte das ideias dos indivíduos e com isso orientar todo o seu comportamento social. As mensagens apresentam uma versão da realidade, a partir da qual se propõe a necessidade de manter a sociedade nas condições em que se encontra ou de transformá-la em sua estrutura econômica, regime político ou sistema cultural.
Formar consenso junto a uma sociedade absolutamente desigual é, então, estar efetivamente pondo em prática o Neoliberalismo. Os efeitos dos mecanismos da globalização no campo da educação tem o seu lócus de viabilidade dificultado. O ludibrio que a realidade causa por não conseguir revelar desigualdades e (dês) ritimos ocultos no conjunto social que a favela comporta passa a ter aqui vital importância.
Com base no que diz Perry Anderson, o Neoliberalismo que surgiu na Europa logo após o final da Segunda Guerra Mundial, como uma reação teórica e política contra o Estado Intervencionista e de bem-estar, foi fonte reveladora de conflitos e confrontos sociais ocultos na sociedade, com os quais lidamos até hoje. Fortalecido na Europa e no Norte da América, sempre pressupunha um Estado que geria sem gastar com bem-estar, propiciando lucratividade para a iniciativa privada.
Sabemos que para o Estado Neoliberal atingir a plenitude tratava de estabelecer as suas bases através de intervenções sociais e políticas. Assim, enfraquecia os sindicatos, principal instrumento de luta daqueles que sustentavam o processo, gerando através de um desemprego elevadíssimo, um grande número de reserva de trabalhadores e exercia um excessivo autocontrole com relação ao seu orçamento. Os cortes eram feitos nos gastos com bem-estar. Esta política econômica acabava por aumentar a clivagem social entre os mais abastados, que dela se beneficiavam e os menos favorecidos, que sobreviviam sob o temor do desemprego e de salários baixos. O Estado neoliberal acabava então por se valer de sua força de intervir como modelo na economia, porém sem participar dela como provedor de bem-estar. Este fortalecimento ocorria também em função da aceitação da sua ação por parte da sociedade. Esta aceitação ocorria através da naturalização da ideia de que a ação visa combater a hiperinflação, apresentada como a grande causadora das desventuras que atingiam a população. Em nome deste combate, parte da sociedade acabava por aceitar as mais drásticas medidas.
Claro que entendendo que existia uma íntima relação entre o Estado Mínimo e a sociedade, presentes nos processos de privatização, implementados pelo Governo Federal desde o antigo governo citado, no período delimitado, bem como com uma transferência de responsabilidades de atribuições para a sociedade civil. Para que estes elementos encontrem ressonância junto a esta mesma sociedade, faz-se necessária uma intensa campanha desfechada pela mídia, naturalizando estas ações.
Por tudo isso é que acreditamos que somente no neoliberalismo seríaamos capazes de sentir a força e percebermos a presença de tamanho confronto de mundos educacionais diferentes no interior do todo complexo da sociedade fluminense de hoje. Nos dizeres de Schade, temos o inusitado, nunca pensado, mas acontece: "Somos levados por forças invisíveis às quais os criminosos obedecem sem o saber".
Não temos dúvidas de que o paradigma do estamento é ainda meio e referencial das instituições sociais e organizações empresariais no Brasil. Sabemos que a Escola, também, é uma das suas vítimas. Traz uma certa dose de autoritarismo na maioria de suas ações educativas. Em que pese todos os avanços, projeta e domina de cima para baixo, na maioria das vezes. O modelo estamental é parte definidora do imaginário cultural do povo brasileiro. Contudo, se a razão estamental é oposta à cultura cívica democrática, notamos também que dificultou no passado e ainda, cremos, dificulta hoje a formação do nosso cidadão. Florestan Fernandes apoia Anísio Teixeira dizendo que teria acertado quando afirmava que com a implantação da República, a educação tinha deixado de ser de príncipes para ser de massas de cidadãos.
Porém, o autor esqueceu de verificar que crescia ao largo uma formação social que não conseguia ser abraçada, entendida, ajustada, assimilada pela sociedade e pela Escola, simples e puramente por ser diferente e de existência desafiadora. Assim, podemos afirmar que já é antigo o autismo sintomático de nossa citada instituição. Pecavam profundamente em não perceberem o desenvolvimento de uma Sociedade Paralela, cuja trajetória acabou por configurar um verdadeiro universo identitário de saberes e hábitos diferentes e novos. Aos olhos da Escola, sempre viveram no ilegal, no ilícito e no clandestino. Sua cultura diferencial teve como resultado mais ameaçador o embasamento do que denominamos Escola de Favela. Um mundo de códigos e práticas de vida totalmente diferentes e principalmente não decifráveis completamente. Esta ESCOLA vive hoje um verdadeiro dilema, negociar a geografia de suas atuações ou optar pelo trabalho de resgate. Com relação a esse difícil impasse, o maior empecilho é nossa tradição de sociedade patrimonialista.
"Trata-se da dupla característica, interligada do estamentalismo e do patrimonialismo, que trazem até hoje certa situação de patronato político".
O processo de favelização é recente em nossa história fluminense, teve início na transição dos séculos XIX/XX, quando na busca de proximidade com o mercado de subsistência e a redução de tempo de deslocamento. Apesar da insalubridade e das precárias condições de vida, a população pobre buscou áreas centrais da cidade. Lá havia o maior pólo de atração do movimento migratório português. As correntes de migração internas tinham várias origens, pessoas de Minas Gerais, Nordeste principalmente e alguma transumância da Província.
Todos acabavam formando um caldo populacional multifacetado na cidade do Rio de Janeiro, habitando, com grande frequência, o mercado informal pós-abolição. Foram capazes de gerar uma composição étnica impressionantemente rica e que engrossava o contingente de desempregados e subempregos no centro urbano, tornando-o complexo no trato na exata medida do seu crescimento. Assim, a questão da cidadania ficava muito difícil de ser clarificada uma vez que, pela necessidade de sobrevivência, muitos ignorantes dos seus direitos e deveres acabavam numa vida de violações, eivadas de práticas violentas de conduta.
"Para Raymundo Faoro cidadão é identificado pelas seguintes características: grupo de indivíduos, cuja elevação se calca na desigualdade social supõe distância social e se esforça pela conquista de vantagens materiais e espirituais exclusivas; no estamento, não vinga a igualdade das pessoas; configura governo de uma minoria: poucos dirigem, controlam e infundem seus padrões de conduta a muitos, governo patrimonial que se projeta e domina de cima para baixo; a estabilidade econômica favorece a sociedade de estamentos, assim como as transformações bruscas, de técnicas ou das relações de interesses, os enfraquecem, daí que representem eles um freio conservador, preocupados em assegurar a base de seu poder".
Há uma estranha relação de atração e rejeição entre o metropolitanismo e a pobreza. Provavelmente ela se deve ao fato da primeira oferecer uma convivência socializada à segunda. Oferecendo também expectativas de sucesso, progresso material, padrão desejado de bem-estar social e acessibilidade aos serviços sociais urbanos de qualidade que seduzem a segunda. Porém, o quadro de inacessibilidade instrumental que o pobre agrega é tão imenso que estabelece entre eles distâncias gigantescas e limites inatingíveis. Assim, por um processo de grande sofreguidão há uma tendência à reprodução da pobreza pela primeira, através das gerações que se sucedem. Configurando-se quase como uma regra pétrea, por ser altíssima a probabilidade do filho do pobre permanecer como tal, herdando a brecha de subsistência oriunda das conquistas paternas que são quase sempre muito reduzidas para garantir-lhe ascensão. Tal quadro é tão atual quanto antigo, é tradicional, é cultural, impregna a maioria das nossas famílias. É inquestionável que na penumbra do desejo que move os habitantes na geografia da Favela resulta quase sempre a ocorrência da reprodução familiar da pobreza. Reproduz-se quase que fatalmente, como se tivesse sido determinada previamente. Parece uma forma de determinação sistêmica do nosso capitalismo tupiniquim tardio.
Podemos verificar, salvando-se exageros de proporções, que ao longo da construção da historiografia nacional, a tendência probabilística do filho do pobre favelado permanecer na mesma condição, herdando a cultura de subsistência paterna, é pura reprodução, portanto, também educativo e retroalimentador. Vivendo-se do ponto de vista da condição de miséria e, principalmente nela, acaba-se correndo o risco de aceitá-la, conformar-se com ela, concebê-la como componente inseparável de sua praxe de vida cotidiana, cultural, universo imaginário-emocional e cosmogonia.
A distribuição sócioespacial da população do Rio de Janeiro, espremida entre o mar e a montanha, colaborou e continua a colaborar para que os problemas se avolumem sempre, com poucas soluções de curto prazo. Sabemos que uma grande transformação no final do século XIX, quando os ricos deslocaram-se do alto do morro para a orla marítima, melhorada com as obras de aterramento dos brejos. Algumas camadas sociais ligadas à logística da cidade permaneceram nos prédios degradados, casebres do centro da cidade. Outra parte dela, ao longo do século XX, distribuiu-se pelos novos cortiços, loteamentos improvisados e pelas favelas, nas encostas dos morros e zonas inundáveis. Assim, a favela impôs-se pouco a pouco de maneira efetivamente presencial no urbano da cidade.
No final do século XIX, as populações pobres viram-se imbricadas numa multidão de pessoas fadadas a uma vida de desprezo e algumas até na indigência, vivendo na mais absoluta exclusão social. Eram os despossuídos que nos referimos. Eles estavam ligados a eixos dos subúrbios e nas favelas, em encostas de morros e zonas insalubres, ou mesmo áreas de alagadiços.
Vagarosamente, a presença da favela passou a se impor efetivamente na geografia social da cidade, acomodando-se como um disforme apêndice, insistindo em viver e sobreviver a tudo e a todos. Permanentemente sua aderência ao corpo social urbano era imperiosa mesmo sofrendo a oposição e o desprezo dos cidadãos de bem. Porém, participava de maneira avessa à urbanidade. Desregulava condutas, negava princípios e invadia a cidadania dos bons ou oficialmente aceitáveis. Possuíam uma miséria visível, crescente e pronunciada que se resumia na palavra: favela. Aqui, o nosso trabalho exige maiores cuidados, pois favela não é fruto do acaso e resume toda tipologia de miséria que caracteriza especiais conjuntos tipológicos de universos sociais paralelos. Possui uma história registrada e exaustivamente explorada. Mais de um século de construção social do indivíduo de vida diferencial.
Assim, o ex-escravo, ex-possuído, ex-propriedade, torna-se um despossuído, indesejado pela sociedade fluminense decadente e europeizada, sem saber sequer exercer sua cidadania, porque ninguém havia lhes apresentado os seus direitos e deveres. Alguns não tinham nem a consciência de sua nova existência. Comumente, muitos se entregavam ao vício. Eram encontrados bêbados e como bebuns eram tachados. Eram classificados de arruaceiros e de incômoda presença. Eram no passado, e até hoje possuem somente a rua como espaço do trabalho. Geralmente como clandestinos, ilícitos, ou até mesmo ilegais, apareciam em quase todas as atividades urbanas. Muitos tinham e tem até hoje o morro como abrigo/refúgio numa cidade como a do Rio de Janeiro que parece ignorá-los. A cidade só se lembra deles quando representam algum tipo de ameaça a estabilidade social da ordem estabelecida, ou mesmo quando desestabilizam quaisquer das faces do 'tecido social urbano oficial', ou ainda na 'geografia do voto', ocasionalmente, em épocas de eleições.
Baseado na literatura que trata da questão, a esmagadora maioria dos favelados que não conhecia e seu lado cidadão, continua sem ter sequer plena consciência dele. Deveres sem direitos foram e é o que sempre lhes apresentaram. Possuem uma cidadania negada sem o saber. Podemos notar claramente essa realidade em um trabalho organizado pelos professores P. Gentili e G. Frigotto que, inclusive, dizem que o problema não é somente nosso.
Enfim, aí encontramos uma das raízes que explicam o que chamamos de excluído social. Tipologia de indivíduos que frequentemente encontramos pelas ruas da cidade fluminense, em favelas, em palafitas etc. Quase sempre classificadas como gente sem rumo, sem destino, muitas das vezes sem o conhecimento da propriedade e responsabilidade que tem sobre si mesmos. Vivem marcando suas vidas por violar constantemente as regras sociais por pura e total ignorância.
Por isso mesmo, movidos pela extrema necessidade de sobrevivência, preferencialmente coletiva e identitária, resultam por constituir um mundo social paralelo de desenho profundamente enigmático e desafiador. Hoje, encontramos lá efetivamente a corporificação de uma Sociedade Paralela.
É uma população que a Escola na Favela tem se mostrado incapacitada no trato e totalmente tardia na abordagem. Provavelmente, pelo fato de cultuar ainda uma proposta de educação que resgate e inclua o excluído, sem antes, para ser eficiente, promover o principal: animar o sujeito cidadão. Afirmamos que para isso, a tarefa não pode ser feita apenas por ela. É, antes de tudo, um trabalho cuja produção deve ser pensada, construída e executada de maneira transdisciplinar. A sua complexidade é intrínseca e extrínseca, envolvendo várias vertentes, porque possui várias razões.
Trata-se de construir um novo tipo de Escola de Inclusão, que não cabe tratar in totun nesse breve artigo. Nosso propósito, aqui é apenas alertar para as novas fronteiras existentes entre as duas Escolas, onde o verdadeiro dialogo, se existe, é de simbologia e de decodificações difíceis, mas onde a interpretação é necessária e urgente.
O que temos visualizado até aqui, em linguagem metafórica, configurou-nos apenas a lamina d'água, a superfície dos acontecimentos, cuja organização traduziu muito dos falsos retratos de nossa sociedade, local onde quase sempre as aparências nos enganaram. Observemos com maior acuidade a questão: certamente existe uma outra Escola de Inclusão a ser construída! No diálogo entre a Escola na Favela e a de Favela temos geralmente choques e desencontros provocados por monólogos insensíveis de ambas. Em alguns momentos, eivados de paternalismos exagerados, ou contaminados por um sentido de pena medieval, encontramos vozes ardentemente desejosas de se salvarem do juízo final.
Comportamentos assim da Escola na Favela parecem inaugurar uma espécie de Nova Idade Média. O medo gestado e gerido por uma educação religiosa teocentrica é capaz de mobilizar as pessoas de comportamentos radicalmente unilaterais e absolutamente insensíveis, provocando ações e reações, geralmente momentâneas e denunciadores de uma supostamente necessária profilaxia urbana.
Está graficamente exposto no imaginário social urbano de uma certa camada da burguesia amedrontada que o morro, a Favela, é motivo de grande preocupação das autoridades cariocas pelo composto social e comportamental de sua gente. Hoje, a favela é sinônimo de ameaça, não muito diferente de antes, principalmente porque sempre foi vista assim, eivada de desconfianças. O surpreendente é que ela não pode ser vista mais como apêndice, como um quisto sebáceo, ou algo que deve ser extirpado do corpo social. Embora ocupando uma geografia de repulsão no interior da cidade macrocéfala que se tornou o Rio de Janeiro e adjacências, não pode mais ser ignorada. Vista comumente como geografia da violência, é a favela e sua respectiva população ainda discriminada como local de população que usa da prática de negócios irregulares, como por exemplo, a droga. Local da vida desregrada, geografia microrregional de desordem urbana, da feiura. Composta de pobres infelizes despreparadas para a vida que, na maioria das vezes, aparecem classificados como baixa renda. Embora as favelas tenham aproximadamente 100 anos de existência, pode-se dizer que o preconceito não só é vil, mas é historicamente vil.
O seu abandono, sua vida não cidadã, sua maior ausência de direitos e maior presença de deveres, em alguns casos até exagerada, provocou uma forma de indignação quase sempre calada que deu origem a um corpo social falsamente emudecido, um Corpo Calado, uma Sociedade Paralela que agora se faz notar pela exacerbação de sua vida violenta, talvez porque violentada.
Na favela muitos acabaram levados a optar por uma vida diferencial, geralmente monitorada por um tipo novo de invasor, como os modernos traficantes de drogas. Suas histórias, na transição do Império para a República, ficaram sempre imbricadas em formas avessas, clandestinas, violentas e corruptas porque suas vidas foram corrompidas no que havia de fundamental para a cidadania. Geralmente viventes de um processo de banimento social recente da historiografia nacional, acabavam constantemente esquecidos pelos poderes do Estado. Enfim, formaram um mundo social independente, onde as regras, as tipologias éticas e estéticas de vida coletiva são diferentes. Hoje, a raiz de nossas desigualdades sociais é visível e mensurável. Com isso podemos melhorar nosso nível de certezas diante do problema em questão.
Hoje, elas se organizam e se apresentam institucionalizadas, dando a falsa ideia de totalmente integradas ou assimiladas pela sociedade oficial. Porém, quando observamos o teor de seus conteúdos, percebemos claramente que merecem tratamento e abordagem especial. Pretendem ter uma vida diferencial. Não desejamos aqui discutir se é justo ou não sua existência. Apenas pretendemos apresentá-las como fruto de um injusto processo histórico de abandono social praticado pela sociedade oficial.
No jornal o GLOBO, 23 de dezembro de 2001, podemos encontrar as principais organizações de luta pelo reconhecimento dessa camada social hoje. Por elas, busca-se veicular uma forma de luta por cidadania plena, inclusiva da população de favela. São elas a CUFA( Central Única de Favelas), formada por moradores de 107 favelas, entre os quais artistas produtores e pessoas ligadas a associações de moradores; o Movimento Popular de Favelas, cujo destaque sempre esteve nos projetos de transformação das favelas em centros de estudos, aliando-se a ONGs alemãs e americanas; a FAV(Federação Municipal das Associações de Favelas do Rio, com aproximadamente 600 favelas no município do Rio que, segundo um de seus presidentes, Antônio Tito, orienta a regularização das associações na prefeitura; a FAVELANIA, que é um movimento que busca despertar também a consciência da cidadania nos moradores das comunidades carentes, sejam brancos ou negros, todos crioulos da exclusão sociocultural da cidade, estimulando a educação; FAFERJ(Federação das Favelas do Estado do Rio de Janeiro), criada há 40 anos, é presidida por uma junta governativa. O seu objetivo é a integração com as comunidades e com a Polícia Militar, promovendo também a programação social e cursos profissionalizantes. Seu ex-presidente João Passos afirmava ter 200 favelas ativas.
Apesar de seu papel importante na cidade, essas organizações não são consensuais, por exemplo, a Faferj e FAV-Rio são, hoje, muito criticadas. Alegam seus críticos que se perderam em pequenas disputas políticas. Podemos citar ainda, Rumba Gabriel, presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho, o grande líder do Movimento Popular das Favelas (MPF), que defendia o surgimento de novos líderes numa tentativa que traduz grande esforço no sentido de manter a unidade absorvendo as divergências nitidamente visíveis. Porém, estas federações se aliavam sempre a políticos. Os moradores das comunidades, segundo Gabriel, estão cansados do que chama de lideranças viciadas.
O jornal O Globo noticiou que o líder do MPF desenvolveu projetos com os alemães da ONG Bauhaus e com os americanos do grupo Panteras Negras. Tratava-se de um vanguardista. Era desejo de Rumba na ocasião criar um núcleo de estudos acadêmicos no Jacarezinho e já se aventava fazer parcerias com a Uerj e a UFRJ com esse propósito. Salvo exageros, provavelmente estivesse aí a possibilidade de compreensão do novo que representam como movimento social independente. Incentivá-los ou permitir que se organizassem talvez fosse uma saída para evitar o confronto, hoje significativo, no perímetro urbano da cidade.
Ao longo dos aproximadamente últimos quinze anos o Favelania surgiu como outro movimento de destaque e liderança no cenário da cidade. Como seu representante, o presidente da Associação de Moradores do Morro Dona Marta, André Fernandes, jovem de classe média da Tijuca, afirmava que o Favelania não desejava levar nada pronto, totalmente acabado, para as comunidades. Acreditava que elas mesmas tinham que tomar consciência de suas necessidades.
João Passos, ex-presidente da Faferj, veio a público alertar que as críticas ao seu trabalho partiam de pessoas que tinham ligação com o tráfico, certamente presença importante nesse cenário. Afirmava ainda o citado representante que não tinha medo de dizer que "... tenho um bom relacionamento com a Polícia Militar (..). A polícia sempre nos apoiou...!", afirmava.
Sorry, será que no oceano das instituições representativas de favelas do Rio de Janeiro existe ausência absoluta desse medo? Será que estar próximo da Polícia Militar os tornavam diferentes numa sociedade conflituosa como a que ainda vivemos hoje? Como entender tal movimentação de ideias, interesses e intenções sem um grande questionamento de princípios culturais? Que tipo, ou tipologia de conflitos, esconde-se por trás de afirmações desse tipo? Será que a convivência de vários mundos culturais em conflito real na cidade do Rio de Janeiro é o real e inflexível ponto a ser tocado para convivermos melhor? Qual seria a cultura identitária deles? Como se organizavam e/ou se organizam hoje? Como se comportam e se movimentam hoje? Quais seriam os seus desafios mais comuns, mais cotidianos? Que tipologias codificam, respeitando suas vidas sóciogrupais? Essas e muitas outras questões fazem parte de nossa incomoda posição como cientistas da História Social Recente da cidade, dedicados a traduzir o mais novo, tanto quanto o mais velho conflito social urbano que vivemos: Escola na Favela versus Escola de Favela: quem é o invasor?
Nas aproximadamente 600 favelas do município, Democracia seria a palavra chave para definir a forma de convivência? Como administrar as imensas multidiferenças existentes entre elas? Será que precisamos de um tipo de organização estatal diferencial que congregue todas? Qual a solução para lidar com essas novas dimensões do universo educacional? O mais aterrador disso tudo talvez seja o imenso espectro de aparente impotência operacional que parece ser refletida nas instituições responsáveis? Estamos todos estarrecidos com o ameaçador crescimento e complexidade que abriga hoje o processo de favelização na cidade, cujo perfil certamente é multifacetado. Favela hoje, seguramente, não é o que apresentam os dicionários. Nelas, habita uma forma nova, talvez diferente de pseudocidadania, a qual necessitamos olhar melhor, conceituar com mais precisão, certamente ligada a outras regras sociais que desconhecemos, mas precisamos urgentemente fazer uma (re) leitura de seu ethos. Favela é hoje um conceito que não comporta mais leituras românticas que atrelavam sua existência como um simples corolário de pobreza. Suas habitações não são mais tão toscas e nem sempre apresentam a famosa folha de flandres como cobertura, como narrou o contista Luís Edmundo sobre um Rio de Janeiro Imperial. Urge abandonar definitivamente leituras antigas, ultrapassadas e impróprias. Hoje há um universo extremamente complexo de relacionamentos não lidos e até mesmo não percebidos pela academia.
A Favela apresenta um perfil bastante consolidado no padrão que se enquadraria mais no conceito de comunidade organizada. Aí, a grande questão emerge novamente: qual é a sua ordem? Qual é a sua forma de vida e cultura identitária? Se entendermos que lá é o espaço da violência, qual a razão que explica o fato da maioria dos seus moradores demonstrarem satisfação morando nesses lugares? Que tipo de emblema a favela representa hoje para seus moradores? Para tocarmos superficialmente no desenho do novo rosto das favelas, poderíamos dizer que a maior parte das habitações possuem TVs coloridas, videocassetes, DVDs, TVs a cabo etc. e são, em sua esmagadora maioria, habitações de alvenaria. Será que ela arranjou carapaça nova no novo balé do ludibrio? Muitos de seus habitantes frequentam Escolas e, portando, tem um considerável nível de escolarização. Então, porque o crime continua forte e numeroso por lá? Porque a droga vitíma tantos nessas áreas, além de submetê-los ao seu poder do terror? Porque o subemprego continua sendo uma marca forte entre seus moradores e, parece, não mais assustá-los tanto assim? E com tudo isso, quais as razões que explicam o fato de conviverem organizadamente? Sem dúvida, eles possuem uma forma de organização social diferencial que carece de leitura mais detida e responsável. Sem dúvida, trata-se de uma nova formação de sociedade paralela ainda não lida e decodificada por nós!
Nosso propósito aqui é começar a conhecer seu corpo sociocultural identitário. Entender seus conflitos, comportamentos, razões e ações diante do outro, numa cidade que vive hoje os conflitos sociais calada ou talvez nem tanto mais, cujas causas certamente extrapolam uma mera explicação econômica e/ou econométrica. Queremos alertar aqui para complexidade da leitura desse novo desenho social urbano, cuja face e mistura extremamente acrimoniosa, possui razões históricas sensíveis se observarmos as mudanças recentes no mundo global e cibernético que nos envolveu e se faz presente a todo o momento. Uma coisa é certa e notória para todos nós, o radicalismo e o inconformismo cresceram nas favelas do Rio. Embalados, a princípio, pelo som do hip-hop e pelo resgate de valores da cultura ex-escrava, todas as organizações citadas buscam meios de adquirir autoestima e cidadania plena. Ultimamente esses movimentos comunitários apresentaram, com certa constância, um discurso de defesa e de união entre favelas. O objetivo deles, supomos, parecia-nos talvez pressionar os setores públicos e a iniciativa privada para forçar a melhoria da distribuição de renda.
As carências de infraestrutura não são as que mais preocupam os grupos ou organizações. Preocupam-se mais com a falta de obras sociais que estimulem a educação e a cultura. Resta saber se realmente é eficiente, se realmente provocou e/ou provocará mudanças. Nós acreditamos que sim, mas podemos verificar que não tem sido as esperadas. Verifica-se assim que tais discursos escondem outras verdades que desconhecemos. Senão, qual a razão da criminalidade continuar forte e numerosa por lá, e ainda culturalmente identitário em sua população? Qual a razão da permanência do poder da droga submetê-los, num universo de subempregos e/ou empregados informais de um comércio e/ou atividade igualmente que sobrevive na ilegalidade, totalmente condenável pelas instituições? Que tipologia organizacional os move e os corporifica?
Com um discurso que não descarta nem uma aliança com o tráfico de drogas para impor sua vontade a ferro e fogo, a Central Única de Favelas (Cufa), chegou a criar um partido sob a sigla de PPPomar (Partido Popular de Poder pela Maioria), embora sem sucesso, pois não vingou, encontrou-se por algum tempo em processo de regulamentação pelo Tribunal Superior Eleitoral. Não podemos esquecer que, para integrá-lo, o primeiro requisito para surpresa maior de todos da sociedade oficial seria ser negro. O que consideramos gravíssimo, pois, acirraria e traria cores novas ao que já acusamos crescer perigosamente pelos corpos socioculturais independentes de maneira mimética e desaconselhável. Traduz uma ladainha conhecida e de trágica lembrança na História do séc. XX. Não podemos renegar nossa condição maior que inclusive já foi traduzida pelo saber popular como 'crioulos', quer dizer, todos rebentos da miscigenação, da mistura de raças que compomos num país multicultural, todos somos 'cria', ou para sermos respeitadores da nomenclatura original, 'crea' (cria) da casa na qual se originou a palavra primeira aqui citada. Um de seus coordenadores, o produtor Celso Athayde, pasmem senhores leitores, chegou defender a ideia de bloquear a entrada de caminhões de cerveja e de cigarros nas favelas, na época. Sabemos no que pode dar tal argumento. Alegava que eles deviam devolver o dinheiro, revertendo em obras sociais nas áreas favelizadas. Certamente, as razões que ocultariam tal discurso já podíamos conjecturar. Mímica mal feita, a melhor resposta seria como dizia a música '... Já conheço os passos dessa estrada...'.
Acreditamos que não precisemos ir muito longe para observarmos um certo movimento cismático na sociedade brasileira recente, ou por outra, ela nunca foi unida e só agora se dá conta dessa dura realidade. Também, nunca se sentiu totalmente crioula. O agravante de tudo isso é que somos todos pelo hibridismo que carregamos, 'CREA da Casa', como se diz no popular, ou seja, somos todos brasileiros! Alguns autores acreditam na ausência de Estado a razão disso tudo. Temos nossas dúvidas. Porém, certamente é ausência de leituras lúcidas do nosso velho e ao mesmo tempo novo desenho socioeducacional. Favela é hoje uma área de violência diferencial, desafiadora, que precisa ser lida, entendida, sob pena de perdermos o elo que nos identifica. A razão disso está no medo que a sociedade organizada demonstra cotidianamente nos veículos de comunicação. Seguramente, favela é hoje o retrato de uma cidadania negada por que intencionalmente adormecida pela exacerbação da violência que nela habita. O que deveríamos nos esforçar por esclarecer, antes de tudo, é se ela foi historicamente plotada, construída, ou realmente existe por ser marca da brutalidade material que define a trajetória de sua população, identificando-a de forma inexorável suas culturas?
5 - Geografia social do medo: contraditório e crescente medo da violência nas favelas do Rio de Janeiro
A pesquisadora americana Janice Perlman volta para continuar a pesquisa ao Brasil, aproximadamente no fim do século XX para o alvorecer do XXI, exclusivamente para a cidade do Rio de Janeiro, para entrevistar moradores ouvidos em pesquisa anterior, de 1969. E juntamente com Paulo Marques constata a existência do que denominamos contraditório e crescente medo da violência nas favelas do Rio de Janeiro.
Violação Contraditória, porque a violência faz parte da vida dos moradores das favelas. Porém, se há um medo maior, o fato se deve ao seu agravamento e insuportabilidade. E a pesquisadora antropóloga Perlman apresenta razões como as transformações econômicas e sociais dos últimos 30 anos, que teriam levado o progresso para essas áreas, reforçando as desigualdades e resultando na explosão de violência. Ela, inclusive, comprova essas mudanças afirmando que em 1969 (época da ditadura), percorreu as vielas da Favela da Catacumba, na Lagoa, removida para dar lugar ao Parque da Catacumba, com o propósito de radiografar as vidas de seus moradores e entrevistou 750 pessoas. Trinta e dois anos depois, localizou 244 delas em diferentes favelas. Repetiu também as mesmas perguntas.
A pesquisadora constatou que essa nova realidade aparecia quando perguntava aos moradores entrevistados: "Qual era o seu maior temor?" A resposta, em 1969, para a maioria dos entrevistados, foi o medo da remoção. Já na nova visita, observava Janice, 60% disseram que a violência da polícia ou do tráfico era o maior problema entre eles. Afinal, são as duas grandes forças respeitadas naquele espaço. O primeiro, plenamente compreendido e assimilado. O segundo, relativamente novo na história da favela, mas absolutamente definido e assimilado no cotidiano de sua população.
Na segunda etapa da pesquisa o mais grave foi à constatação de que 20,2% dos entrevistados já traziam pelo menos a dor de um parente assassinado. E mais ainda, 49,6% já tinham algum parente vitimado pelo furto. Podemos inferir daí que o crescimento desenfreado da violência acabava por ser o grande vilão da história. Definitivamente, seus comportamentos mudariam com o envolvimento nesse novo quadro. Com a nova face da violência passaram a ter uma vida de reclusão. Diz a pesquisadora que os moradores saíam cada vez menos de casa; participavam pouco das festas e das decisões tomadas nas reuniões de associações comunitárias.
Sem dúvida, o medo que as pessoas sentiam nas favelas era diferente. Elas tinham medo de morrer. Viviam vidas de terror onde a cidadania pouco significava, pois não era considerada como acreditávamos. Ou seja, o medo de morrer a qualquer hora suplantava o universo dos direitos e deveres. Em função disso, a vida cotidiana deles se modificava. A mistura do terror com a impotência individual e coletiva promoveu uma forma diferenciada de conduta nesses lugares. Os hábitos eram e são totalmente outros, absolutamente imprevisíveis e negativos aos que conhecemos. Acabam por formar um caldo novo de cultura identitária coletiva cujos códigos, o simbolismo e a dinâmica de seus referenciais que permeavam o imaginário dessa gente, desenhava um corpo sociocultural novo, desconhecido e desafiador. Era aos olhos da escola na favela um quadro muito brutal! Distanciava o diálogo entre a referida instituição e o coletivo humano favelizado. Como encontrar soluções inovadoras para problemas como esses? A melhoria material do conforto seria uma saída? Seguramente, cremos que não! Dizia à pesquisadora que em 1969 morou na favela da Catacumba e nunca precisou trancar a porta do barraco onde ficou. Os índices altos de violência não existiam.
A pesquisa que citamos aqui revela que os moradores de favela possuem hoje mais bens de consumo individuais e serviços urbanos coletivos do que em 1969. Mesmo assim, notamos que a desigualdade, a exclusão social e o preconceito cresceram numa proporção assustadora nos últimos tempos na cidade.
Por outro lado, a referida pesquisa aponta para o fato de haver hoje em dia no urbano fluminense uma maior distância entre ricos e pobres do que em 1969. Constatou, também, que a grande maioria deles estagnou, ou seja, não melhorou e nem piorou de vida no que concerne a bens referidos anteriormente. E, apesar dos dados preocupantes, os entrevistados estranhamente se mostraram otimistas. A citada pesquisadora registrou que 54% deles admitiam ser a vida bem melhor, e só 22% disseram que ela é bem pior. Mais 70% deles acreditavam que suas vidas estariam melhores dali a cinco anos no Parque da Catacumba.
6 - Eliminado social : "a História do possuído, despossuído e do excluído social numa nova relação de conflitos recente entre escolas diferentes"
Ao analisarmos o quadro social urbano fluminense, deparamo-nos com um surpreendente espaço/abrigo, no qual um grande número de novos desafios se oferece à Escola. Dentre eles, o principal é construir uma Escola de Inclusão Social que cuide efetivamente de toda uma população de rua abandonada, geralmente ex-favelada ou não, distante da escola. Já é de longa data que temos conhecimento da histórica construção de nossa nação, principalmente no que concerne aos aspectos social e cultural. Nossa sociedade tratou de marcar o indivíduo pobre que teria resultado da pós-escravidão, o ex-colono agora um modernamente visto como sem terra sempre pela sua híbrida herança cultural.
A origem e trajetória do ex-escravo na sociedade brasileira encontraram na abolição da escravidão a explicação maior. Sabemos que parte da situação de pobreza e desigualdade social que vivemos tem suas razões na prolongada história de acumulação primitiva de capital e no modo-de-produção escravista colonial. Constantemente encontramos populações pobres vitimadas pelas contradições do capitalismo, pelo peso das relações de mais-valia inerentes ao sistema. Porém, faz-se mister aqui algumas observações. O preto brasileiro é diferente! Vitimado pela escravidão preferencialmente de africanos, teve uma existência de absoluta tutela como possuído. Grassou nossa história social pontuando sua existência por esta condição. Sua escola era a da vida. Seus ensinamentos, mal ou bem, vinham da vida mimética que levavam. A sua vida era marcada pela mímica dos exemplos deixados pela camada social da qual muitos certamente nunca participariam. Sua vida tinha uma finalidade no processo de produção escravista colonial, ou seja, o de ser usado. Sua participação era depreciada na sociedade, o que futuramente traria relevos impossíveis de serem esquecidos no presenteismo de sua formação. Uma vez livre, acabava por possuir uma cidadania adormecida, podemos assim dizer. Agora, a Escola vê-se incumbida da tarefa de acordar a cidadania adormecida do excluído social, e/ou eliminado social. Resgatá-lo para vida ordeira e coletiva de nossa sociedade. No nosso entender, fato que só poderá ser possível ao lado da justiça, e/ou do poder da Diké. Antes de tudo, trata-se da tarefa igualmente difícil de ...(re) animar o sujeito de direito. Acreditamos não ser tarefa para somente a Escola realizar. Certamente, constituirá tarefa de um consórcio Escola/Justiça/Polícia.
Após a abolição, passou a ser um despossuído. Era aquele que não tinha mais dono, no dizer de Darcy Ribeiro. Ninguém se responsabilizava por ele. Sua passagem para uma condição de excluído social, ou mesmo de eliminado social, provavelmente necessitasse de mínimo esforço. O próprio caráter excludente do capitalismo facilitaria isso. O escravo não era uma mão-de-obra pronta para o trabalho num mundo urbano que exigia técnica, habilidades e conhecimentos Classificavam-na como viciada. O ex-escravo ficou alijado do processo de produção. Não ingressou no interior da sociedade brasileira que o configurava mais nitidamente sem a sua participação direta. Com o tempo, o crescimento de uma nova e engenhosa sociedade pós-abolição foi se desenhando nos grandes centros urbanos do país. A cidade do Rio de Janeiro, especialmente a área de municípios como o de São Gonçalo, foco de nossas atenções, foi uma delas. Para isso, muito colaborou o fato de ter sido capital no Império e na República. Ponto central de poder político e de convergência populacional de várias partes do país.
Principalmente durante a passagem do século XIX para o XX começávamos a ter um quadro capitalista mais definido nos centros urbanos. Contudo, o ex-escravo continuava alijado de qualquer construção de cidadania. Ao nos aproximarmos do que a história registrou como a Era das Catástrofes (1850/1945), período marcado por duas grandes crises do capitalismo e duas grandes guerras mundiais, algo novo se deu. Viraram-nos do avesso! Os interesses do novo paradigma de acumulação de capital, caracterizado pelo monopólio (Capital Monopolista), com empresas cujas concentrações de capital eram verticais em umas conhecidas como Truste, e horizontal em outras conhecidas como Cartéis, ou outros rótulos, impunha ao mundo o império da uma presença violenta ao capitalismo burguês liberal de livre iniciativa. Era uma tipologia de Estado que se apresentava como interventor, autoritário e até ditador em alguns momentos. O cenário internacional logo se agravaria com o fim da Primeira Guerra Mundial. O quadro se agravaria mais com a Segunda crise econômica em 1929 e a consequente Segunda Guerra Mundial. A lembrança aqui desses fatos são para evidenciar que uma grande mudança estava em curso no cenário capitalista mundial. Era a chamada Segunda Revolução Industrial, cuja tecnologia desempregava muitos em toda a Europa. Tornava obsoleta a mão-de-obra de um modelo tecnológico marcado pela rústica existência de mecanismos industriais ultrapassados em indústrias já pouco competitivas nesse momento, obsoletas, fadadas ao desaparecimento. Claro estava também que sua mão-de-obra teria que se ajustar aos novos tempos e exigências. O mundo industrial e capitalista ingressava num novo modelo conhecido como indústria fordista, fundado no modelo de administração Taylorista, onde o trabalhador abandonava a industria maquinofatureira pela manomecânica. Era deixar de ter a máquina como extensão do braço humano para uma condição nova e invertida. O homem agora seria a extensão do braço mecânico (homem/máquina). As escolas formariam destros, pessoas que se adaptariam a um processo mecânico de produção, o maquinismo adquiria requintes novos, modernos. Era a época em que ...Todos os carros eram pretos e todos os gerentes eram cinzas. Mais valia a produtividade, mecânica e reprodutiva da produção que significava a criação. Contudo, o referido curto período de nossa História ficaria marcado filosoficamente como a grande crise do pensamento liberal burguês. Ele seria responsável pelo soterramento de um mundo das certezas, onde a calcularidade, as previsibilidades cartesianas sofreriam um turbilhão de profundas críticas e crises.
No mesmo momento em que o quadro acima se instalava no cenário internacional, o nosso país timidamente ingressava nas práticas capitalistas de produção, praticando um liberalismo manchado de patrimonialismo, pelo fato de na Republica Velha a presença dos agora chamados coronéis lembrar a presença dos velhos senhores remanescentes de antiga aristocracia territorial e escravista, agora como seus herdeiros, os quais continuavam com grande influência política local na gestão do Aparelho Estatal, como sabemos. Eivado de velhos vícios herdados da catequese de um Estado Constitucional Monarquista Centralizador e, como já dissemos, aristocráticos, cujos herdeiros ostentavam um poder que nele alicerçado, tinha sua ação sob a sombra do positivista emblema da república, compondo uma classe política, insistia na sistemática mania de se apoderar do poder, fazendo dele uma extensão de suas propriedades. Concedendo favorecimentos sob o título de uma política de compromissos que acabava sempre alijando aqueles considerados indesejáveis. Essa forma de governar beneficiando os amigo trazia um outro lema oculto: servir a quem lhe servia. Talvez com a novidadeira e surpreendente era da globalização tal prática encontre dificuldades, pois, dificulta o 'diálogo' do já falado por nós aqui e afirmado pela profª. Maria Cortesão portuguesa entre o Localismo global e o Globalismo local. Mas era a fase de um Brasil caracterizado pela política econômica fundada no jeitinho brasileiro de governar. Como sabemos, atendia a interesses de chefes locais, geralmente sem nenhum interesse em provocar radicais mudanças no quadro do mandonismo que possuíam. Não se interessavam em provocar nenhuma mudança interna nos seus Estados, ficando o ex-escravo agora imbricado na parte pobre, já como despossuído, fadado à condição de não-cidadania, sustentada por uma condição de clandestino em seu próprio território. Eram brasileiros sem brasilidade.
7 - Educação e administração no Caos: uma nova leitura do confronto entre a Escola na Favela versus Escola de Favela.
Sabemos que a ciência da administração pode ser definida como a aplicação do método científico e do raciocínio analítico aplicado ao processo de tomada de decisões dos executivos no controle de sistemas. Mais ainda, sabemos que tais sistemas acabam por compreender operações administrativas ou de serviços. Contudo, para que sejam levadas a bom tom, há de se garantir um categórico municiamento informativo das mudanças ocorridas. Seguramente, a Escola hoje no Rio de Janeiro enfrenta uma realidade bastante complexa, múltipla e diferenciada no que concerne aos relacionamentos socioculturais. É exatamente aí que se insere a nossa preocupação central.
No esforço para abordar os problemas gerenciais com objetividade, as nossas leituras pretendem subsidiar, nortear e alicerçar decisões acerca das futuras construções e aplicações de métodos, supostamente mais eficazes, para o enfrentamento dos novos desafios que apresentamos e acreditamos serem fronteiriços, uma vez que observamos já haver, no complexo quadro de relacionamento escola/comunidade de favela, o choque de dois mundos educacionais antagônicos. O melhor conselho é sem dúvida a prudência! O cotidiano socioeducacional fluminense do novo milênio apresenta duas Escolas que habitam o mesmo espaço geográfico no e do interior para a cidade, ou mesmo na periferia de favelas.
Hoje, disputando o jovem educando no urbano, temos uma Escola na Favela, a Escola considerada oficial. E a Escola de Favela, marcada por instrumentos de sedução bastante fortes, que trata da cultura de favela, quase sempre alimentada pelo trabalho no mundo da droga, envolvendo todos os ganhos que a hierarquia administrativa informal dessa poderosa empresa da desordem, da marginalidade ou da não-cidadania e do diferente pode propiciar.
Cremos que a escola oficial está fragilizada. Busca, com seu trabalho, resgatar a dignidade e participação cidadã do pobre que, em sua maioria, vive na extralegalidade de uma economia subcapitalizada da qual retira parte ou quase a totalidade de seu sustento. Sabemos que dele nascerá, provavelmente, o futuro excluído social ou até mesmo o eliminado social. Transformá-lo em um incluído social, pertencente a uma vida plenamente cidadã, frente aos desafios da urbanidade moderna, tem sido a maior pretensão da referida instituição.
Sabemos que essa tarefa implica inexoravelmente na necessidade de reunir e elaborar novas leituras do cotidiano da cidade. Perceber com mais acuidade o desenho de seu todo complexo, o qual esperamos, possam ser usados para a confecção de modelos, sistemas, ou mesmo que subsidiem novas práticas pedagógicas eficientes no resgate da cidadania que parte da população urbana perdeu.
Sabemos que o melhor gerenciamento dessa nova geografia de conflito sociocultural no espaço da educação implica na recomendação de linhas de ação claras, com o fito de implementar e finalmente analisar os efeitos das decisões gerenciais, através de mensuração e feedback, com o propósito de modificar e refinar modelos existentes. Talvez até substituí-los. Contudo, temos razões para crer que a melhoria das futuras tomadas de decisão pelo Estado na competência da educação, principalmente no que tange às micropolíticas públicas em educação no espaço urbano fluminense pereçam. Não podemos nos esquecer que sofremos ainda do problema de sermos uma cidade contemplativa.
Sorry, mas o desempenho futuro do sistema educacional, pelo menos no que concerne ao Rio de Janeiro, carece de ser subsidiado por um conjunto de leituras mais cuidadosas e atualizadas acerca dos novos desenhos de relacionamentos sócioeducacionais no interior social do seu perímetro urbano. O pensamento científico cartesiano já nos parece cansado de alertar que para se fazer uma prognose mais coerente e correta precisamos sempre de melhores diagnoses. E para tanto, a urgência está em ler o novo relacionamento entre Escola na Favela versus Escola de Favela, que implica, por um lado, em o fazer através da análise do discurso das duas, e por outro, da sua gestão e gerência. Avaliar, nas táticas e estratégias de atuação da primeira junto à comunidade e ao educando em potencial, quais os resultados e falhas que mereçam correção; perceber a projeção e o alcance das decisões a serem tomadas, sempre se pautando por uma retroalimentação derivada das referidas leituras.
Nossa imprudência combinada com a preocupação de construir uma cidade-vitrine possibilitou-nos fechar os olhos para o problema e suas origens históricas. Agora faz tempo que se observa quase que passivamente o assustador crescimento de uma Sociedade Paralela (ou o assustador movimento de corpos socioculturais independentes), identificada com a cultura do crime, criminalidade, tanto cultura quanto prática, no urbano na cidade do Rio de Janeiro. Sabemos que sociedades como estas sempre exigiram de nós meticulosas abordagens. A composição da referida sociedade ao longo da História Social Brasileira, marcada pela permanência de um modo-de-produção escravista, perdurou por quatro séculos aproximadamente, garantiu a permanência de o complexo quadro de relacionamentos entre nós!
Hoje, o Rio de Janeiro convive com um tipo especial de crime, de cultura do crime (criminalidade), que se configura em uma tipologia também especial de violência, cuja favela é seu abrigo identitário, verdadeiramente um de seus esconderijos. A favela tornou-se não só a geografia do acolhimento menor, onde se abriga também a Escola de Favela, onde criminosos misturam-se a uma variada gama de não-cidadãos em estado ou processo de exclusão social, pelo fato de terem sido no passado e, de certa forma, continuarem no presente como despossuídos sociais, apesar dos tempos serem outros, e impunemente conseguem formar um verdadeiro, salvo exageros, poder de Império Paralelo do Crime e da criminalidade, talvez por viver na clandestinidade ainda e não lidos com a propriedade que merecem, diante de olhares congelados de impotência. Seguem coabitando conosco o espaço urbano, numa mistura que chamamos aqui de aterrorizante urbano recente.
Não despercebidos pela academia, que parece não valorizá-los como área que mereça sua atenção e que em vários momentos da história social e sociocultural tem-se mostrado autista para os seus movimentos, em uma sociedade incapaz de se apresentar plenamente justa.
Sabemos que a Escola cuida da necessária construção do cidadão e de sua cidadania. Porém, por vezes, acaba como invasora da geografia do poder da sociedade paralela, principalmente nas favelas fluminenses. Sociedade que hoje desafia instituições como a Polícia e, principalmente, a despreparada Escola. Enfim, todas as instituições públicas relacionadas direta ou indiretamente com a formação moral de nosso povo.
Temos assim, claro, que a tarefa de enfrentar as transformações oriundas da pós-modernidade dentro dos novos modelos de gerenciamento da vida pública fluminense não foi nem é fácil. A população usa a violência como escudo/ataque. Na verdade, para ela, acreditamos ser a violência, o ato violento, uma forma de identidade. Os elementos componentes do seu espaço geográfico de ensino na favela tornarem-se o desafio maior do educador conscientemente moderno. Não podemos mais brincar de jogo de poder, já se ultrapassou esse tipo de etapa. Entre nós tamanho problema já é histórico.
Sabemos que a pobreza e o processo de pauperização sofrido pelo nosso povo ao longo da história foi um dos vários elementos responsáveis pelo quadro que hoje tememos. O vadio e a vadiagem, vícios e viciados, pequenos infratores e o tráfico de drogas na favela, dentre outras combinações de crime-negócios, foram combinados e se profissionalizaram. São os verdadeiros responsáveis pelo quadro de entraves ao dialogo tão acalentado entre as referidas Escolas. A cultura que produziram com essas combinações configurou um tipo de Escola de Favela que não deseja a presença externa por razões óbvias.
Assim, após várias políticas públicas, inclusive as que se preocuparam com os métodos e as maneiras das educações implantadas até aqui, fracassaram. Não foram capazes de resgatar essas pessoas ao convívio da ordem. Como então conviver Escola oficial da ordem e população de favela diante de tantos problemas de relacionamento no espaço natural da última? Será mesmo a escola na favela uma rígida fronteira onde o choque desses dois mundos anuncia-se com a total falta de diálogo ou o novo nunca respeitou a diferença? Quais os êxitos alcançados com o trabalho de construção da cidadania feito pela Escola na Favela? As pessoas de espíritos atormentados, marcados por comportamentos defensivos/agressivos, rejeitados por parte da sociedade oficial por razões econômicas, sociais, políticas ou outras que agora desconhecemos, não conseguiram recuperar, ou mesmo construir plenamente, suas cidadanias. Continuam excluídas, quando muito sobrevivendo, como um exército industrial de reserva sob a soberania da miséria? Nem sempre são requeridas pelo capital, por razões que tememos?! O medo que paira na relação entre os dois é, certamente, muito grande.
Eis aí o espaço geográfico das relações que precisávamos. A instituição escolar e o quadro social em que ela se insere hoje devem perceber as dimensões fronteiriças, mesmo que pela simbologia do atrito, dos dois modelos de educação no espaço do urbano fluminense, decodificando seus códigos, imagens e reflexos e, inclusive, avaliando-os urgentemente. Caso haja tempo ainda.
A Escola na favela representou e representa uma experiência audaciosa nos dias de hoje. Verificar os ritmos de uma dessas precarizadas máquinas de educar (Escola Estadual), faz-se mister. A observação de seu maquinismo em toda a sua engenharia de construção e ato de construir cidadãos, avaliando sua eficiência, eficácia e êxitos, revendo seus fracassos, diante dos desafios de uma sociedade complexa, que pulsa, cremos, diferente nessa geografia do híbrido, é fundamental. A quantidade e a qualidade dos conflitos e dificuldades existentes na tarefa de construção do cidadão hoje, também é fundamental para compor a diagnose.
Ainda não se têm notícias de incursões, aprofundamento e detalhamento no novo e particular conjunto de relacionamentos que traduzem a Escola na Favela e a Escola de Favela na história do tempo presente no Brasil. Opostas e inseridas no mesmo contexto socioeducacional urbano da cidade, elas exigem a presença de uma Escola Nova, que parta da constatação e soluções das existências modernas. Que admita a existência de dois mundos sociais do fazer a vida, que esteja disposta a pôr mãos à obra e transformar o excluído social de cidadania negada em um pleno cidadão. Não é tarefa fácil nem tampouco rápida, mas devemos começar. Uma Escola Nova pensada a partir de uma inovadora política educacional, centrada na inclusão de um desconhecido que possui um tipo de destino de desgraça até aqui registrada pela historiografia. Uma Escola Nova pós-crise de percepção, à qual vem nos abalando no tempo presente, que saiba perceber o homem como um todo sob a luz da excelente contribuição de uma visão nova, a holística, antes de tudo. A viabilidade de uma Escola Nova do tipo que defendemos hoje é anseio de grande parte da academia consciente.
Não é despercebido que usamos ferramentas da prática educacional da Escola tradicional em muitos exemplos que hoje são velhos, que não competem nem tampouco desafiam as novidades pós-toyotismo. Elas precisam começar um trabalho transdisciplinar para transformar o que chamamos ainda de célula social, como se tal fosse de incluídos que representam a favela no complexo social urbano. As Micropolíticas Públicas em Educação no Estado do Rio de Janeiro praticadas pelos municípios no espaço urbano, especificamente em área de favela, devem ser pensadas objetivando vencer os desafios e dificuldades encontradas nas realizações do hoje verdadeiro e transcendente trabalho educacional. Obviamente, sem negligenciar os objetivos estabelecidos desde a LDB, EJA e outros.
A Escola atualmente não responde mais aos insistentes clamores da sociedade moderna ou modernosa porque autista, continua como se nada acontecesse ao seu redor. A existência de múltipla e variada composição do coletivo social urbano nas favelas do Rio de Janeiro e municípios do entorno, sofrem com a demora nas soluções. Acabam por encontrar saídas nem sempre melhores. Cremos que o seu crescimento, gerador inevitável de uma tipologia especial de confrontamento, poderá nos levar de forma inexorável a verificar as novas relações de um conflito que está envelhecido, mas insiste em nos incomodar. O urbano fluminense da última vintena presencia talvez uma sinergia social e sociocultural que assusta, a favela é parte integrante de um novo ajuste social e sociocultural.
8 - A desigualdade racial: consequências quantitativas do abandono.
Podemos ver agora que o século XX teve trágicos resultados no campo educacional fluminense. Os avanços, continuidades e descontinuidades provocaram o quadro que descreveremos a seguir, do final do século. Sabemos que o conhecimento cobrado na sociedade atual ultrapassou as grades curriculares tanto quanto fugiam às pretensões de complementaridade dos temas transversais que apostam na compensação dos espaços vazios presentes nos currículos do chamado antigo ensino fundamental e médio de nossa escola.
Quando se trata do ensino superior, a formação exigida é transdisciplinar enquanto sugeria transgredir os próprios limites do saber do educando. Tratava-se de uma superação efetivada municiando-o, capacitando-o de conhecimento para pesquisar, estabelecer relações com o real e operar, assim, transformações. Entretanto, quando se tratava de uma população condenada a viver num tipo moderno de barbárie, podia-se considerar o discurso um pouco exigente. Ora, estávamos nos referindo a pessoas de uma sociedade paralela, ou corpos socioeducacionais da época, que, embora vivendo na cidade, faz parte do seu quantitativo, mas não era notada, computada, atendida, pelo menos, como deveria. Caracterizava-se assim um grande e difícil desafio à realização do que Boaventura de Souza Santos, aproveitando-se do que dizia a professora Cortezão, chamou de localismos globais.
Sabemos que um conhecimento identificado na relação estética e subjetiva compreende por estética a liberdade de ser o que é e transgredir seus limites para o que ainda não é. Assim, ao defrontar-se com a decisão sobre o ato de conhecer- exercício de maturidade que se supõe ocorrer no ensino superior quando o estudante se via diante dos limites de sua formação e do desejo de superação - constatou-se que, infelizmente, ainda não se acordara para o fato de ser o referido ato absolutamente seletivo, propriedade de poucos e pouco popular. A universidade estava distante da comunidade e com a pós-crise do cartesianismo, esse distanciamento aumentou mais ainda. Na prática, fisicamente ela se aproximou paulatinamente das massas, mas, no que se referia a manutenção dos níveis e preservação da qualidade, distanciou-se dos seus princípios. Vulgarizou-se! O século XX foi testemunha de um 3º grau que buscou se engajar vulgarizando-se.
Operou-se o resgate do que ainda não era, mas que estava previsto no projeto, confirmado no esforço acadêmico para o que se queria ser, era a ação do desejo! O que resultou num verdadeiro caos. Somente do governo FHC para cá, se buscou um projeto mais audacioso para sua recuperação, embora correndo sérios riscos que não cabem aqui comentar. Há que se considerar que um curso que prevê a convivência do indivíduo nesta sociedade dinâmica, quantificada, comunicativa, codificada, metafórica, plástica, estética e em transformação constante, tenha um claro objetivo de inseri-lo como um cibercidadão, num mundo globalizado. O exercício de abstração, que é fundamental para o desenvolvimento do pensamento, acaba por fluir com a frequência que se esperaria. Numa educação que visa formações amplas, criativas, críticas e seletivas, a prática da abstração deve ser contemplada nos conteúdos, na sua problematização, deve ser explorada na metodologia de ensino e pesquisa, o que somente hoje, precariamente, se observa. As artes em geral possibilitaram a prática da abstração, na medida em que ampliaram o universo de interpretações. Porém, como ensiná-las num espaço em que a marca maior da convivência é a prática da violência?
A responsabilidade de quem disponibiliza informação educativa de base para o conhecimento amplo e complexo, passa pelo compromisso metodológico, político e social que nem sempre é observado pelo que chamamos de Escolas na Favela. A propaganda das vantagens do computador e da internet, por exemplo, que não considera os limites das classes dependentes econômica e culturalmente, não passa sempre pelo conhecimento devido àqueles que são oriundos de realidades de uma Escolas de Favelas. A população que compõe esse quantitativo de educandos, quando o temos, é geralmente muito despreparada e sofre com a mais absoluta ignorância dos que ensinam. Não estranhamos que o maior número dos educandos dessa camada tenha origem na pretitude oriunda do escravismo. Tudo isso está na raiz de nossa formação, faz parte do nosso patrimônio, de nossa herança histórico-cultural. O quadro populacional que observamos no final do século XXem sala de aula demonstra bem isso.
Os avanços alcançados nos níveis de educação e rendimento não alteraram significativamente o quadro de desigualdades sóciorraciais. Embora a taxa de analfabetismo tenha caído para todos os corpos, ainda é mais elevado, em 1999, para pretos e pardos (20%) do que para brancos (8,3%). O aumento do número de anos de estudo foi generalizado. Assim, a população como um todo registrava um ano a mais de estudo de 1992 a 1999. Apesar disso, na comparação por cor ou raça, notávamos uma diferença de dois anos de estudo, em média, separando pretos (4,5 anos) e pardos (4,6) de brancos (6,7). Uma vez que esses patamares tinham-se mantido historicamente inferiores para pretos e pardos, o crescimento de um ano de estudo no total revelava-se mais significativo para esses grupos. No Nordeste, por exemplo, esse ganho correspondeu a um aumento de quase 50% nos anos médios de estudo de pretos e de mais de 25% no de pardos. Entre 1992 e 1999, o aumento de um ano de estudo correspondeu a uma elevação de um, dois salários no rendimento de brancos e de meio salário no rendimento de pretos e pardos.
Na década houve uma queda generalizada no número de famílias vivendo com até meio salário mínimo per capita, mas, em 1999, ainda se encontram nessa situação 26,2% das famílias pretas e 30,4% das pardas, para 12,7% das brancas o que denuncia que o quadro de violência no Rio de Janeiro não se deve somente a pobreza. Parece-nos haver uma certa tendência ao abandono de pessoas que continuaram a sofrer com o novo perfil da construção do Estado de modelo republicano. Alguns contingentes ficaram esquecidos. Também a posição na ocupação mantém-se inalterada na década estudada aqui, com mais pretos e pardos (14,6% e 8,4%), no emprego doméstico, que brancos (6,1%) e, ao contrário, mais brancos (5,7%) entre os empregadores que pretos e pardos (1,1% e 2,1%). População residente por grandes regiões, segundo a situação do domicílio, o sexo e a cor ou raça entre 1999 e 1998 do século XX (IBGE).
A proposta que podemos construir diante do quadro populacional da cidade do Rio de Janeiro a luz da questão central que observamos no "Escola na Favela", não pode prescindir da ideia de um desenvolvimento integrador. Portanto, integrar o pólo marginal, excluído sociocultural, a uma economia e sociedade inserida num mercado globa ou, como querem muitos, globalizada e industrializada, torna-se um grande desafio. Corremos o risco de criarmos um mito. O mito da sociedade industrial a qual representaria desenvolvimento para todos, mas inviabilizado, pois muitos que habitam a geografia da sociedade paralela encontram-se impedidos na cultura cibernética, totalmente despreparados. São pessoas às quais a Escola na Favela não conseguiu atingir. Daí que programas de industrialização tanto na América Latina e, sobretudo, no Brasil, têm insistentemente fracassado (principalmente após 1956, no governo J.K., quando se deu a entrada maciça do capital estrangeiro ).
Qualquer análise desenvolvimentista não será capaz de evidenciar que entre o tradicional e o moderno não há somente uma questão de desajustamento entre partes formadoras da relação assistência entre governo, governabilidade e culturas, mas sim uma dinâmica que só pode ser compreendida à luz dos sistemas de dominações múltiplas imperante na sociedade como um todo complexo, que carece de definição urgente. Aí a noção de dualidade que ideologizou a teoria econômica acabou se transformando num olhar muito pobre para conquistar sua definição. Mesmo oriunda de um exaustivo esgotamento dos debates epistemológicos com o fito de estabelecer clareza e percepção segura, a solução parece-nos estar ainda muito distante. Segundo Kowarick, é a própria ideia de dualidade que encobria e mascarava o problema; portanto, ideologiza a explicação. O que começava timidamente a explicar, portanto, apesar da pobreza e o tradicionalismo do pólo marginal, onde habitava a sociedade paralela, era estar todo o quadro de conflito que tratamos aqui ligado direta ou indiretamente a um processo historicamente vil de acumulação de riquezas no Brasil.
Ao falarem de exploração, os teóricos desenvolvimentistas na economia faziam-no em nível de circulação e não em nível de acumulação de riquezas. Caso apelássemos para os teóricos dependentistas, não abancaríamos muito, pois a teoria subdesenvolvimentista tinha como resultado da crítica aos seus pressupostos básicos a origem da teoria da dependência. Uma é filha da outra! Fica muito pobre, repetimos, vulgar demais, atribuir ao quadro de choque social que vivenciamos até hoje na cidade do Rio de Janeiro um mero quadro de subdesenvolvimento! Certamente as razões são outras.
Ora, os autores da dependência defendiam que o desenvolvimento era um processo global e era, sobretudo, necessário. Afirmam que a sua abordagem e análise seria integrada e levada em consideração à reciprocidade entre os níveis econômico, político e social. No presente trabalho, acabamos de afirmar a existência de algo que não tem um eficiente controle. Não se sabe o tamanho, o poder, enfim, porque não se mediu nem tampouco se avaliou sequer sua capacidade de influir.
Nesse particular, a ideia de subdesenvolvimento passa a ser realização histórica de tipo macroestrutural. Não é mais admissível perceber o capitalismo como um mero sistema de modo de produção, ele é sistemantista, e como tal deve ser tratado. Mas sim como uma complexa civilização. É resultante de um modo peculiar de inserção no mundo da produção no planeta que caminha inexoravelmente para completar seu ciclo de globalização como um trator que não percebe as pedras do caminho. Esmaga todas elas, como se fizessem parte de sua tarefa insensível de compactar. Contudo, está num patamar avassalador de gigantismo do propalado movimento, a sua própria cicuta: o que ele não enxerga, ou não quer enxergar. Ele se nos apresenta uma certeza mórbida. Nas aparências, insolúveis, enquanto problema pela sua complexidade, porém insensivelmente desprezada como um Davi que ainda não ameaçou Golias.
A Divisão Internacional do Trabalho explicou as situações de subdesenvolvimento e desenvolvimento até o momento em que surgiram as economias subcapitalizadas, acompanhada da figura do extralegal, num mundo em processo de globalização. Daí por diante tudo passou a sofrer transformações profundas. As relações centro-periferia, que eram entendidas como complementares, agora foram atropeladas por realidades econômico-populacionais diferentes no que se refere à educação e à cultura, marcadas pela presença de um urbano complexo, oriundo de uma cidade transformada e caracterizada como macrocéfala desde os anos 80, modelo que se multiplica por todas as capitais do Brasil litorâneo, principalmente. Cada uma com formações sociais complexas e distintas que carecem realmente de novas leituras com o fito de entender suas peculiaridades. Guardando-se as devidas proporções, principalmente e especialmente, o Rio de Janeiro é uma delas onde a violência impera como marca maior do cotidiano.
Não caberia explicar à sociedade paralela pela teoria desenvolvimentista. A teoria da dependência não seria capaz de explicar esse fenômeno hoje. André G. Frank liderou um trabalho na segunda metade do século XX, aproximadamente nos anos 70, que salientou os aspectos externos da dependência e que, no máximo, poderia explicar um certo subdesenvolvimento, caso pudéssemos espelhar como medida o processo de desenvolvimento dos países chamados centrais, de onde emanaria o desenvolvimento do subdesenvolvimento, refletido nos países periféricos. Claro estaria então que um seria desdobramento benéfico ou maléfico do outro. Porém, não é assim que isso se dá. A sociedade paralela que perigosamente pode e até já configura sinais de globalização, tem identidade própria, não é precariamente mimética como foi, inclusive como desejam ainda alguns dos teóricos da dependência econômica. Talvez seja a face da dependência imperfeita como já fez alusão o economista Francisco de Oliveira.
A partir deste enfoque, a dinâmica do desenvolvimento do capitalismo internacional que torna os pobres cada vez mais pobres não tenha a pobreza como verdadeiro obstáculo a se romper simplesmente. Não se deram conta ainda que a pobreza seja apenas a fenda, a ferida aberta que sangra sem solução imediata e talvez de cura indesejada no corpo doente. Não perceberam que por ela muitos outros desafios poderão surgir, muitos problemas se configurarão. Não perceberam que o fim da pobreza não significa o fim do jogo capitalista que nos assusta, mas sim a sua continuação em níveis mais humanos. Pobreza dá prejuízo! A educação aí tem um decisivo papel a desempenhar. Sem a sua presença, a peça como um todo não poderá ser encenada de maneira coerente, nem tampouco simpática e satisfatória. Sua responsabilidade, certamente, será atender aos novos desafios do globalismos locais e aos localismos globais sugeridos pelo professor lusitano Boaventura de Souza Santos.
Há que se incentivar a produção mais do que a reprodução. A contradição básica capital versus trabalho não pode ser secundária, principalmente quando se pensa ao nível de nação globalizada, não negar as relações internas ao nível de relações de produção é fundamental.
Cardoso e Faletto apresentam um enfoque alternativo da economia de dependência baseada em dois princípios metodológicos precisos. O primeiro afirma que na periferia do sistema capitalista internacional deve-se levar em conta a dinâmica das relações entre as classes no nível interno das nações. O segundo afirma que os condicionamentos externos, ou seja, os modos de produção capitalista internacional, reaparecem tanto na articulação das economias periféricas como nas centrais, quanto da articulação das classes no interior das sociedades dependentes. Embora se possa encontrar uma coerência na forma de apresentar a diagnose do problema, acreditamos que nenhum dos dois teria condição de tratar do fenômeno aqui observado de maneira central.
Tratamos de sociedades paralelas que se organizam nos espaços onde há a ausência do poder do Estado, onde o Estado é pensado de maneira diferente, e também respeitado diferentemente. Embora coabitando o mesmo espaço geográfico, o cordão umbilical que poderia explicar alguma continuidade rompeu-se sem que se percebesse. Há muito que não se educam pela mesma escola. Estão, por conseguinte, longe de uma influência que poderia nortear nossa observação organizada à luz dos paradigmas que construímos no mundo da relação Estado-Nação cartista, que conhecemos no mundo da contemporaneidade. Seguem outro estatuto, possuem outro tipo de prática cidadã.
A partir daí, passa-se a recusar toda distinção metafísica entre fatores externos e internos por ser um mundo diferente e monolítico que precisa ser decodificado para melhor combater seus malefícios, percebidos na relação entre a Escola na Favela versus Escola de Favela. As mudanças ocorridas no centro que afetariam a periferia automaticamente não acontecem nessa particular sociedade. Elas expressam interesses locais distintos e estranhos. Classes que controlam recursos econômicos oriundos de suas articulações econômicas, históricas na cultura dos excluídos sociais da cidade. O processo de acumulação do capital nas referidas áreas é peculiar e relativamente facilitado. A análise de como se dá a relação entre esta etapa atual do capitalismo com a força de trabalho, ou seja, como acontece o processo de acumulação nas regiões periféricas, consiste na preocupação básica desse trabalho.
Nessas regiões, o capitalismo processa uma acumulação que se dá a partir de um modo diferente de inserção da população numa estrutura produtiva. Esta característica das forças produtivas estabelece-se também com um grau de desigualdade combinado e consistente na articulação interna correspondente a situações históricas distintas do capitalismo formal. Tem-se claro que sua produção econômica controlada é pela prática do subcapitalismo, praticada pelas forças produtivas, sempre na informalidade, que praticam constituídos de modalidade hegemônica, cuja característica é a aplicação, em alguns casos, de tecnologia sofisticada numa condição de extralegalidade, capazes de promover altos índices de produtividade, com intensa exploração de uma mão-de-obra recrutada na imensa massa de desempregados da vida urbana. E como nossa economia, está caracterizada como uma verdadeira fábrica de desempregados. O famoso exército de reserva necessário ao então sistema capitalista produz novidades inesperadas: o mundo violento da sociedade paralela.
Assistir a deterioração da economia capitalista não constitui um amplo e deprimido pólo marginal, mas sim novas sociedades. Ela constitui aqui no refugio da mão-de-obra não absorvida pela produção industrial por não ser funcional, por estar obsoleta ou em processo de obsolescência e, portanto, a ela desnecessária.
A população assim expelida, ou excluída, comporia-se em um crível exército de reserva com suas funções clássicas, porém, ledo engano, não é assim que se dá! Não há integração ao lógico sistema simplesmente, mas ocorre uma das formações capitalistas mais inesperada possível. A da economia subcapitalizada que não é percebida pelo Estado, única e exclusivamente pela sua ausência. Não há uma mão-de-obra marginal, nem o que acontece é resultado das contradições internas do sistema, geradas a partir de relações sociais, políticas e econômicas no interior das sociedades somente. Há uma formação social independente que não respeita nem admite o Estado formal, o Estado legalista que conhecemos. Identitária culturalmente com o que produz no seu interior acaba por se distanciar cada vez mais, tornando-se estranha e desconhecida. Desta forma, a cumulação do capital não se dá exclusivamente através da extração da mais-valia, via assalariamento, mas através de uma forma de exploração do trabalho diferente. A exploração se dá pela entrega do trabalho, uma vez que o desempregado proporciona o material humano sempre disponível para a exploração.
Marx afirmava que a acumulação capitalista produz constantemente uma população trabalhadora para as necessidades do capital, referindo-se a população excessiva, sobrante, ou excedente. Afirmava também que quanto mais acelerada fosse a acumulação, maior o exército de reserva que pressiona o trabalhador na ativa, a trabalhar mais e a se submeter às imposições do capital. É verdadeiro, porém, caso observássemos a assertiva marxista nas economias subcapitalizadas, onde o trabalhador é um extralegal, participante de uma sociedade diferente, quanto e qual tipo novo poderíamos vislumbrar? Será que poderíamos chamá-los de trabalhadores? Será que poderíamos considerar verdadeiro o fato da existência de apenas um setor da classe trabalhadora forçada ao desemprego pela exceção de trabalho, imposto a outra parte que se converteria em fonte de riqueza para o capitalista individual nas economias do tipo citado? Acaso proporcionaria, também, maior acumulação?
Uma coisa é certamente desafiadora nisso tudo, o pauperismo que faz parte das despesas extras do sistema capitalista, pagas através da extração da mais-valia, constitui a categoria das pessoas capacitadas para o trabalho, porém excluídas, órfãos e filhos de pobres. Geralmente são pessoas que não são absorvidas pelo exército ativo nas épocas de expansão, tornando-se degredados, despojados e incapacitados para os trabalhos, habitantes do mundo da exclusão social. Como diz Michel Maffesoli:
...Quando o universo desobedece suas próprias leis isso é irônico ... o objeto é apenas aquilo que escapa ao sujeito ... o objeto já passou para além da realidade... Se olharmos bem a essência, vamos ver a constelação dos segredos (como diz Heidegger) ... a tecnologia contribui para revelação do segredo ... deve-se pensar o horizonte da técnica... A arte da desaparição ... não podemos chegar a verdade se não acelerar os processos... A técnica é a realização mais absoluta da metafísica (Heidegger)... quanto mais o perigo cresce mais cresce a solução ... a reversibilidade é destrutiva ... a pós-modernidade é um espaço em que tudo está no seu extremo ... trata-se do objeto perdido escesso de informação ... precisamente nesse excesso a tradição é transparição ... há uma ambivalência ... na crítica há ainda uma opção moral ... Nós estamos condicionados a cena de nossa desaparição ... a reversibilidade poética ... ilusão dos sentidos ... ilusão radical está na separação irremediável ... verdade absoluta é o outro nome da morte ...
Ensina o autor a "acabar com o traço da ilusão ... o conhecimento tem origem na quebra da relação de causa e efeito ...", e aponta para o desaparecimento do objeto:
... é uma espécie de vingança do objeto descoberto ... desestabelecimento do sistema não é mais uma revolução ... os sistemas quanto mais se aproximam da perfeição mais eles chegam ao seu fim...
Assim procede hoje a ciência. Contudo, o surpreendente é que nem todos apenas sobrevivem. Acabam mesmo ostentando uma vida às vezes até de opulência na manipulação de um capital oriundo de atividades não contabilizadas pelo Estado como, por exemplo, a venda de drogas, a camelotagem, e outros. Vivem e se configuram numa sociedade do diferente, constroem culturas que os identificam. Introjetam-se com grande habilidade e sedução na sociedade cidadã, corrompendo-a. Definitivamente, não estamos falando de capital sobrante, ou de qualquer outra denominação economicista que se deseje.
Aqui se localiza o "mendigo", um dos personagens que no passado tinha origem na expulsão das zonas rurais, em sua maioria, como consequência da expansão capitalista no campo. Hoje tem várias razões para sua existência.
Há uma grande quantidade de mão-de-obra liberada que passa a existir na cidade na condição de ofertantes de força de trabalho, criando-se assim, consequentemente, a possibilidade de ser um aproveitamento em condições vantajosas para os detentores dos meios de produção. Afinal, esta possibilidade de exploração invisível aos olhos do Estado sempre se concretiza na exploração intermitente do trabalhador desempregado, chefe de família, filhos do silêncio institucional, numa exploração do trabalho de forma vil e maléfica da sociedade. Trata-se de indivíduos duplamente comprometidos. Por um lado, com o vício, a dependência química; por outro, com o poder do dinheiro ilegal, paralelo, oriundo de uma economia subcapitalizada.
Conclusão
Para concluir quero afirmar que seguramente não é a Escola com o modelo que temos hoje que deve desempenhar a tarefa de resgatar com seu trabalho os excluídos sociais. Nem tampouco podemos nos iludir, acreditando em correntes de pensamento, ao nosso ver irresponsáveis, embora críveis, apoiadas erroneamente numa autopoyese, que vê o Direito e por sua vez o Estado de Direito movendo-se acima dos mortais, acima de tudo e de todos. Ou ainda, mecanicamente, através do que entendem alguns, ser o braço escola de plantão (authousserianismo) responsável por executar tal tarefa. Ela é bem mais complexa, duradoura e árdua. Antes de tudo, exige percepção e comportamento resultantes da transdisciplinariedade.
Primeiro, os governantes devem resgatar o Estado como presença absoluta na prática de governar, ou seja, executar na sua plenitude o que se planeja, com sapiência, eficiência, pautado numa estratégia e num comportamento coerentemente marcado pelo equilíbrio e equanimidade na distribuição dos benefícios e responsabilidades. Não pode e nem deve ser apenas pensado como algo mecânico que, por isso mesmo, somente deve atuar mecanicamente. Ele é público e como tal deve atender ao público em geral. Não se pode esquecer que embora seja ele o somatório da sociedade politicamente organizada mais a sociedade civil comum, que inclui aqueles que tratamos aqui, tem que considerar com seriedade a geografia da exclusão social. Não podemos mais tolerar conformismo diante de pensamentos do tipo a lei é boa; pena que não é aplicada ou ainda aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei, comumente percebido no folclórico cotidiano político de nosso país. O Estado é, ao mesmo tempo, um produto e um produtor da divisão social do trabalho ou, de forma mais geral, da sociedade civil, sua genitora.
Não haverá combate eficiente à sociedade paralela sem plena presença do Estado fazendo aquilo para o qual foi pensado e feito na democracia liberal: governar para todos, por todos buscando o bem comum. Dizendo-se presente a todas as solicitações, até para responder que a solução delas demorará se todos não se unirem.
Em que pese o fato da governança ser abrigo de comportamentos mecânicos e estar no campo do executivo, o Estado e os poderes constituídos devem urgentemente abrir espaços para que se pense e se construa uma nova Escola de Inclusão. Uma Escola que não seja uma mera invasora. Uma Escola que não se preocupe em acabar como refém dos perigos fronteiriços de uma vida de conflitos culturais entre dois mundos da educação.
Por tudo isso, enfim, o nosso convite aqui é para a construção de uma instituição escolar capaz de resolver o maior problema do choque que tratamos, verificando a relação entre Escola na Favela versus Escola de Favela: o desencontro e, por isso mesmo, o desserviço. Sem medo, empenhada numa tarefa-resgate do indivíduo pelo processo de reanimar o sujeito cidadão. Aquele cuja cidadania foi adormecida, porque negada por quatro séculos aproximadamente. O professor pode plenamente ser o executor disso, o profissional educador é arquiteto de identidades antes de tudo!
Na perspectiva de que as instâncias culturais ensinam tanto quanto os sistemas escolares e que nelas atuam pessoas criando imagem, vendendo uma ideia, torna-se legítimo estender o termo educador para tais horizontes.
Todo educador é um ser político dotado de competências e domínios que o identificam como artista em sua essência, uma vez que usa e desenvolve a sensibilidade ao elaborar metodologias capazes de libertar desenho e projeto, autor e obra. É deste profissional de educação que falamos. Um ser sensível, quer no trato com a dura e concreta matemática, quer nas elaborações artísticas disciplinadas no currículo escolar, nas instâncias culturais e seus veículos, na programação de tevê, teatro, cinema, peças publicitárias, textos literários, manchetes e outdoors, artes visuais em geral, campanhas de saúde e prevenção etc., quer participante dos movimentos sociais, lideranças e organizações.
Uma educação que requer capacidade para ultrapassar as fronteiras do preestabelecido, negar o gerenciamento e administração da personalidade em função de nichos do mercado, inaugurar espaços democráticos e constituintes da identidade natural. Capaz de rebelar-se contra o instituído como caminho sem volta ou indiscutível ao se falar da sociedade e do desenvolvimento capitalista.
Criar além do criado, num gesto rebelde e exigente da competência não reconhecida pelo mercado de ideias.
Publicado em 5 de junho de 2007
Publicado em 05 de junho de 2007
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