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Mamãe literatura

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Grandes crises começam com rupturas profundas no tecido de nossas crenças particulares. Imagine se um dia alguém lhe disser que você não é filho de quem pensa que é. Definitivamente essa não é uma informação trivial. Dizer: “olha, seu carro está com o pneu furado, um abraço”, não é a mesma coisa de: “olha, você é filho do dono da padaria, um abraço”. Saber a própria origem é algo que ajuda a definir nossa identidade. Há um brocado jurídico que diz: “a maternidade é um fato, mas a paternidade é uma questão de profunda fé”.

Infelizmente essa não é também uma verdade pacífica no campo do saber filosófico. A rigor, não se tem muita certeza de quem seria nem o pai (se o oriente ou o ocidente), nem a mãe (se a matemática ou a literatura) da filosofia. Isso porque há uma ideia derivada de uma curiosa teoria, chamada de Lei dos três estágios, explorada pelo francês Auguste Comte no século XIX, mas já desenvolvida por Turgot em 1750, que afirmava possuir o conhecimento humano três etapas de desenvolvimento. O estágio religioso (mitológico), o filosófico (metafísico) e o científico. Por trás dessa ideia, além da crença de que o conhecimento científico seria a expressão última da autoconsciência da humanidade, a dupla Turgot-Comte legou-nos a ideia de que a Filosofia teria surgido a partir de uma ruptura inicial com a mitologia.

Esse tipo de pensamento acabou por se tornar mais um dos “dogmas de livros didáticos de ensino médio” e tem tudo para se tornar uma bela questão de vestibular no dia que as universidades resolverem criar uma prova de múltipla escolha com questões filosóficas. A partir dessa angulação, a filosofia prepara caminho para a ciência, instigando uma postura investigativa e autônoma diante de crenças e preconceitos de cunho religioso, poético e mitológico; ainda que sem um método eficaz e sem nada a oferecer (em termos de tecnologia) que justifique pragmaticamente as verbas para pesquisa nas universidades, a filosofia antecipa a ciência. Nesse sentido, a mãe da filosofia só poderia mesmo ser a matemática que, antes dos primeiros filósofos pisarem nas Cidades Estado da costa da Turquia, vindos não sei de onde, já era largamente utilizada, quebrando o galho de muitos arquitetos, engenheiros e agrônomos mundo afora. A ideia é que os filósofos seriam então inimigos dos poetas e que buscavam produzir uma espécie de “matemática com palavras”. Um mecanismo de argumentação e de investigação da natureza que pudesse oferecer um conhecimento livre de devaneios imaginativos, baseado numa estrutura lógica de argumentação.

A dupla de ataque do positivismo Turgot-Comte, jogando pelas laterais, ou tabelando na entrada da área, acabou por chutar forte contra as tendências orientalistas e místicas da filosofia. Nossa dama problemática seria então uma antecipação da ciência, filha da matemática, da engenharia e da agronomia, que tinha como principal objetivo romper com uma visão religiosa e mitológica de mundo e como principal defeito a ausência de um método seguro e objetivo de investigação, só desenvolvido por Galileu Galilei alguns séculos depois.

A questão é que, debaixo da trave do time inimigo, Turgot e Comte encontram um goleiro da categoria de um Gordon Bamks. Friedrich Nietzsche, também no século XIX, desconsiderou a interpretação matematizante e cientificista dos positivistas, levantando a ideia de que a filosofia era, na verdade, uma forma de literatura, um tipo de escritura, de mitologia branca, como iria descrever um século depois o filósofo judeu Francês Jaques Derrida. A partir daí, o que contava não era o conhecimento intelectual, teórico, sobre o mundo. Para Nietzsche, o que importa, na porcaria dessa vida, é a vida em si e tudo de belo e terrível que pode emergir da vida. Ora, se a filosofia era um gênero literário, um artefato estético, e não uma antecipação do conhecimento científico, então ela não havia rompido com a mitologia. Ela deveria, sim, ter surgido a partir da mitologia. Deveria ser uma filha da poesia, uma forma derivada do verbo dos poetas, com sua abrangência, sua liberdade, seu impacto auditivo e sua força estética. Como uma bela disciplina que se situa na zona de fronteira entre mundos diversos, a filosofia permanece assim, indefinida, com suas nebulosas origens e suas inquietantes indefinições

Publicado em 05/06/07

Publicado em 05 de junho de 2007

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