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Saindo de casa
Professor Souza
Diário de um professor
Sempre acordo dez minutos antes do despertador, geralmente às quatro horas e cinquenta minutos da madrugada. Não levanto imediatamente. Fico olhando os ponteiros do relógio irem se aproximando do horário programado. Aproveito o tempo para repassar mentalmente o meu dia. Penso em Andi, um aluno que entrou em um processo de autodestruição que temo não conseguir interromper. Penso que serão quase oito horas em salas de aula. Confesso que muitas vezes a perspectiva causa-me um princípio de exasperação. Sei que terei de enfrentar uma série de problemas que fogem completamente ao meu planejamento diário – por mais que eu lute contra o improviso, lecionar numa escola pública de periferia requer uma constante revisão de metas. Planejava passar o filme Cruzada, de Ridley Scott, para a turma 601.
Foi assim que começou minha semana. Eu olhando fixamente o relógio e pensando se teria condições de utilizar o vídeo cassete da escola, que, com uma regularidade além da necessária, quebrava sempre na hora do Play.
Traçava o plano B: se o aparelho não funcionasse, teria que retornar ao currículo sozinho. Voltar até a Idade Média como um cavaleiro retorna à princesa sem as provas de amor. Esquecer as distrações que a tecnologia oferece e utilizar minha voz, apagador e giz – o que, provavelmente, desagradaria profundamente à turma. Eles entenderiam meu lado? Enfrentariam noventa minutos de feudos, vassalos, rainhas, reis, cantigas de amigo, Concílios, Cruzadas somente com o poder de sugestão de minha palavra? Detesto dar aulas voltado para o quadro negro, “cuspindo giz”, como meus colegas dizem. Sinto-me um padre castiço, daqueles que rezavam missa em latim de costas para os fiéis. Quero que meus alunos se apaixonem pela História. Mas às vezes, pela grande inquietação do ambiente, preciso forçá-los de alguma forma a assimilar a matéria. Mesmo que seja copiando sem parar a lição do dia em seus cadernos de arame.
Quatro horas e cinquenta e nove da manhã. A coisa que mais me irrita é barulho de despertador. Não sei porque comprei um. Tenho um relógio interno muito pontual, que não me deixa ouvir que tipo de som vai sair dali na hora H: se é grave, agudo; se uma música da Ivete Sangalo irromperá no ambiente, com naipes histéricos de metais. Nunca precisei chegar a este ponto. Acordo dez minutos antes que o aparelho possa tocar e me pegar desprevenido. Quando os ponteiros se aproximam das cinco horas, desligo-o e me sento na cama.
Estico o corpo. Acordo cedo para poder aproveitar ao máximo o meu tempo preparando-me física e espiritualmente. Levo mais ou menos uma hora para chegar ao trabalho, o que me permite sair de casa quarenta minutos depois de acordar. No tempo curto faço alguns exercícios de Yoga, a minha higiene pessoal e um desjejum frugal, geralmente um iogurte de frutas ou algo light. Coloco o material que separei no dia anterior dentro de minha mochila – alguns livros, anotações, filmes etc. –, rego minha samambaia Gabriela, deixo uma folhinha de alface para meu jabuti Napoleão e, enfim, parto em direção ao Município de Bacanaço.
Há mais de dez anos sou professor de história concursado, com duas matrículas cumpridas num único colégio, o João Antônio. Minha vida simples dispensaria outros compromissos de trabalho – moro sozinho num quarto e sala do bairro da Glória –, mas sempre busquei engordar o orçamento na lida em instituições particulares. Atualmente dou aulas também no Educandário Monte Alverne, escola católica administrada por franciscanos, na zona sul carioca. Terças e quintas desdobro-me para sair de Bacanaço às 12 horas e chegar no antigo mosteiro às 14 h.
No ponto de ônibus, geralmente espero uns cinco a dez minutos até que surja o circular com destino à Central do Brasil. O trânsito no meio da cidade às vezes me causa palpitações. Minha mania de estar sempre dez minutos à frente do horário previsto não combina com engarrafamento. Mas assim que o ônibus chega na Leopoldina, fico mais aliviado. Meus alunos não vão ficar esperando. Dez para as sete estarei em Bacanaço. Retiro os fones da parte posterior de minha mochila e os coloco no ouvido. Os trabalhadores chegam em vagões lotados, mas são poucos os que partem para a zona norte àquela hora da manhã. Não encontro dificuldade em encontrar um banco vazio. Ligo o discman assim que sinto a partida. A paisagem do Rio de Janeiro fica ainda mais grandiosa e linda com a música de Carlos Gomes ao fundo!
Publicado em 19 de junho de 2007.
Publicado em 19 de junho de 2007
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