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Preparem a pólvora!
Professor Souza
Diário de um professor
Nos trinta minutos que o trem leva para chegar até Bacanaço, fico geralmente absorto, entregue ao embalo do vagão. Após passar a Estação Primeira de Mangueira, o trem eleva-se por um instante sobre os barracos, deslizando na direção das montanhas molhadas ainda pelo sereno. As rochas lisas e suadas rasgam o gramado como corcovas de baleia rasgariam o espelho d’água, iluminadas pela luz do outono. A zona norte vai surgindo em meio a vapores de sonho e nostalgia.
Se não fosse este clima onírico, começaria meu diário semanal com um fato que vem me preocupando demais desde o início deste ano: a situação de Andi, que há uma semana não comparece às aulas. Mas hoje vou fugir um pouco de minhas inquietações profissionais e apresentar uma figura inspiradora, alguém que sempre resgato da memória quando a responsabilidade do magistério começa a pesar sobre mim: Bernardo Tripolli.
Foi lá atrás, em 1983. Antes de sofrer o impacto de sua presença forte e magnética, rumores em torno de sua pessoa já estimulavam minha imaginação infantil – tinha apenas onze anos de idade na época – levando-a até uma ilha proibida chamada Cuba. Vivíamos a abertura política e diante da fachada do Liceu amigos e ex-alunos estendiam faixas de boas vindas ao mais novo anistiado: “Bem vindo velho Tripa”.
Tripolli, há quatorze anos exilado no país de Fidel, retornava à escola de onde fora retirado a força pelos militares, em 1969. Chegou a ser preso, mas conseguiu fugir do Brasil disfarçado de capuchinho. Sua fama de ateu conjugada ao hábito monástico gerou as mais engraçadas anedotas. Diziam que durante a travessia oceânica inventou uma sobremesa – o “Monte Sinai” –, espécie de pavê feito com hóstias (parte de seu disfarce), licor de jenipapo e sorvete de creme.
Durante todo este tempo, sua memória era divulgada à boca pequena nos vãos das escadas, entre curtos e rápidos goles de café na sala dos professores. Tudo indicava que esta sufocação explodiria no momento em que ele pusesse os pés no pátio, acendesse seu inseparável charuto e dissesse: “preparem a pólvora!”.
Lembro-me que, apesar de minha curiosidade, não pude ficar para assistir o tão aguardado encontro. Anastázio, o professor de moral e cívica, anticomunista roxo e inimigo pessoal de Tripolli, não liberou a turma para a festa de recepção. Entretanto, antes que pudesse completar sua aula sobre as origens do Hino da Bandeira, a alegria explodiu lá embaixo, no pátio. A maioria dos alunos – inclusive eu – levantou das carteiras e se dirigiu até a janela para ver Bernardo Tripolli sendo abraçado, recebendo flores e carregado como um troféu até a secretaria do Liceu.
Demoraria algum tempo para que frequentasse suas inesquecíveis aulas de História do Brasil. Até que chegasse ao primeiro ano do então segundo grau – ele não dava aula para o ginásio –, conviveria somente com sua lenda. Via-o frequentemente no recreio ou na hora da saída, cercado por alunos e admiradores. Sonhava um dia pertencer ao grupo, iniciar-me nos segredos daquele para quem a história tinha de ser, antes de tudo, vivida.
A chance finalmente surgiu, em fevereiro de 1998. Nesta época, Bernardo Tripolli deveria ter quase setenta anos de idade. Negava-se a se aposentar. Possuía uma enorme barba branca que ia amarelecendo na medida em que se aproximava dos lábios, como se estivesse chamuscada por suas palavras explosivas. Em torno dos olhos, uma negra e espessa sobrancelha refletia a potência e juventude de suas ideias. Entrou em sala bruscamente, emanando um forte cheiro de tabaco. Introduzia-se sempre através do bordão “preparem a pólvora!”, equivalente a “preparem o cérebro!”, pois, segundo ele, a matéria cinzenta era um comburente poderoso. Começou, então, já na primeira aula, a destruir toda a construção em que se apoiava o meu saber sobre a História.
A edificação, entretanto, ruiria definitivamente somente alguns meses depois. Esperaria a ocasião da entrega de um trabalho de casa cujo tema, me lembro bem até hoje, residia numa curta e violenta palavra: colonização. Esforcei-me ao máximo para impressioná-lo com meus conhecimentos sobre o assunto. Chegando em casa, redigi um abrangente tratado colonial, auxiliado por uma pilha de enciclopédias e biografias, pois meu pai vendia livros e muitos acabavam nas estantes de casa.
Entreguei a dissertação e esperei febrilmente o dia em que retornaria a mim, devidamente anotada por Tripolli. Esperava, no mínimo, um nove e meio. Dez páginas épicas, com caravelas e monoculturas de açúcar não impediram que sentisse o amargor daquela triste aventura intelectual. Um medíocre seis e meio, legitimado pela rubrica barroca de Tripolli, atestou o meu fracasso.
Aquilo foi um baque para mim. Fui em direção a minha carteira olhando o triste resultado sem acreditar. Via tudo embaçado pelas lágrimas. Nunca pensei que o julgamento de alguém calaria tão fundo em meu peito. Quando o sinal tocou, Bernardo Tripolli impediu que saísse para o recreio. Chegou-se até minha carteira e colocou a mão em meu ombro – meus olhos ainda estavam rasos d’água. Então, disse para mim que a História era bem mais que um amontoado de nomes e datas. As transformações só fariam sentido se fossem buscadas no homem, em sua natureza inconstante, em suas atitudes para com os semelhantes e para com o seu meio. Deixou sobre a minha mesa um presente, o livro As veias abertas da América Latina.
Bom, não será inútil dizer que aquele livro mexeu profundamente comigo. O que desejaria mais um adolescente que um punhado de palavras desmistificadoras do mundo, que o pusesse a nu, sem adornos, em seu cruel esplendor de sangue, suor e lágrimas? Almejava sair da infância com ardor. Tripolli foi aquele que me indicou o caminho da maturidade intelectual. O humanismo entranhou em mim com violência. Che Guevara ganhou mais um altar.
Assim, cheguei ao final do ano com média nove em História. Infelizmente, o velho Tripa morreria no início do ano seguinte, de câncer. Não completaria o segundo grau formado por ele. Porém, sua figura e suas ideias fazem parte do que sou. Inspiro-me até hoje em seus ensinamentos; busco nele o exemplo de uma História dinâmica e humana. Mesmo não tendo sua energia feroz, suas tiradas certeiras, nem sua liderança e empatia, tento passar adiante esta mensagem aos meus alunos. Quando vejo seus olhos acesos no embate das ideias, sinto que, de alguma forma, ajudei a levar a fagulha de Tripolli até a pólvora daquelas mentes inquietas. Sinto que ajudei a manter a utopia de um mundo mais justo e solidário para além do século XX.
Bem, acho que acabei enveredando por minhas memórias e muito pouco revelei de meu dia, efetivamente. É que são muitas coisas que surgem em minha mente no momento em que sento para escrever – coisas que afloram por entre o vão das palavras e rompem a linearidade de um percurso tão simples como o meu. De casa para a escola, da escola para a casa, sempre acabo esbarrando com alguns fantasmas pelo caminho. Semana que vem, prometo, vou tentar chegar até o Colégio João Antônio sem desvios. Agora, neste momento, o sono começa a me vencer. Até lá.
Publicado em 26 de junho de 2007.
Publicado em 26 de junho de 2007
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