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O bom antropófago

Leonardo Soares Quirino da Silva

Cobrir a conferência do escritor, poeta, artista plástico e dramaturgo Ariano Suassuna no Palácio Itamaraty despertou minha curiosidade sobre qual seria a relação entre o escritor de A Pedra do Reino e Oswald de Andrade. Mais especificamente, entre o movimento Armorial e o Manifesto Antropófago.

O tom da apresentação de Suassuna foi o da defesa da produção cultural autóctone, o que, a princípio, parece contrastar com o ideal antropofágico quando este diz “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”.

Mas o que sobressai da leitura do manifesto é, primeiro, a volta às raízes brasileiras. Isso implica a luta “contra os importadores da consciência enlatada”.

Essa luta, contudo, não tem o mesmo tom dos verde-amarelos. Oswald de Andrade não nega a modernidade, nem o racionalismo, nem a psicanálise. Ele nos remete a uma condição anterior, onde ou já teríamos algumas dessas coisas ou não precisaríamos delas, pois os problemas e as resoluções se originam justamente na imposição da cultura católica e europeia ao Brasil.

Como parte da importação dessa consciência, o que existia antes foi varrido para debaixo do tapete. O manifesto trata de recuperar essas contribuições, por exemplo, com citações a Montaigne e a Rousseau. O primeiro entusiasmara-se com o estilo de vida indígena, em especial no que ele servia para fazer a crítica à sociedade francesa. O segundo, inventou o conceito do bom selvagem.

Aqui, chegamos em um ponto que considero importante do manifesto: a relação do local com o estrangeiro. Da mesma forma que os pensadores franceses souberam ver ou se apropriar do que lhes pareceu conveniente na cultura indígena para discutir suas sociedades, os brasileiros também deveriam fazê-lo.

Essa proposta está presente tanto no nome quanto no fecho do manifesto, bem como no trecho citado acima. O antropófago come e digere o outro, não seu corpo – neste caso seria canibal, como pontuou o autor do manifesto –, mas sua cultura, sua política, sua tecnologia.

Como no processo digestivo comum, o corpo cultural, social, econômico absorveria o que lhe interessa, o que lhe é útil, e excretaria o que não lhe serve mais.

Seguir com a metáfora alimentar nesse caso é útil para ilustrar os riscos de uma dieta sem limites. Está se observando hoje o que se convencionou chamar de epidemia de obesidade, provocada, em parte, pela ampla oferta de junk food, cujo consumo é facilitado pelo estilo de vida.

Traduzida ao pé-da-letra, a expressão em inglês significa comida lixo, que, talvez, sem prejuízo, poderíamos traduzir por porcaria. Daí fica a pergunta: a aplicação direta da fórmula antropofágica poderia nos levar a fenômeno semelhante? Aparentemente, sim.

O depoimento de Bernard van der Weid sobre a Escola de Música da Associação do Movimento dos Compositores da Baixada Fluminense mostra isso. Sem ter acesso aos “clássicos” da música popular, os moradores e, principalmente, as crianças, acabavam limitadas ao que era transmitido pelo rádio e pela TV.

A experiência da Escola de Música aponta para a uma possível solução. Sem conhecer bem o que é seu, como se pode receber de forma crítica o que vem de fora ou, mesmo, julgar o que se recebeu, quando se tem a sensação de que nada recebemos.

Nesse processo, deve se tomar cuidado para não descambar para atitudes como o verde-amarelismo da Escola da Anta ou o congelamento da tradição. Essa é a fuga fácil. É ir direto para o extremo contrário ao da cultura enlatada, que vem pronta para servir.

Apesar de tradições serem constantemente inventadas e reinventadas – um bom exemplo é a xilogravura de cordel ou o próprio Movimento Armorial–, elas não saem do nada. Conhecer essa base comum é o ponto de partida para o bom antropófago.

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Publicado em 3 de julho de 2007.

Publicado em 03 de julho de 2007

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