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Educação, privilégio de classe

Luiza Barreto Leite

Especial: Memória da Educação

Material péssimo, livros e cadernos caríssimos, inaproveitáveis no ano seguinte

Depois que os pais conseguiram matricular e vestir seus filhos, comprando inclusive uniforme de ginástica, também obrigatório e padronizado, esquecido por nós na reportagem passada, depois, enfim, que os pobres-diabos conseguiram passar o primeiro susto, pensam que tudo ficará em paz até o pagamento da segunda quota, marcado para dois meses ou dois meses e meio depois, no máximo... Doce ilusão! Ainda lia outra carta escondida na manga dos proprietários da cultura nacional: os livros e cadernos.

Você tem dois, três ou mais filhos de idades diferentes e pensa poder aproveitar os livros dos mais velhos para uso dos mais moços? Que ingenuidade! Deve ter vindo do mato ou do estrangeiro, se não sabe que no Brasil todos os livros escolares, adotados obrigatoriamente, são diferentes. “Onde já se viu aproveitar livros velhos?” Mesmo que seu filho seja prodigiosamente cuidadoso e tenha conseguido conservar o livro em boas condições, apesar do péssimo material empregado para imprimi-lo, este não poderá ser aproveitado pelo irmão mais moço, pois a escola já terá adotado outro autor e, possivelmente, outro método.

Autores empistolados impõem suas obras

E qual a razão de mais essa alucinação, entre tantas as que já caracterizam o nosso sistema educativo? Muito simples, a razão de todas as coisas no Brasil: política de bastidores. Basta que um escritor ou professor qualquer seja amigo dos “donos do ensino”, ou possua um amigo importante na política municipal ou federal, para que seu livro (muitas vezes escrito às pressas, exclusivamente para esse fim) seja adotado obrigatoriamente em todas as escolas, municipais ou federais, conforme a importância do individuo que o escreveu, ou do prestigio político de seu pistolão.  Ora, como todos os anos há modificações nas “altas esferas do ensino”, isto é, nos homens que manejam os pauzinhos e, sobretudo, como os amigos destes são muitos e é preciso favorecer a todos, não há livro que seja adotado dois anos seguidos. Nem mesmo no caso de um aluno repetir a 4ª série no mesmo colégio, lhe é permitido usar os mesmos livros. Isso quer dizer simplesmente que um pai que possui vários filhos é obrigado a comprar livros novos para todos os princípios de ano. Divertido, não acham? Sobretudo se tivermos em conta que os livros escolares, em média, custam entre trinta e oitenta cruzeiros, se continuarmos a tomar como padrão o primeiro ano ginasial. Os do curso primário são vagamente maia baratos, mas, em compensação, os do científico ou clássico são consideravelmente mais caros.

Livros a 70 cruzeiros e cadernos a 30

As matérias do primeiro ano ginasial são em número de oito, todas exigindo, pelo menos, um livro e dois cadernos, fora “Trabalhos Manuais”, que requerem um sem número de coisas, sempre caríssimas. Os livros, como já dissemos, variam entre trinta e 70 ou 80 cruzeiros; quanto aos cadernos, custam sempre mais de cinco cruzeiros e atingem muitas vezes o preço de trinta ou quarenta, e até cinquenta.

Depois vêm caixas de lápis de cor, lápis de desenho de todos os tamanhos e preços, réguas de determinado feitio e cor, borrachas, compassos de 60 cruzeiros, papéis e cartolinas de toda a espécie, três ou quatro esquadros de tamanhos diferentes, tesouras especiais, transferidor, etc., etc., etc.... Fora a pasta que precisa ser renovada praticamente todos os anos, porque (embora o couro muitas vezes seja bom) é sempre mal costurada, mal feita e estoura toda.

Mais de mil cruzeiros para material escolar

Por esses cálculos, podemos estimar em mais de mil cruzeiros a despesa do material escolar deste ano, embora seja difícil avaliar exatamente, pois a maioria das crianças o compra (pelo menos em parte) no próprio colégio e a conta só é incorporada à segunda quota. O que, de uma certa forma, desafoga um pouco o primeiro período, transferindo o problema para o segundo. Nessa época, porém, alguns cadernos, os lápis, o material de trabalhos manuais e outras coisas já precisarão ser renovados, complicando outra vez tudo.

Enfim, a vida é uma delícia quando se possui filhos em idade escolar! E isso porque a educação é um direito do indivíduo, que as democracias incluem entre os deveres do Estado. As democracias e também as ditaduras, que educam errado e até criminosamente, mas mandam todos à escola. No Brasil, porém, que se diz uma democracia, mas já foi uma ditadura errada, a educação continua um privilégio de classe, ou por outra, um privilégio de bolsa, diminuindo de grau na razão direta das possibilidades econômicas do indivíduo.

Mas é fácil imaginar por este cálculo feito à base do primeiro ano ginasial (1.300 cruzeiros para matrícula e primeira quota, 1.100 para o uniforme — contando o de ginástica — e 1.000 para os livros e material escolar) a razão fundamental pela qual a maioria dos brasileiros, mesmo quando consegue alfabetizar-se, não chega além do curso primário.

Enquanto isto, o Prefeito do Distrito promete ao povo um novo carnaval no mês de junho e o Sr. Getulio Vargas organiza um grande “Festival de Cinema”. Chegaremos lá, Sr. Presidente, chegaremos lá. Quando o Brasil souber ler, naturalmente, produzirá grandes artistas. Por enquanto, não seria melhor realizar o carnaval da fome e o festival do analfabetismo?

Publicado em O Mundo, em 1952, Rio de Janeiro;
da série: O problema dos nossos filhos

Publicado em 10 de julho de 2007

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