Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

O colégio João Antônio

Professor Souza

Diário de um professor

Chegando em Bacanaço ainda pego um ônibus de linha, pois o Colégio João Antônio fica no Distrito de Lima, próximo ao Grotão do Reino – uma das maiores favelas da região. O movimento na Estação às 6:30 h da manhã começa a efervescer. Hoje, comprei um saco de cajás maduros assim que saí do trem. Passei rapidamente por guichês cheios e, meio sem noção, recebi das mãos de um ambulante as frutinhas ácidas que mordo agora, diante do computador. Ao abrir a mochila, após todo um dia de trabalho, recebi no rosto aquele sumo cítrico, fermentado como as matérias que apodrecem nos terrenos baldios. Comprei-as num lance de vista, fazendo sinal para o ônibus que me levaria até o meu destino, esquecendo-me completamente delas no interior da bolsa logo que sentei e me deixei levar mais para dentro da zona norte do Rio de Janeiro.

Trabalho no Colégio João Antônio desde fevereiro de 1994. Quando prestei concurso, em 1993, cursava o primeiro ano do mestrado de pedagogia e ganhava uma bolsa da CNPq, mas ansiava pela oportunidade de começar a dar aulas de História. Abriram quinze vagas em Bacanaço e agarrei a oportunidade com unhas e dentes. Passei em segundo lugar.

A escola João Antônio ficava em um edifício improvisado que originalmente serviu para hospedar operários que chegavam de todo o país para trabalhar na construção da REBAC, Refinaria de Bacanaço, ainda na década de 1960. Lembro da surpresa que foi admirar aquela construção simples, sem muros, caiada de branco, cercada por grandes tonéis de petróleo e por torres em cujo cimo queimava uma chama perpétua, gerada na combustão dos resíduos petroquímicos. O distrito de Lima expandiu-se à margem do petróleo e das grandes indústrias, visíveis em toda a extensão da rodovia Rodrigues Alves. No rastro do ouro negro foram se criando as comunidades com altos índices de analfabetismo e evasão escolar, como a de Grotão do Reino.

Cheguei ali ciente da situação que iria enfrentar. Na época do concurso, a situação de algumas escolas da região fez com que muitos dos classificados desistissem, na última hora, do exame médico e que a Secretaria de Educação fizesse uma repescagem na lista dos aprovados para preencher o número de vagas. Dos quinze professores, seis foram remanejados para a Escola João Antônio, que havia ampliado suas instalações e criado mais cinco turmas do ensino fundamental.

Fomos recebidos informalmente na sala dos professores, o único recanto salvo das pichações agressivas, pontudas, que se espalhavam por muros e paredes. Ali nos aguardava a “velha guarda” do colégio, composta por sete magistrados, mais a diretora Vilma Clara que hoje está aposentada por motivos de saúde. Paraibana, de natureza ríspida e cortante, ela falava como quem espirra, emitindo palavras rápidas, incompletas, esfregando o nariz e os olhos umedecidos pela renite – que imputava aos gases emitidos pelas refinarias – com lenços finos de papel. Pediu a Jussara que nos mostrasse o espaço escolar e entrou em seu gabinete, onde passava a maior parte do dia.

Eu e os outros cinco professores recém-contratados fomos apresentados às dez salas do prédio antigo, começando pela de vídeo e terminando nos banheiros masculino e feminino – tudo muito pichado, maltratado, precário –, após os quais atravessamos um campinho de futebol rústico, com um gramado falho e descuidado, em direção ao prédio recém-construído. Sobre as irregularidades do terreno podia-se encontrar a sucata de antigas máquinas utilizadas pela construção civil: uma betoneira enferrujada destacava-se, mas não seria difícil achar fusíveis, restos de capacetes, sob a vegetação que crescia às margens daquele tapete verde, estropiado.

No outro lado do pátio ficavam as novas instalações da cantina e mais seis salas de aula. Nestas últimas, apesar das mesas, cadeiras e estantes serem novas, prevalecia uma atmosfera de inacabamento: as paredes estavam somente embolsadas – e pichadas, para a surpresa(?) de todos –  e o sistema elétrico jazia no entrelaçamento caótico de fios em cujas extremidades pendiam lâmpadas de 60 watts de potência. Saídos da cozinha, onde reluziam copos e panelas ligeiramente amassadas, olhávamo-nos de banda, desconcertados com o aspecto da Escola em que iríamos trabalhar. Jussara conduziu-nos para fora murmurando a respeito de verbas para a construção de uma biblioteca ou algo parecido. Ao fundo, a tarde avermelhada silhuetava os depósitos de petróleo.

Bem, as coisas não seriam nada fáceis e realmente não foram fáceis. Na primeira semana de aula entramos em contato com crianças, em sua maioria, sem uma base familiar consistente e com grandes dificuldades de aprendizado. Muitas mal sabiam ler ou escrever. O corpo docente estava desestimulado e, diante dos percalços que encontrávamos para silenciar os alunos, os mais velhos esboçavam um riso cansado no qual não faltava uma certa dose de morbidez.

Já nas primeiras semanas duas professoras simplesmente deixaram de comparecer às aulas. A diretora Vilma Carla espirrava mais do que nunca, delegando funções, assoando o nariz e se trancando em seu gabinete à prova de ácaros.  Antes do final do ano, outros dois pediriam transferência. Somente eu e Ivana, licenciada em geografia, resistimos e até os dias de hoje lecionamos no Colégio João Antônio.

A persistência não foi em vão. Creio que nossa permanência no Colégio ajudou a oxigenar um pouco o ambiente, principalmente após Ivana assumir a direção e, com sua energia e poder de articulação, implementar as reformas que tanto o espaço físico como o pedagógico já há algum tempo mereciam. No lugar do campo falho e esburacado, temos hoje uma pequena quadra; a biblioteca vem crescendo em número de livros e o prédio foi todo murado e pintado com as cores verde e laranja – embora, o problema da pichação continue. Espero que no decorrer de meus diários possa esmiuçar melhor parte deste processo que tanto me orgulho de ter participado, ainda que de maneira indireta. Agora, vou colocar as cascas de meu cajá na cumbuca de Napoleão. Será que Jabuti gosta de cajá? Vamos ver. Semana que vem eu digo pra vocês.

Publicado em 17 de julho de 2007.

Publicado em 17 de julho de 2007

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.