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Qual é a sua cor?

Leonardo Soares Quirino da Silva

Professora americana fala sobre os resultados das políticas de Ação Afirmativa nos EUA

No momento em que estão sendo aplicadas, no Brasil, as primeiras políticas de ação afirmativa é interessante conhecer a experiência de outros países. Para saber os resultados alcançados por essas políticas nos EUA, o Portal entrevistou a professora Kim Williams, da Kennedy School of Government (Universidade de Harvard). Autora do livro Mark One or More: Civil Rights in Multiracial América (2006), a professora pesquisa as políticas raciais, movimentos sociais e imigração nos EUA.

Em dezembro, Kim esteve no Brasil para falar sobre o critério de raça no censo americano de 2000. Esse critério é importante para orientar a alocação de recursos pelo governo americano e verificar os resultados das políticas públicas. No Rio, os resultados de suas pesquisas foram apresentados no Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam) e no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Nas apresentações, ela falou sobre o surgimento do movimento multirracial (ver link no fim da matéria), sua origem social e a apropriação de sua pauta pelo Partido Republicano e pelos conservadores em geral.

Pela internet, a professora respondeu a perguntas sobre o impacto das políticas de ação afirmativa nos EUA sobre a população negra, a incorporação de outras minorias e o futuro dessas políticas, após terem sido quase proscritas por uma decisão da Suprema Corte dos EUA, assim como do papel do movimento multirracial e da apropriação de sua pauta por políticos conservadores.

Quanto o padrão de vida da população negra americana melhorou como consequência das políticas de ação afirmativa?

Isso depende da referência que se escolhe para determinar o que seja "progresso". Por um lado, cerca de um terço de todos os negros, hoje, está na classe média. Isso é mais do que sempre foi e muito deste progresso está relacionado ao recém conseguido acesso à educação e as subsequentes oportunidades de emprego que começaram a acontecer após a passagem do marco da legislação dos direitos civis nos anos de 1960. Por outro lado, em torno de um terço dos negros permanecem atolados em profunda pobreza. Em um país rico como o nosso, isto parece tanto inaceitável quanto evitável.

É importante colocar essa questão em um contexto de crescente desigualdade. Uma crítica à ação afirmativa é que seus benefícios foram em grande parte para negros que, dentro da comunidade negra, já eram de classe média ou que eram capazes de entrar nesta classe. Se isso é verdade, é necessário ver o quadro mais amplo. Os EUA têm um fantástico sistema educacional, uma que vez que você consiga chegar à faculdade (se você entrar na faculdade). Nossos sistemas de ensino fundamental e médio são em grande parte financiados por meio de impostos sobre a propriedade, o que obviamente dá uma vantagem para os garotos (brancos, negros, quaisquer outros) que vivem em distritos escolares ricos. Estaríamos muito melhor enquanto nação se resolvêssemos fazer a equalização do fluxo no início, lançando as bases, assim, para que todos os garotos americanos tivessem uma dose decente de boa educação. Ninguém mesmo finge acreditar que todas as escolas foram criadas iguais.

Em sua apresentação no Ibase, você disse que realmente há uma classe média negra. Contudo, esta classe média é muito diferente da branca. Quais são as diferenças de padrão de vida entre brancos e negros nos EUA atualmente? E os outros grupos raciais e culturais?

Algumas diferenças importantes entre as classes média branca e negra nos EUA são estas.

Primeiro, negros de classe média vivem em ambientes mais integrados do que os brancos. Afinal, a classe média negra é minúscula se comparada à branca. Pessoas brancas de classe média evitam morar próximo a negros pobres sempre que possível. Assim, os poucos negros que se conhecem e que vivem em volta, em sua maior parte, também são de classe média ou alta.

Depois, é mais provável que a maioria dos negros de classe média viva próximo aos pobres que os brancos. Os negros - mesmo quando se mudam para os subúrbios - tendem a viver em subúrbios mais pobres.

Em seguida, é mais provável que negros escorreguem da classe média para baixo. Isto é verdade em parte por serem os negros menos ricos que os brancos - algo que permanece verdade em todos os níveis de renda.

Por fim, negros de classe média estão desproporcionalmente empregados no setor público. Quando o corte de orçamento bate, quando um presidente nos diz "o governo não é a solução, é o problema" (Reagan e uma versão atualizada da mesma coisa), então a classe média negra leva um golpe mais duro do que a branca, cujos membros estão desproporcionalmente empregados no setor privado.

O movimento multirracial é uma solução ou um problema no que tange as políticas de ação afirmativa?

Dois argumentos diferentes têm sido apresentados com relação à ação afirmativa. Um afirma que é justificável como na necessidade de compensações pelas injustiças históricas e pelas desvantagens. O outro argumento declara que diversidade étnica e racial, ao menos entre as elites, é benéfico para a sociedade.

O movimento em direção de um censo "multirracial" nos EUA provavelmente não fortalece o argumento para ações afirmativas com base na injustiça histórica por uma coisa: ele pode dificultar a forma de como estabelecer a elegibilidade. Então, novamente, há espaço para pensamentos sobre como o multirracialismo e a lógica da diversidade se cruzam.

Podem essas políticas incorporar outras minorias no futuro?

Políticas de ação afirmativa já incorporaram outras minorias. Entre as elegíveis estão hispânicos, índios, mulheres (incluindo as brancas), imigrantes. Na verdade, algumas pessoas argumentam que a extensão da ação afirmativa para outros grupos pode acelerar sua ruína.

Como foi que republicanos e conservadores em geral se apropriaram do discurso do movimento multirracial? Com que fim?

Através da história americana, o governo dos EUA usou designações raciais como ferramenta de dominação, servindo para separar e penalizar aqueles que não eram percebidos como brancos. Na verdade, classificações raciais permitiram um amplo leque de sistemas de exploração até que o movimento dos direitos civis virasse a função previamente opressiva dos dados raciais de ponta-cabeça.

Juntos, o Civil Rights Act (1964) e o Voting Rights Act (1965) desmantelaram a estrutura formal que negava o direito de voto aos negros no Sul assim como os vários tipos de discriminações públicas e privadas através dos EUA. No processo, as estatísticas raciais tornaram-se valiosas aos grupos das minorias americanas de novas formas. Ao implementar e regular os direitos civis, por exemplo, as estatísticas raciais tornaram-se importantes para identificar o número de minorias empregadas nas firmas e a composição racial das escolas. A Seção 2 do Voting Rights Act ordenou que as minorias raciais tivessem uma oportunidade igual para eleger representantes de sua escolha; o cumprimento da lei demandou a tabulação da população por raça até o nível do quarteirão. Da mesma forma, muitos dos programas sociais da época, em seus esforços para melhorar as condições de vida nas cidades e responder aos problemas enfrentados pelos grupos em situação de desvantagem, distribuíram fundos por meio de fórmulas de concessão de subsídios estatisticamente orientadas.

Portanto, nos anos 1960, as classificações raciais tornaram-se úteis para o propósito de fazer cumprir e monitorar as leis de direitos civis. Poucas décadas depois, a ideia de que não havia nada inevitável ou preordenado sobre a maioria das categorias, incluindo as raciais, começou a tomar corpo. Como as coisas se encontram agora, os interesses envolvidos na categorização racial são consideráveis, porém, as bases para identificar e delimitar os grupos raciais são cada vez mais suspeitas.

Foi contra esse pano de fundo que pessoas influentes, ansiosas em desmantelar as políticas públicas e preocupadas com a questão racial, trabalharam para se apropriar do movimento de identidade multirracial.

Na verdade, nos últimos anos, os republicanos - e os conservadores de forma mais ampla - mostraram claro interesse no multirracialismo como meio de capitalizar sobre a confusão que prevalecia sobre raça. Eles viram a potencial adição de uma categoria multirracial como uma forma para acelerar essa confusão e, por fim, minar as proteções dos direitos civis. Assim, vemos que os membros conservadores do Congresso, com baixo desempenho no campo dos direitos civis, apoiaram o esforço da categoria multirracial. Ainda permanece um enigma: por que, então, o reconhecimento do multirracialismo veio na administração Clinton? Eu acredito que os democratas queriam o reconhecimento do multirracialismo sem consequências adversas aos direitos civis; os republicanos queriam o reconhecimento do multirracialismo com consequências adversas. Para os ativistas mesmo, não acho que o movimento multirracial seja uma conspiração de direita; ao contrário, pessoas poderosas com agendas de direita tentaram se apropriar dele.

Você pode explicar ao nosso público a importância da decisão da Suprema Corte, em 2003, para as políticas de ação afirmativa e sua relevância para o Movimento dos Direitos Civis?

A decisão da Suprema Corte de 2003 foi histórica por um fio; a ação afirmativa sobreviveu por muito pouco, 5 votos a 4. Naquela oportunidade, a agora aposentada juíza Sandra Day O'Connor salvou o dia. Em 2003, ao menos dois argumentos "pro" influenciaram-na. Decidindo com a maioria - porém especialmente como a primeira mulher na Corte -, ela entendeu a ação afirmativa como uma ferramenta positiva para combater a desigualdade de gênero. Segundo, ela concordou com o memorial de amicus curiae apresentado pelos militares, que destacaram a necessidade de diversidade nas Forças Armadas em nome da segurança nacional. (Esta é uma longa história, porém tem relação com o fato de que, após o fim do serviço militar obrigatório, os soldados americanos são desproporcionalmente negros; os oficiais, desproporcionalmente brancos).

Além das mulheres e dos militares, vale a pena registrar outra fonte chave de apoio para as políticas de ação afirmativa em 2003 e depois: as grandes corporações. Com a crescente clientela global, muitas corporações encontram vantagens óbvias em ser representadas por pessoas que reflitam diversidade. Assim, muitas das grandes corporações praticam a ação afirmativa de forma voluntária mesmo quando não há pressão significativa do governo.

Olhando para frente, se a ação afirmativa sobrevive no fim das contas, será por que os tribunais continuam a definir "diversidade" - não injustiças históricas - como o motivo do interesse estatal nessa área. Isto está bem longe de onde começamos com a ação afirmativa em 1965, quando Lyndon Johnson introduziu-a como uma política enraizada na aspiração de eliminar a longa sombra da injustiça histórica.

Movimento Multirracial

O Movimento Multirracial surgiu no final dos anos 1970, na área da baía de São Francisco (Califórnia). A principal pauta do movimento é o direito de as pessoas se declararem de origem multirracial e terem os seus direitos reconhecidos como tal. Ao se entender a base social do movimento, como apresentado pela professora Kim Williams em suas palestras, fica claro que o movimento surgiu da demanda de casais interraciais formados no final dos anos 1960 e, mais especificamente, quando os filhos desses foram para a escola, onde tinham que identificar sua origem étnica em função das políticas públicas. Essas crianças, em sua maioria, são filhos de pais negros e mães brancas que queriam que esta origem fosse reconhecida. Como os formulários só possuíam uma opção de resposta, começou a luta para que os formulários permitissem que as pessoas marcassem mais de uma opção. No caso do censo americano, a proposta foi encaminhada pela primeira vez em 1989 e incorporada definitivamente no levantamento de 2000.

15/1/2007

Publicado em 16 de janeiro de 2007

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