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Animais e autômatos na literatura infantil do século XIX

Guilherme Sarmiento

A discussão sobre a segmentação e hierarquização das almas, suas relações com o corpo, com o organismo, é tão antiga como as fábulas, se considerarmos estas últimas como um meio através do qual preceitos morais poderiam ser dados com arte. Utilizar a imagem dos animais para tal fim necessitou de um distanciamento irônico somente permitido aos que já se acharam no direito de apontar na polis os desalmados, os bestializados ou de lembrar aos homens que as "bestas" também sonhavam.

No século VI antes de Cristo, Epicuro e discípulos documentavam pela primeira vez no Ocidente a afirmação de que os bichos e os homens possuíam um mesmo tipo de alma. No outro lado das sebes, Esopo criava suas fábulas tão atuantes e perenes sobre o imaginário humano como a lua é sobre os oceanos. O amparo da criação literária de bichos falantes por teorias filosóficas que credenciavam - ou descredenciavam - os animais para o uso de suas capacidades cognitivas manteve-se durante as muitas fases de emergência do gênero no Ocidente.

No século XII, junto à criação do "Romance da raposa" e sua colagem de peripécias e cenas com animais humanizados (COELHO, 1981, p. 193), São Francisco de Assis envolveu a natureza e todos os seus componentes em uma irmandade de cujo êxtase o homem não estaria segregado, se assim o desejasse. No mesmo século, São Tomás de Aquino forneceria uma visão totalmente diversa, ao dizer que a essência humana é a única a compartilhar da divina. Amparava-se na própria Escritura, diante da qual Deus criava o ser humano a Sua imagem e semelhança. Para o Doutor Angélico, os escravos e os animais existiam somente para satisfazer a vontade dos que possuíam a capacidade suprema do raciocínio (PAIXÃO, 2001, p.189). Ironicamente, Aquino respondia ao simpático apelido de Boi Mudo, da Sicília, sem  se  sentir ofendido...

Mas nenhuma contribuição causou maior reviravolta no meio intelectual do que o dissecamento cartesiano realizado na primeira metade do século XVII. Em Descartes, o animal vivia, da mesma forma que a máquina vivia. Para ele:

O animal não é nada além do mecanismo que o constitui. Se tem uma alma, a tem da mesma maneira que a máquina dispõe de uma bateria, para lhe fornecer a faísca que a faz funcionar. Mas o animal não é uma alma inserida num corpo, e a qualidade de seu ser não é a alegria. (COETZEE, 2002, p.41)

Portanto, no momento em que La Fontaine criava a fábula da Cigarra e da formiga e Charles Perrault o seu Gato de Botas, uma complexa discussão travava-se nas mais altas esferas do pensamento. Leibniz, por exemplo, assim como muitos pensadores de sua época, nunca se convenceu completamente das argumentações cartesianas. Em seus Novos ensaios sobre o entendimento humano, escrito do final do século XVII,   respondia que

se os animais possuem algumas ideias e não são meras máquinas, como pretendem alguns, não deveríamos negar que possuem a razão em certo grau. Para mim é tão evidente que raciocinam, como é manifesto que têm sentimento. Todavia, é apenas sobre as ideias particulares que raciocinam, conforme os seus sentidos lhes representam tais ideias (LEIBNIZ,1980,p.92).

Voltaire considerou néscios os que julgaram os bichos privados de conhecimento e impossibilitados de aperfeiçoar os dons naturais. "O canário a quem tentas ensinar uma melodia repete-a logo no mesmo instante, ou levarás um certo tempo a fazer-lhe decorar?", pergunta o pensador, "e não reparaste como se engana, com frequência, e vai corrigindo depois?" (VOLTAIRE, 1973, p.301).

No século XIX, toda a discussão a respeito do lugar dos animais vai refletir o deslocamento da alma, que durante o iluminismo havia estacionado no cérebro racional, para a arrebatadora superfície dos sentidos. Hume foi um dos responsáveis pelo início da transfusão, muito embora suas teorias pouco tenham servido para reavaliar a expressividade das criaturas "irracionais".  Hegel, em 1830, vai reivindicar à animália uma voz movida por intensa subjetividade. Segundo ele:

A voz é um alto privilégio do animal, que pode parecer maravilhoso; ela é a exteriorização da sensação, do sentimento-de-si. Que o animal é em si e para si mesmo, algo o representa, e esta representação é a voz. Mas só o sesciente pode apresentar que ele está sentindo. O pássaro no ar e outros animais emitem de si uma voz por dor, necessidade, fome, saciedade, prazer, alegria, cio: o cavalo relincha quando vai à batalha, zumbem os insetos; gatos ronronam, se lhes vai bem. Mas o desfazer-se teórico do pássaro que canta é uma arte superior da voz; e que isto vai tão longe no pássaro, já é algo particular em relação ao fato de que em geral os animais têm voz. Pois, ao passo que os peixes na água são mudos, adejam os pássaros livres no ar, como seu elemento. (...) A voz é o que há de mais próximo ao pensar; pois aqui a subjetividade pura se torna objetiva, não como uma efetividade particular, como um estado ou uma sensação, mas no elemento abstrato de espaço e tempo. (HEGEL, 1977, p.453)

Curioso comparar os falantes animais de Hegel com os que na mesma época passeavam pela oralidade que os irmãos Grimm ajudaram a coletar e imortalizar na forma de pequenas e envolventes narrativas mágicas. Muito do que lemos nos contos de fadas extrapolam o mero ajuntamento de "causos" populares, imemoriais, para ser também um território de varredura abrangente, que tocou tanto os confins da lenda quanto as proximidades de um debate científico ou filosófico.

Exemplar neste sentido é o conto do escritor Hans Christian Andersen - um dos expoentes do conto de fadas do século XIX -, O rouxinol. Dentro da obra do dinamarquês, este texto advoga de maneira direta e cristalina a favor da espontaneidade dos animais, desvinculando de seu corpo quaisquer parafernálias artificiosas; mostra-se inquieto com os automatismos, contrário ao deslumbramento tecnológico tão comum aos contemporâneos da obra; toma de empréstimo da filosofia natural noções que o encrava em meio ao mundo tangível, ao âmbito da história da ideias.

O conto começa na China, país de colorido exótico para os europeus. Marco Polo foi seu mais conhecido divulgador, mas existem outras viagens e relatos menos conhecidos como o realizado em 1669 pelo jesuíta italiano Claudio Filippo Grimaldi. Em sua correspondência com Leibniz, o religioso viajante afirmou o interesse dos chineses pela tecnologia europeia. Lanternas mágicas e relógios com autômatos foram artigos bastante requisitados pelo gigante asiático, por esta época abrindo as fronteiras às mercadorias e curiosidades ocidentais (MANONNI, 2003, p. 91). Embora a China de Andersen seja um lugar sem uma localização espaço-temporal precisa, veremos que algumas dessas referências poderão ser encontradas durante a aprazível leitura do texto.

Com um palácio "construído inteiramente de porcelana finíssima" e com jardins de cujas flores pendiam campainhas de prata, o Império descrito tilintava uma organização quase cartesiana, se não fosse por uma floresta localizada bem ao fundo do portentoso cenário. Neste lugar livre da interferência humana, vivia um rouxinol cantante. Sua voz brotava naturalmente por entre as árvores que vicejavam sob o solo orgânico da filosofia romântica. Seu canto sedutor atraía os viajantes, que de bom grado largavam os palácios e jardins para ouvirem extasiados a música sublime da "avezinha cantora da floresta dos lagos".

Cioso da maior riqueza do Império, o governante chinês só tomou conhecimento da pequena criatura através de relatos que caiam em suas mãos depois de rodar o mundo. Sem demora, ordenou ao mordomo que localizasse o famoso rouxinol e o trouxesse até ele. Após inquirir uma pequena e pobre ajudante de cozinheira, o subalterno chegou até o recanto de onde, habitualmente, a ave maravilhava de camponeses a maestros. Após o show encantador, o mordomo convidou-a a comparecer ao palácio de fino mármore:

- É muito melhor o meu canto ouvido na floresta do que num palácio, mas irei, já que o imperador o quer (ANDERSEN, 1962, pp. 121-140).

Aqui, torna-se explícita a afinidade entre a excelência da arte do animal com as forças da natureza. Tais analogias ficarão mais evidentes quando, saído de uma caixa remetida de um país estranho, chega ao Império o autômato, um pássaro feito de diamantes, safiras e rubis, movido a corda, que "cantava uma das músicas do rouxinol de verdade, e também estremecia a caudinha, toda rutilante de pedrarias". Os cortesãos não titubearam em confrontar a delicada ave da floresta, por aquela época vivendo em uma gaiola de ouro ao lado do trono, com o recém-chegado realejo de cristal. O resultado do dueto foi uma inicial vantagem para o segundo, que conseguia cantar trinta vezes a mesma música, do mesmo jeito, sem cansaço. Aproveitando-se do recente desprezo da corte, o rouxinol de carne e osso fugiu do palácio sem ressentimentos.

Como era de se prever, o narrador não deixou a maquininha funcionar por muito tempo. Aos poucos foi sucateando a pretensa superioridade do repetitivo engenho. Um homem do povo, um pescador, foi o primeiro a expressar seu descontentamento com a ladainha:

- Canta bem, não há dúvida, dissera esse homem, mas só canta uma certa música, e além disso noto que falta qualquer coisa nessa música - o quê, não sei.

O que faltava era alma, sentimento, emoção, atributos constitutivos de um corpo vivo, somente, por maior a perfeição da execução da caixinha de música. Se o pescador não chegou a balbuciar de uma vez o veredicto, foi porque o desenrolar dos acontecimentos por si só levariam até ele. Um ano após a consagração imperial, em sua milésima execução, o mecanismo do pássaro estalou, obrigando um relojoeiro a prestar os seus serviços à coroa. O artesão trocou as molas gastas, o que fez com que a música mudasse levemente seu ritmo. Os acontecimentos se precipitariam cinco anos depois, quando o rei caiu vítima de uma doença respiratória.

Sozinho em seu leito, cercado por pressentimentos de morte, o imperador pediu música ao seu boneco de ricas pedrarias. O rouxinol artificial, sem ninguém para lhe dar corda, quedou mudo e parado no escuro do quarto, indiferente às vontades do soberano.  A falta do canto encheu o ambiente de presságios negros, fantasmas saídos do silêncio sepulcral. Mas eis que, súbito, uma melodia atravessou o cômodo, espantando os males do rei: o rouxinolzinho da floresta pousou em sua janela e

cantou, cantou como os rouxinóis costumam cantar nos jardins sombrios, ao cair da noite, quando o orvalho começa a misturar-se aos perfumes das flores sonolentas. Por fim a Morte esvaiu-se do quarto, como um nevoeiro que se extingue ao sol.

O rei, restabelecido, quis prontamente recompensar a ave com títulos e comendas, prometendo fazer sua rival de rubi em pedaços. Tudo foi dispensado pelo desinteressado pássaro, que só exigiu do rei a liberdade para cantar tanto próximo dos aposentos palacianos como à beira de uma pobre choupana. E continuou, magnânimo:

Isso porque sou um castorzinho que voa por toda parte, e pousa no teto dos camponeses humildes e dos pescadores paupérrimos, e de toda a gente que vive longe da corte e nem sequer é por ela suspeitada. Eu amo mais o vosso coração que a vossa coroa.

A benevolência e disponibilidade do rouxinol "natural" contrastou vivamente com a apatia e previsibilidade da pequena joia animada à corda. Nenhum invento humano se comparava às obras da natureza. Seres vivos, detentores de uma energia espontânea, os animais não podiam ser considerados máquinas e nem elas poderiam fornecer a medida de seus dons. Esta pode ser uma das mensagens legada por este belo conto de Andersen.

À medida que o ideário romântico vai se afirmando com mais vigor no Ocidente, a visão do corpo como uma máquina e dos animais como meros fantoches desalmados torna-se crítica. Automatismo passa a se contrapor de maneira radical a organismo. A repercussão da temática nas fábulas e contos de fadas poderá ser captada na inteireza de todos os seres, do direito de todos eles à alegria de um corpo propenso ao gozo e à tragédia da existência, que o conto O rouxinol, de Andersen, parece reivindicar. Longe de uma consciência ecológica tal como a conhecemos hoje, o enfoque visava simplesmente confirmar a espontaneidade e autonomia da natureza bruta frente ao mecanicismo da razão, cada vez mais impositivo ao pensamento de seu tempo.

Bibliografia

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Publicado em 31 de julho de 2007

Publicado em 31 de julho de 2007

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