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Tudo passa

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Nos fins do século VI antes da era comum, surgiu na Jônia (costa da Turquia) um pensador que iria marcar a filosofia contemporânea. Seu nome era Heráclito e sua cidade era Éfeso, terra da deusa Ártemis, a caçadora, senhora da natureza selvagem e das florestas escuras. Pois foi nesse ambiente florestal de pouca luz que esse pensador teria produzido um livro chamado, (adivinha?) ”Sobre a Natureza”.

Sim. O mesmo título do poema de Parmênides. Não se tratava de um plágio, nem de algum erro no escritório de registro de direitos autorais (não havia o conceito de autoria no século IV antes da era comum). Naquele período, a maioria dos pensadores escreviam um livro intitulado “Sobre a Natureza”. O fato é que Heráclito teria escrito esse livro, segundo alguns, em pedra, e depositado na frente do templo de Ártemis como uma oferenda para a deusa. Mas o tempo e a história trataram de decompor a obra de Heráclito, e dela só nos restou o nome, a lenda, e um punhado de fragmentos (em forma de comentários de terceiros, espalhados pelos textos de diversos autores como Aristóteles e Diógenes Laércio). Por causa disso, Heráclito foi chamado por muito tempo de “O Obscuro”. Plenamente compreensível. Só sobraram pedaços de seu livro. Se isso acontecesse, por exemplo, com a obra máxima da Bruna Surfistinha (“O Doce Veneno do Escorpião”), é provável que ela também fosse chamada de “A Obscura”. Talvez algum filólogo do futuro pudesse fazer uma tese de doutorado de 300 páginas sobre um dos fragmentos da obra perdida da Surfistinha (“E então ele, com seu membro...”).

Essa é uma diferença fundamental entre um aforismo e um fragmento. Um fragmento é um pedaço. Uma parte deslocada do todo. Então, seu sentido original se perde, por causa do deslocamento. Um aforismo é inteiro. Completo. Seu sentido está totalmente contido na extensão de sua frase. Ele é curto, mas não é fragmentário.  Como o livro de Heráclito se perdeu, e só sobraram os fragmentos registrados em comentários feitos por outros autores, seu pensamento, a exemplo da deusa à qual ele rendia suas homenagens, mergulhou na escuridão e na penumbra. Por quase dois mil anos.

Heráclito foi considerado durante todo esse tempo como um pensador estranho e menor. Um apêndice da obra grandiosa de Aristóteles. Mas esse foi o destino de quase todos os pensadores originais. Obliterados pelo cristianismo de Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino, toda essa turma da linha de frente da filosofia antiga era meio que desprezada porque, entre eles e o resto do mundo, havia os irmãos metralha (Sócrates, Platão e Aristóteles) do cristianismo. Foi necessário muito tempo e muita pesquisa histórica para que Georg Wihelm Friedrich Hegel (1770-1831) percebesse a importância e a pertinência das ideias de vários desses pensadores originais, esquecidos e ofuscados pelo marketing cristão, que elegia os três patetas (ops, desculpe, foi um lapso!), os irmãos metralha (Sócrates, Platão e Aristóteles). Mas Hegel extraiu pelo menos uma ideia fundamental dos fragmentos de Heráclito. A dialética.

Sim. “Dialética”. Quem nunca ouviu essa palavra nos anos sessenta e setenta? Quem não lembra dela no movimento estudantil? Quem não lembra dos bons e velhos jargões dialéticos dos sindicatos brasileiros, ou mesmo as discussões dos intelectuais de esquerda nas mesas de bar, cheias de copos de cerveja e bolinhos de bacalhau em pratos de plástico, sobre essa tal de “dialética”. Pois é, amigo leitor, nem Hegel, nem Marx, nem Platão. Quem abriu caminho para o surgimento da dialética foi Heráclito de Éfeso, o obscuro; aquele que não podia entrar nas mesmas águas de um rio duas vezes. O conceito é simples: tudo passa; tudo flui. O que a dialética nos ensina é que nada permanece o mesmo todo tempo. Que as coisas mudam, que tudo é transitório e tudo carrega em si o seu contrário. A vida já é o começo da morte. O frio já traz em si as marcas do calor, assim como o calor carrega sempre as possibilidades do frio. Os pedaços da obra de Heráclito fizeram Hegel pensar que tudo está contido no fluxo da história e que, mediante este fluxo, tudo se transforma no seu oposto. Um corpo vigoroso e firme, um dia, será um cadáver. O calor de uma fogueira será, brevemente, substituído pelo frio de suas cinzas. Tudo passa; tudo flui. Panta rei, panta corei.

Publicado em 07/08/07

Publicado em 07 de agosto de 2007

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