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Os setenta anos de uma senhora rebelde: a UNE

Mariana Cruz

“A UNE somos nós, nossa força, nossa voz!”

Das parcas passeatas estudantis de minha adolescência, esse é o grito que ainda escuto distintamente ao me remeter àquela época de minha vida. Era o finalzinho dos anos 1980. Estávamos bem distantes do climão repressivo e violento dos anos de chumbo. Fomos às ruas umas três vezes para impedir o aumento abusivo das mensalidades escolares. O ambiente era mais festivo do que qualquer outra coisa. Meus coleguinhas contestadores de ocasião e eu éramos de escola particular e nos sentíamos o máximo por estarmos ali, andando no meio de uma multidão de alunos das outras escolas e pedindo algo que nem sabíamos que poderíamos reivindicar, algo pertencente ao mundo adulto. Mas, findas as passeatas, eram poucos os que se interessavam em mergulhar no movimento estudantil.

Tive uma grande amiga, porém, que levou a coisa a sério; tinha 12 ou 13 anos quando entrou para a AMES (Associação Municipal dos Estudantes Secundaristas). Graças a ela, pude conhecer, mesmo que superficialmente, um pouco do movimento estudantil. Vez ou outra eu ia com ela à sede provisória da União Nacional dos Estudantes, a UNE, participar dos conselhões, uma reunião em que estudantes da Zona Sul discutiam os encaminhamentos a serem tomados. A UNE, nessa época, ficava em um prédio caindo aos pedaços, na Rua do Catete.

Enquanto minha participação no movimento estudantil estava mais ligada ao oba-oba do que a um comprometimento mais sério, minha amiga engajava-se cada vez mais. Tornara-se membro atuante de uma entre as tantas organizações políticas de juventude, participava de reuniões semanais, fazia atos na porta de instituições capitalistas, organizava passeatas, escrevia frases de protesto nos muros da cidade. Ainda hoje lembro o nome de algumas dessas organizações: tinha a OJL (Organização da Juventude pela Liberdade), a UJS (União da Juventude Socialista), a CS (Convergência Socialista), o MR-8 (Movimento Revolucionário de 8 de Outubro, cujo nome registrava o dia da captura de Che Guevara pela CIA). O que realmente me impressionava, me fazia ir aos tais conselhões era a eloquência, o desembaraço com que aqueles jovens um pouco mais velhos que eu, com seus 16, 17 anos, se pronunciavam. Eram de uma maturidade, de uma desenvoltura verbal, que eu não encontrava nem nos meus professores mais articulados. Eles citavam trechos filosóficos de cor, debatiam teorias econômicas, políticas e sociológicas com a maior naturalidade. Como eles sabiam de tanta coisa?

Isso faz quase vinte anos; estamos em 2007. No dia 11 de agosto a UNE completou 70 anos e ganhou diversos presentes, a começar por dois filmes dirigidos por Silvio Tendler (Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil e O afeto que se encerra em nosso peito juvenil) e o livro Memórias Estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias, da historiadora Maria Paula de Araújo. Esses três lançamentos fazem parte do projeto Memória do Movimento Estudantil, que busca resgatar a história da militância da juventude brasileira. Outra surpresa foi o projeto do novo prédio da UNE, feito por Oscar Niemeyer. A construção será erguida no terreno da antiga sede da entidade, na Praia do Flamengo, 132, que havia sido transformada em estacionamento irregular e foi retomada em fevereiro deste ano pelos estudantes, que pretendem fazer lá um Centro Cultural.

A UNE: dos primórdios até hoje em dia

A UNE sempre esteve ligada à história de lutas do país, protagonizando ou tomando parte de importantes episódios sociais e políticos do Brasil. Sua postura contestatória aparece já em seus primeiros anos de existência. Fundada em 1937, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, logo expressou sua posição antifascista ao promover, em 1943, uma marcha até o Palácio do Catete, para exigir do presidente Getúlio Vargas que o Brasil tomasse posição contra o Eixo (Alemanha-Itália-Japão).

Em 1947, participou ativamente da campanha “O petróleo é nosso”, ao lado dos oficiais das Forças Armadas, uma vez que estavam de acordo com a tese de que, por ser um produto estratégico, o petróleo não poderia ser privatizado, para que não acabasse em mãos estrangeiras. Tal campanha foi fundamental para que seis anos depois, em outubro de 1953, fosse fundada a Petrobras.

No final dos anos 50 e início dos 60, a UNE passou a lutar pelas reformas de base e outras propostas de cunho popular do então presidente João Goulart, o Jango.

Em 1960 surgiram os Centros Populares de Cultura, os CPCs, um lugar de experimentações artísticas e pesquisas culturais onde intelectuais, estudantes e artistas trocavam ideias e realizavam experiências artísticas que se tornaram referência na cultura brasileira. O CPC tinha produção cultural própria; através dele, o movimento estudantil gerou produtos como o filme Cinco Vezes Favela. Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Ferreira Gullar e Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, entre outros, foram alguns dos que participaram desses centros. O objetivo da UNE, com a criação dos CPCs, era difundir a cultura popular e a arte regional.

O centro, inaugurado no Rio de Janeiro, em 1961, foi fechado pelo regime militar em 1964. Nesse ano, em 1º de abril, a UNE teve sua sede saqueada e incendiada pelos militares, como um ataque aos seus ideais de igualdade, liberdade e nacionalismo defendidos pela instituição. Chegavam os anos de chumbo, e junto com eles lutas, censuras e fatos ainda hoje não esclarecidos. Muitos estudantes foram presos, torturados e mortos: Edson Luís de Lima Souto, Alexandre Vannucchi Leme, Honestino Guimarães, desaparecidos durante o regime militar, são apenas alguns dentre os tantos nomes que deram a vida em troca de um ideal de justiça social.

A passeata dos 100 mil, em junho em 1968, comandada por Vladimir Palmeira e pelo então presidente da UNE, Luis Travassos, foi um marco político. Estava oficializada a luta dos estudantes contra a ditadura. Meses depois, aconteceu o XXX Congresso da UNE, realizado clandestinamente em um sítio em Ibiúna, no sul do Estado de São Paulo. Entretanto, quase mil estudantes foram presos ali. Com essas prisões e as perseguições feitas a partir do AI-5, a entidade ficou profundamente abalada. Mas o movimento resistiu. Em 1977, apesar da proibição de manifestações pelo Ministério da Justiça, protestos continuaram a acontecer pelo Brasil; então, não só os estudantes, como outros setores da sociedade se juntaram na luta pela liberdade de presos políticos. A luta pela anistia teve na UNE sua maior articuladora. Em Salvador, no ano de 1979 aconteceu o XXXI Congresso de Reconstrução da UNE.

Cinco anos depois, em 1984, a UNE teve intensa participação nas “Diretas Já”, quando, manifestou seu repúdio às eleições indiretas. A emenda que defendia as eleições diretas para a presidência da República, apesar de reprovada no Congresso Nacional, foi de grande importância para a redemocratização nacional, pois pressionou a Constituinte a implementar a eleição direta para o próximo presidente da República, que viria a ser eleito em 1989.

Na década de 1990,  a UNE, junto com a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), os DCEs (Diretório Central dos Estudantes) das universidades, os CAs (Centro Acadêmicos) e os grêmios livres se uniram para lutar contra o esquema de corrupção e foram às ruas pedir o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Os jovens de todo o país pintaram os rostos com as cores do Brasil, caracterizando o  “Fora Collor”. Tal movimento ganhou apoio da mídia e o presidente foi levado a renunciar a seu mandato.

Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a União Nacional dos Estudantes se posicionou contra as privatizações, os privilégios dados ao capital estrangeiro e o descaso com as políticas sociais e com a educação, defendendo um ensino público de qualidade e democrático.

Desde 1999 existem os Circuitos Universitários de Cultura e Arte, os CUCAs, que hoje em dia contam com 10 núcleos espalhados pelo Brasil. Nos últimos anos, as atividades da União Nacional dos Estudantes têm estado, em sua maioria, restritas às causas da educação, como a ocupação da Universidade de São Paulo, em maio. Dentre outras lutas, a UNE reivindica a implantação do passe livre para estudantes nos transportes e repudia a proposta de redução da maioridade penal.

A nova presidente da entidade é a gaúcha Lúcia Stumpf, 25 anos, a quarta mulher a assumir o comando da entidade que já teve participação destacada de muitos nomes da política e da cultura, como o governador José Serra, o jornalista Franklin Martins, o cineasta Vladimir Carvalho, o atual presidente do PC do B de Goiás, Aldo Arantes, o deputado federal Aldo Rebelo e o atual prefeito de Nova Iguaçu, Lindbergh Farias, entre  outros.

Esse extenso caminho de lutas faz com que as marcas e cicatrizes adquiridas no percurso sirvam de orgulho e incentivo para que esta jovem senhora de setenta anos continue lutando por um país mais justo, a começar pela educação.

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Publicado em 21 de agosto de 2007

Publicado em 21 de agosto de 2007

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