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Pós-escravidão brasileira, educação submissa e o cibercidadão
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
Discussão do modelo e da classificação social do tempo presente
Introdução
O maior problema de toda arte é produzir, por aparências, a ilusão de uma realidade mais grandiosa. (Goethe)
Este trabalho se insere no âmbito da História Social, principalmente a brasileira. Tem a pretensão de, através da geração do conceito de sociedade paralela (Schmith, 1990, passim), hoje excluídos sociais (Katz, Bavcar, 2003, passim) dos setores produtivos da sociedade, analisá-la.
Mesmo admitindo que o pesquisador Jean Claude Schmith se sinta limitado quando procura abraçar, em suas análises, a totalidade social que observa, sua leitura sugere um novo olhar que se estenda a objetos que nos causam polêmica no tempo recente, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, onde vivemos momentos de grande frenesi com os movimentos sociais. Um olhar que se justifique naquilo que se chamou, por muito tempo, pelo modismo das correntes marxistas, de parte das franjas (Schmith, 1990, passim) do corpo social oficial.
Não seriam somente franjas, pois os movimentos são por demais autônomos e guardam uma forte dose de identidade independente e claramente comprovável hoje em dia. Seus rebentos chegam a abalar a estabilidade pública de maneira assustadora e aparentemente incontrolável pela forma que se agigantaram e contaminaram diante de olhares paralisados.
Construir sua história não só é perigoso como representa um verdadeiro ato de coragem. Ler sua história representa ler uma história invertida, como sabemos. É tarefa bastante ingrata, porque difícil de aceitar; faz do historiador social um atrevido no seu mundo científico errado ou incoerente! Vai de encontro a correntes oficiais cujas crenças estão alicerçadas em verdades cristalizadas. Sua inflexibilidade pode impedir qualquer audácia científica.
Assim, verificar a problemática do excluído social, do eliminado social no Brasil fluminense dos aproximadamente dois últimos séculos, na chamada pós-escravidão brasileira, em termos de construção das formas de reprodução da ordem, gera no observador mimetizador a necessidade de estudos mais exaustivos, pois suas verdades apreendidas, portanto obtidas por atribuição, se veem definitivamente desafiadas. Questões como as formas de exploração, organização, identidade e dominação em nossa história, sempre foram dignas de um olhar mais atrevido.
Observar sua existência quantitativamente, em número de pessoas, é apenas o primeiro passo para isso. O fato que nos assusta, em se tratando de História Social, é que exigirá de nós sempre muito mais. Um novo olhar se fará sempre necessário!
Há que se verificar a amplitude das injustiças sociais na ordem social que temos e vivenciamos cotidianamente em países de economia periférica, como fomos até aqui. Elas são sempre inerentes ao seu próprio funcionamento.
Apresentar dois planos de realidades sociais, ou socioeconômicas, ou ainda socioculturais, para abordar a problemática do excluído social (Forrester, 1997, passim), torna-se tarefa árdua e espinhosa, mas o primeiro plano é o sociocultural, porque nos afeta em nosso dia-a-dia. O segundo é o socioeconômico (Geremek, 1976, p.34), pelas mesmas razões e também pela necessidade de continuar vivendo.
A exclusão social ocorre quando um indivíduo ou mesmo um grupo, podendo participar de um determinado conjunto de relações de produção, coloca-se na condição de excluído social da e na hierarquia de valores. Pela recusa, afasta-se também do referencial que a ordena, razão pela qual acaba assumindo a condição de excluído social.
O ritual de passagem da condição de cidadão pleno para a de eliminado social, e/ou excluído social é gerado através das contradições oriundas do sistema capitalista. A simples supressão do emprego constitui fator importante para o personagem que apresentamos aqui.
O indivíduo fica desintegrado, condenado à humilhação, em muitas situações. A pessoa passa de acusada a autoacusadora do que a torna vítima. O emergente sem trabalho passa a sofrer mais consequências desastrosas, duramente conhecidas: a exploração capitalista no quadro em que o lucro quase sempre beneficia os detentores do capital.
O poder, outrora visível, torna-se invisível, porque passa a pertencer a um grupo a ser ignorado. Sempre no que tange a escolha, tipificados como ignorados, mas, numerosos em tipologias, seguem sua trajetória inexorável de miséria.
O poder político permanece quase sempre com aparência de quem está fingindo, que trata com a seriedade merecida. Questões como as do trabalho são desprezadas, migalhas lhes são sempre deixadas.
Qualquer interesse sobre esses inúteis, considerados por nós como excluídos e/ou eliminados sociais, deve-se ao fato de ainda serem eleitores. Submetidos a constrangimento, humilhação e/ou vida de aparência, indefesos face aos desafios que suas vidas têm que enfrentar, isolam-se numa espécie de redoma social. Talvez ainda, podemos conjecturar, abrigaram-se em outro corpo social, no qual seus iguais os acompanham. Vivem por definir e redefinir os espaços geográficos ocupados, tanto socioeconômicos, como de poder, sempre se identificando e construindo culturas pouco audíveis. Enfim, acabam por pensar e agir, quase sempre em desalinho ao formal, ou seja, à ordem social. Justificam sua existência em outro mundo social. Ajustam habilidades e qualidades aos novos desafios que se lhes apresentam.
A existência do eliminado social e do excluído social são plausíveis somente dentro de um outro mundo social, que Jean Claude Schmith chamou de sociedade paralela, cujos ingredientes obrigatórios são: o comportamento mais violento comparativamente ao da ordem; discursos e cultura com sinais diferentes; enfim, configuram um corpo que merece um olhar verticalizado, a ser lido urgentemente.
Assim, a pós-escravidão, a educação submissa e a novidadeira cibercidadania reservam, como exigem de nós, sempre olhares mais audaciosos no que tange ao científico. A primeira, obviamente, já cansada de explicações e esclarecimentos, garante o audacioso desafio do desenho mais real de nosso quadro social e sociocultural após os quase quatro séculos de chicote e pelourinho vividos por aqui.
O segundo, a educação submissa, fruto de um calado mas violento preconceito, reitera nossa incapacidade de superação das etapas por que fomos vitimados no passado recente, das quais não conseguimos ainda nos desvencilhar com facilidades claras, pois, como sabemos, não se apagam quatro séculos de História Social vividos com muito sofrimento. Ainda vivemos o descalabro de produzir uma educação submissa, principalmentepara as pessoas oriundas deáreas de favelas, como essa que de maneira contumaz temos pontuado em nossos trabalhos publicados neste site. Parece-nos que a manutenção de tais jogos de faça parte de um histórico projeto de manutenção social que foi sempre acalentado por uma sociedade escravista, a qual não consegue, no mundo moderno, desvencilhar-se de uma espécie de marca, carma herdado,ou o que o valha,do velho processo de colonizador.
O terceiro, a novidadeira sombra da cibercidadania é o impositivo moderno talvez, com o qual nos deparamos no novo mundo da globalização. Ele nos assusta porque não estamos preparados para sua superação eficiente e imediata.
Veja o organograma dos fatos históricos:
I – O corpo:
(...) o corpo pregado ao pelourinho servia também à justiça, e de desculpa a todos os que desejavam humilhar o próximo, obter algum favor ou atestado de bom comportamento. O corpo mutilado, exposto em praça pública, visava suscitar a piedade, mas também servia de apelo à caridade. É necessário lembrar que frequentemente o ‘corpo ferido’, diferente demais, servia para divertir (os anões da corte de Pedro, o Grande). Não esqueçamos também os negros mutilados, os eunucos negros do serralho, que, como espelhos da feiura, não só guardavam as mulheres do harém, mas, devido ao físico repugnante, exaltavam até o limite a imagem sublime, inigualável, do sultão ou do grão-mogo.
Desde a Antiguidade, sob os regimes tirânicos, o corpo sofredor também representou a punição de todos os que não se submetiam ao poder. Nos corpos, o traço das torturas exemplares assinalava a dupla marca do mestre sobre os subalternos, isto é, a posse absoluta do corpo de outrem e de sua vida (Bavcar, 2003, p. 177-178).
Assim, diante do inexorável fenômeno da globalização, passamos a enumerar seus mais avassaladores dilemas. Antes de tudo, podemos inferir que tal processo e impressão envolveram crescente interdependência entre as economias domésticas de perfil antigo, como afirma a professora Hazel Henderson (2003, passim), ou seja, as nações que passaram pelo ‘moderno’ processo de colonização fatalmente continuarão a sofrer do antigo poder colonizador, que de maneira contumaz se alicerçou em países de perfil periférico, como o Brasil, o qual somente se destaca pela sua grandiosidade em termos de possibilidades econômicas, dando a falsa impressão de que possui avanços comparativos aos países do primeiro mundo. Os que o veem assim esquecem ou ficam intencionalmente autistas para a sua composição sociocultural. Multiplicaram-se os corpos socioculturais independentes pelas grandes cidades do planeta. Essa é a grande e imperiosa verdade! A partir daí, ocorreu uma progressiva vulgarização de valores como a sexualidade, por exemplo, e a velocidade de tudo foi estonteante, os tempos mudaram muito de lá para cá. Levando-se em consideração os valores recentes e anteriormente praticados, a vida em certas sociedades ficou depreciada sobremaneira ou se mudaram os valores, gerando formas variadas de novas espertezas bestializadoras no coletivo social. O homem, de líder social inconteste, viu transformar sua autoridade masculina em algo utilizável, principalmente ubiquamente, manipulável, variante para sociedades de formação sociocultural nova e surpreendente, em um jogo desafiador em que o misto de defensibilidade e agressividade promoveu todo um novo mosaico variado de comportabilidade nova e veloz.
Na economia, este fenômeno também surpreendeu sobremaneira, impulsionou as transformações através de duas correntes: a) a tecnologia, que acelerou a inovação da telemática, da computação, das fibras óticas, dos satélites e outros meios de comunicação. Sua convergência com a televisão, multimídia global, as bolsas eletrônicas e a computação por satélites. Foi à explosão global do comércio eletrônico pela e da internet; b) a segunda onda, pelas palavras da Profª Hazel, foi vital para avançar as novas conquistas da humanidade. A desregulamentação, a privatização, a liberalização dos fluxos de capitais, a abertura das economias domésticas, a expansão do comércio global e as políticas de crescimento orientadas para a exportação que se seguiram ao colapso do regime cambial fixo de Bretton Woods, no início dos anos 70 do século passado, época em que a União Soviética e suas economias estatais desintegraram-se. Foi quando se deu a onda de desregulação dos mercados globais, conhecida como Consenso de Washington. Tivemos então o Paradigma do Ocidente, com trabalho dos EUA e o Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros. Suas escolas de economistas acadêmicos e das Índias Orientais, os quais enterraram em colapso na Grande Depressão de 1930 e contribuíram para a explosão da 2ª Guerra Mundial (Henderson, 2003). Cabe bem o dizer da citada professora, a fase que aparentemente superávamos, ou seja, mudava a melodia, mas, a letra dela se repetia. Entretanto, ficava a sombra de um passado como marca forte entre nós.
Narrativas sem conta... de tortura do corpo exercida pelo poder revelam qual é a visão da vida do torturador; o mesmo se diga da marca, poderíamos dizer da tatuagem, que o mestre imprime na pele daquele cujo dever é apenas prolongar os caprichos da vontade do mestre. A frase de Aristóteles: ‘O escravo deve fazer o que pensa o mestre’ significa que o corpo do escravo não passa do reflexo mecânico do pensamento do mestre e substituto do corpo deste último para as tarefas ingratas que ele mesmo não quer executar (Bavcar, 2003, p. 179).
Esta afirmação, guardando-se as devidas proporções, vê também, de maneira contumaz, em vários autores modernos. A professora Hazel Henderson esclarece-nos todo o frenesi que tomou conta das pessoas e instituições na época, podemos ver que a velocidade das mudanças foi de gerar no espectador lateral um estranho comportamento assustadoramente paralisante .
(...) o abismo existente entre a atual globalização econômica e as teorias econômicas dos livros-textos, com umas premissas de mercados eficientes, equilíbrio econômico geral e autores racionais atuando em mercados com informações perfeitas,...operando com impactos negligenciáveis sobre inocentes (...) e o meio ambiente. (...) atraso teórico tem desempenhando papel-chave na justificação do sistema (...) levado milhões de pessoa a ficarem presas à pobreza, causando desemprego, subemprego e perda de meio de vida.
(...) em curso desde a reforma do conceito de PND/PIB para contabilizar o capital natural e humano e subtrair os custos sociais e ambientais até o recálculo dos índices de preços ao consumidor (IPCs) (Henderson, 2003, p. 65).
Podemos dizer que quase tudo que acontecia era como um desafio para a visão humana. Apenas nos restava o poder de percepção, considerando os nossos sentidos, ou então o subterfúgio explicativo do acaso. Que, como nos dizeres do pensador T. Gauthier, “... o acaso é, talvez, o pseudônimo que Deus usa quando não quer assinar sua obra.”.
Quanto à atualidade da coisa pública em termos econômicos, citando K. W. Kapp (1955), E. J. Mishan (1974); K. W. Boulding (1968) e para explicar o revolucionário movimento por que passava a economia mundial, Henderson escreve:
Na atualidade, é imperativo que, por exemplo, as contas nacionais de (...) países e do Sistema de Contas Nacionais das Nações Unidas (SCNNU) incluam o trabalho social não pago (...) a família e a vida comunitária. (...) mudanças recomendadas a partir da 2ª GM por mim, K. W. Kapp (1955), E. J. Mishan (1974); K. W. Boulding (1968) e pela New Economics Foundation (NEF) (...) a SCNNU (...) nos anos 50 depois de ter sido originalmente projetada para maximizar a produção de guerra no Reino Unido durante a 2ª GM. Em 1995, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), produziu uma estimativa de US$ 16 milhões desse trabalho voluntário social não pago, não incluídos no PIB global de 1995, que era de US$ 24 trilhões (Henderson, 2003, p. 66).
E continuava dizendo sobre trabalho não pago e outros, que atribuía a questões laterais que não surtiriam efeitos imediatos, embora não se poderia questionar sua validade, pois o problema maior estava nos países que permaneciam em estado de grande atraso. O problema/solução talvez estivesse na educação, com seus métodos envelhecidos, que somente procuravam alimentar uma prática pedagógica ultrapassada, que de maneira insistente vivificava e priorizava o exercício do poder. Em uma sociedade que ainda vivia impregnada pelos vícios de uma história sociocultural mal resolvida, ou decodificada, sem o saber, entregava-se ao ludibrio de acreditar que construiríamos uma nação do progresso, mas construíamos, mesmo, uma nação condenada ao progresso, cuja grande parte foi feita a fórceps. Nos dizeres de Henderson, podemos entender o processo avassalador da mudança, através da leitura de coisas como trabalho não pago:
(...) Esse trabalho não pago (paternidade, cuidados aos ancião e doentes (...), agricultura para alimentar a família e atender necessidades comunitárias, construir sua própria casa e construção comunitária) é estimado em 50% de toda a produção dos países da OCDE e de 60 a 65% nos países em desenvolvimento (Henderson, 2003, p. 66).
A chamada Revolução Tecnológica foi algo que não se pode negligenciar fácil nem, ao fazê-lo, se poderá ficar impune dos ataques na academia. Os ‘perdoáveis’, diríamos, ironicamente, descalabros por um consequente banimento social (Forrester, 1997, passim).
A crítica dos ambientalistas à UNSNA também (...) alternativas de PIB verde foram propostas, como a IQFV (Índice de Qualidade Física de Vida), de David Morris, o índice de bem-estar econômico, de Herman Daly e John Cobb (...) (Henderson, 2003, p. 67).
Foi um (re)arrumar de ações em meio a graves contrações do corpo da sociedade que se tinha, levando à verdadeira e conturbada exacerbação de um quadro de exclusão social (Forrester, 1997, passim) e também sociocultural em países periféricos como o nosso. Na América Latina, tivemos um quadro bem menor, talvez pelo menor acesso à informação interpaíses. Mas em áreas como a África as notícias eram assustadoras.
II - A sociedade paralela e suas configurações (discussão do modelo e da classificação social do tempo presente)
Inserimo-nos no âmbito da História Social Brasileira que pouco ou nada tem privilegiado aqueles que permaneceram à margem, ou como excluídos dos setores produtivos da sociedade, valendo-nos de cientistas do quilate de Jean Claude Schmith, que admite que o pesquisador sente-se limitado quando procura abraçar, em suas análises, a totalidade social que observa e sugere-nos como um novo olhar, principalmente como necessidade de avançar nas pesquisas que se estendam a objetos que nos causam polêmica no tempo presente.
A problemática do excluído social pode ser vista a partir das formas de reprodução da ordem, como um braço menor dela, como se costuma dizer, talvez por ser mais confortável; seu braço podre é visto como uma forma de mesmice, que afeta mortalmente a lógica conhecida e o raciocínio. Mas sabemos hoje que são importantes os acontecimentos recentes em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, pois são movimentos e ações de um tipo de corpo sociocultural construído na e da favela que mostram suas presenças entre nós.
Por mais audazes que sejamos e parceiros de uma meta-história, ou seja, o exercício de vê-la como oposição a ela mesma, porque pulsante, como algo que tem vida todo o tempo, enfim, tem corpo, ou corpos, se move e afronta a ordem, essa problemática gera a necessidade de estudos constantes.
Impotentes diante do gigantismo da economia globalista, os excluídos sequer conseguem perceber o quadro que se forma em seu entorno. Quase sempre vivem acometidos de uma verdadeira crise de percepção: não veem a exploração capitalista no quadro desvantajoso em que o lucro quase sempre beneficia os detentores do capital. Esta pode ser uma leitura underground, mas é necessária e urgente hoje em dia.
A existência do eliminado social e/ou do excluído social é plausível somente dentro de um outro mundo social, sobre cuja nomenclatura já tivemos oportunidade de falar. São ingredientes obrigatórios dela: o comportamento marcado pela violência, comparativamente ao da ordem; discursos e cultura com sinais diferentes e não totalmente lidos até agora com a propriedade que merecem; enfim, configuram um corpo sobre o qual agora temos que deitar olhares preocupados e merecem uma verticalização científica mais apurada em nossa realidade, ou seja, serem lidos urgentemente em nossa história social.
III - Discussão do modelo: classificação social do tempo presente
A historiografia contemporânea brasileira pouco tem privilegiado aqueles que permaneceram à margem, ou melhor, excluídos dos setores produtivos da sociedade. Jean Claude Schmith e outros, apesar de muita divergência sobre o que dizem, foram audaciosos e merecem pelo menos nossa atenção no que dizem. Sabemos que observar sua existência quantitativamente em números é apenas o primeiro passo, fato que nos assusta, em se tratando de uma História Social pretensamente uniformizadora e padronizadora, como já dissemos. Insistimos que um novo olhar se faz necessário! Há que se verificar a amplitude das injustiças sociais na ordem social mesmo que sendo inerentes ao seu próprio funcionamento.
Bronislaw Geremek apresenta dois planos de realidades sociais para abordar a problemática (Geremek, 1976, p. 34). Estamos convictos delas. Viviane Forrester já nos apresentou o eliminado social (Forrester, 1997, passim). A autora diz que, através das contradições do sistema capitalista, tais tipos sociais surgem. Modernamente, seria dizer que é causado pela supressão do emprego, mas poderíamos admitir que o desemprego por um longo tempo tem constituído e constitui ainda um fator contributivo para o surgimento do personagem citado.
Na nossa defesa do olhar como expressão do corpo, referimo-nos sempre ao olhar redentor de Perseu e sempre nos lembraremos da visão mortal das Górgonas, que, no nosso tempo, se tornaram cada vez mais abstratas e mais perigosas (...) Às vezes o próprio corpo não é mais do que a prótese de uma falsa moral que se recusa a arremessar contra os rochedos os filhos inaptos para a vida, com a radicalidade espartana” (Henderson, 2003, p. 179-180).
Assim, como diz Hazel Henderson, o próprio corpo social da ordem abriga filhos inaptos para a vida, recusando o banimento severo. Talvez por causa de uma doce ilusão de rápida integração, rápido encaixe, mas, pelo muito tempo em que estiveram sofrendo do banimento intencional e, quem sabe maléfico, perverso, não poderá mais ser fácil seu retorno. Quoi faire, então? Será que não ter mais direito a inclusão social é a melhor solução? Devem permanecer no ostracismo? Seria muito cômoda tal atitude. Talvez até conveniente demais. Porém, não se pode desprezar o seu poder de (re)estruturação na clandestinidade, a que passarão a habitar, sendo relegados todos. No mundo de hoje, as surpreendentes e novidadeiras cibercidadanias, que envolve-nos a todos – por razões até e inclusive puramente emocionais, pois a maior novidade é que ela agora se torna mais que uma poderosa arma de combate –, são a concreta comprovação de que as emoções podem ser deslocadas por longas distâncias em tempo real, sem que o corpo concreto saia do lugar. Hoje em dia, tal espaço representa o lugar onde a espantosa velocidade das comunicações aproxima com facilidade a todos, tornando-se um verdadeiro perigo deixá-los ao esquecimento.
Seus mecanismos mais fundamentais são: a fibra ótica, que permite a comunicação por cabo, voz, dados etc.; os scanners óticos, geralmente usados em supermercados, bancos, sistema de computação em linha; o laser, usado em cirurgias, impressoras a laser, fracos lasers para visualizar átomos, propulsão a laser, sistemas de armas, arte com laser; a holografia, que seria desenho assistido por computador (CAD), manufatura assistida por computador (CAM), manufatura integrada por computador (CIM), arte; tecnologias solares por aquecimento e resfriamento solares passivos, conversão da energia térmica solar, hidropônica, acquacultura, torres de energia com refletor solar, conversão fotoquímica (fotossíntese artificial e natural), fotovoltaica, conjunto de células solares para fornecer energia aos satélites, coletores solares, baseados no espaço, velas solares para viagens espaciais; computadores óticos que usam pulsações de luz em vez de impulsos elétricos, computação à velocidade da luz; multiprocessadores, computadores paralelos e redes neurais, que são usados para arquitetura muito rápida, permitindo o processamento simultâneo em vez do sequencial, reconhecimento de voz e da fala, aplicações para linguagem e inteligência artificial (IA); tecnologia de imagem que usa as imagens de TV, telas de cristal liquido, diagnóstico por imagem magnética; biotecnologia com a separação genética, projeto e engenharia molecular, diagnóstico médico, imunologia, cultura de tecidos, clonagem, hibridização de plantas, (re)desenho e biocura; máquinas de genes com as habilidades de automatizar a montagem sintética dos genes; sequenciadores de DNA com leitura rápida do código do DNA das células; marcação e rastreamento de produtos químicos e genes que usam luciferase etc., nanotecnologia com máquinas moleculares para montar, reparar moléculas, de diversas formas (Drexler, 1986, passim), ou seja, fotos pela luz do Sol, nosso astro-rei, que banham a Terra acabam por fornecer, em um gap de dez minutos de tempo, energia suficiente para colocar em órbita nossa população inteira, de bilhões de pessoas. Assim, o olhar científico acabou envolvido por lençóis que desconhecia absolutamente, tudo mudava à sua volta rapidamente e não lhe dava tempo para dimensionar seus novidadeiros impactos.
O olhar considerado como um dos emblemas mais bem reconhecidos da civilização ocidental suscita problemas que me surgiram no curso de minhas pesquisas de estética e fotográfica (Bavcar, 2003, p. 180).
Sabemos que podemos aludir ao fato do prodigioso e visionário protótipo do olhar bidimensional de Ulisses, quando o faz predominar na história da nossa civilização, caracterizando a Modernidade.Então, através do olhar tridimensional de Édipo ou do de Tirésias, temos a visão da real caracterização do que se denominou terceiro olho, que somente pertence aos cegos e/ou aos que aceitam a cegueira como derradeira possibilidade de poder ver as verdades tridimensionais do mundo, que agora ganha cores novas, pois o localismo globalizado só encontra seu ideal com a associação ao globalismo local (Cortezão, 2003, passim). Ele é o que pode ver em três dimensões e pertence ao dom de olhar o mundo. Por confirmar sua extensão no espaço, permite, sempre que usado, chegar aoponto zero, o qual é sempre renovado (Bavcar, 2003, p. 181). É então necessário ir além, talvez chegar a um ponto mais vertical das variadas socioculturas surgentes/insurgentes, para ter um pensar mais claro sobre o todo que se quer apreender aqui.
A professora-pesquisadora Henderson diz que
a arqueologia do olhar nos permite também compreender a ideia do corpo como espelho partido da história, mesmo fazendo abstrações da visão física. O corpo não arranca os olhos apenas para dizer sua alma, mas também para olhar para trás, para as trevas do olvido, lá onde as figuras míticas sacrificadas começavam a aprendizagem do olhar humano. O corpo torna-se assim, ao mesmo tempo, o espelho e aquele que observa, a visão e seu reflexo, isto é, o Eu sabendo-se visto, tanto como o Eu não se sabendo visto, que procedem da mesma experiência do olhar corporal (Henderson, 2003, p. 181).
E conclui:
É por isso que, de acordo com Merleau-Ponty, tenho de considerar o corpo como ‘totalidade aberta’ e o ponto zero do espaço. Muitas vezes é fácil dizer que, se alguém perde um sentido como o ouvido e a vista, os outros sentidos se fortalecem, sem se considerar que o que importa é o coordenador supremo, isto é, o cérebro, que tenta encontrar substitutos para a percepção física deficiente. Não é preciso dizer que essa sobrevida dos sentidos não seria possível sem a complexidade do corpo. O substituto material de nossa espiritualidade torna-se assim a muralha contra todos os assaltos que nos ameaçam, e a linha de defesa mais eficaz contra a destruição do corpo e sua desaparição. De maneira mais simples, pode-se dizer que nosso corpo, nos seus infinitos refúgios, pode abrigar o sentido que falta... o exílio da vista (Henderson, 2003, p. 181).
Ora ora, sabemos que, se vivemos pelo nosso corpo e na obscuridade do mesmo momento vivido, passaríamos da agora simples condição humana para a própria utopia concreta que seria a do corpo. Sabemos que é opondo nosso corpo às variadas agressões sempre exteriores que podemos defender a consciência de sermos. A professora Hendersonensina que a desaparição do corpo, fenômeno ocorrido no século XX, parecia muito mais grave do que suspeitar de sua existência em seu substrato material que se tornava cinza, como afirmava Giuseppe Fiorelli. Não se pode negligenciar que os deficientes representam quase sempre a parte doente da história, algo ainda não visto com a propriedade que merece. Geralmente tratados como uma espécie de Terceiro Mundo no Primeiro, o que corrobora nossa opinião, de introjecção também maldita,ou no Segundo Mundo, ou, quem sabe, um Quarto Mundo em nossos países ditos civilizados e industrializados (Bavcar, 2003, p. 183).
Sabemos que é indispensável rever seus problemas do corpo no contexto histórico, como quer Bavcar. Talvez tentar chamar os oprimidos pelos seus verdadeiros nomes, pois eles certamente os têm! Como ele afirma:
Se ousamos dizer ‘inválidos da guerra’, por que não deveríamos usar expressões como ‘inválidos do progresso’ ou ‘inválidos da industrialização, da alimentação’, em vez de ‘vítimas da fome’? (Bavcar, 2003, p. 183).
O indivíduo fica se sentindo desintegrado da vida social coletiva da ordem, condenado à humilhação, e, em muitas situações, passa a ser acusado e também a se acusar daquilo de que é vítima, incompetente. Os indivíduos julgam-se com o olhar daqueles que os julgam. Culpam-se, na maioria das vezes. Os emergentes sem trabalho passam a sofrer mais duramente as consequências da já conhecida exploração capitalista, num quadro às vezes bastante desvantajoso. Sentem-se, assim, impotentes diante do gigantismo de uma economia que tem iniciado seus passos no sentido da globalização, sem sequer conseguir perceber o quadro que se forma em seu possível destino. Porém, são numerosos em tipologias de pessoas ligadas ao quadro da economia capitalista de ponta, seguem sua trajetória inexorável de miséria, talvez até à comiseração.
Nesse quadro, o poder político permanece com aparência de quem trata com a seriedade merecida a questão do trabalho, o que supomos ser uma farsa, pois tudo apenas alimenta um quadro, nem sempre muito justo, de perde e ganha, o qual faz parte tanto da sistemática, quanto da sistemântica do capitalismo. Esse quadro esboça o resultado caótico do sempre desnivelado quadro sociocapitalista (perdoe nosso neologismo), principalmente em países do Terceiro Mundo e até mesmo nos considerados em desenvolvimento.
Assim sendo, por constrangimento, humilhação e/ou aparência, indefesos diante dos desafios que tem que enfrentar, definem e redefinem, em um continuum movimentar, seus espaços geográficos, sociais e de poder. E acabam por pensar e se comportar em desalinho ao formal, justificando sua existência em um outro mundo social, no qual passam a se enquadrar mais perfeitamente. Ajustam suas habilidades e qualidades aos novos desafios que se lhes apresentam na talvez nova vida. Passam a construir uma identidade sociocultural diferente.
III - Do excluído ao eliminado social: a cibercidadania e a educação submissa e seus componentes
Geremek levanta a hipótese de que nem toda marginalidade pode ser considerada vil, já que existiriam algumas positivas. No caso brasileiro, por exemplo, os vínculos de dependência entre a população oriunda da escravidão, fossem eles libertos ou mesmo ainda na condição submissa de escravos, eram muito fortes e geravam ligações perigosas tanto para dominadores como para dominados. No Segundo Reinado, o declínio paulatino da escravidão garantiu novas formas de relações que, como é sabido, lembravam as antigas. Os escravos ao ganho mantinham acentuada dependência no interior do espaço urbano, formando um corpo vivo. O mesmo ocorria com o liberto da escravidão e até com o brasileiro livre eventualmente na condição de exclusão social.
Michelle Perrot fala de uma camada de pessoas excluídas socialmente pela tragédia do analfabetismo. As formas de tratamento que a sociedade lhes impõe, negando a palavra, não promovem a sua destruição. Um outro elemento do elenco de ingredientes do excluído social é a vergonha social (Perrot, 1991, p. 238). Tais pessoas acabavam vivendo sempre em grupos, constituindo os denominados bandos de companheiros (idem, p. 315).
Maria Helena P. T. Machado, observando a pós-escravidão, defende a existência de uma camada de trabalhadores informais e flutuantes na cidade de São Paulo entre 1890 e 1914. Registra que o aumento demográfico e o desenvolvimento econômico possibilitaram o aparecimento de tais tipos de trabalhadores casuais, apresentando, como consequência, “o inchaço do setor informal da economia, o crescimento desmesurado de formas múltiplas de trabalho temporário, do subemprego e do emprego flutuante” (Machado, 1984, p. II).
Ela afirma ainda que esse grupo, em sua luta diária para sobreviver/viver, desenvolvia uma ‘experiência cumulativa de improvisação’, que o fazia mudar ‘quotidianamente de ofício’ (idem, p. 111). Sua abordagem privilegia a São Paulo num período imediatamente posterior ao que nós nos preocupamos em observar: desde 1890 até 1914.
Thomas H. Holloway, em Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX (Schmith, 2003, p. 266), trata da relação polícia versus resistência à repressão e apresenta quadros estatísticos em que são claros os volumes imensos de prisões efetuadas. Entretanto, não se preocupa em verificar os mesmos dados numa tabela mais sequencial, em que os intervalos de tempo para o período são menores. Hollowaynão trata da corporificação grupista, sua identidade, seus dialetos, suas formas de comportamento etc., que poderiam desenhar melhor o corpo social. Apenas observa a instituição policial e seus problemas. Em nossa pesquisa, investigamos com uma lente ampliadora dos problemas ditos menores e ocultos em suas ações e relações de corpo, porquanto isso nos ajuda a conhecer melhor o excluído, o abandonado, que chamam marginal (Holloway, 1997, passim).
Quando trata das fronteiras internas da marginalidade, Jean Claude Schmith considera que seus espaços são fragmentados, mas duvidamos que sejam totalmente assim. Ele afirma que não há economia de mercado eficiente e unificadora de todo o universo conhecido. A economia existente, embora pulverizada, consegue afrontar a ordem e, em certas situações, acaba por dominar o meio social em que se instala. Demonstra que as direções apontadas revelam vários espaços justapostos e imbricados, porque as pessoas que habitam os grupos da sociedade paralela atuam pelo seu livre arbítrio, avançando e/ou recuando sucessivamente ao sabor da extensão de suas culturas (Schmith, 2003, p. 268).
Muitos caíram na condição de excluídos inicialmente pela prática de situações derivadas de uma nova condição assumida, como a mendicância, a vagabundagem e a criminalidade, com seus espíritos atormentados, provocando todo um conjunto de comportamentos defensivos e também de rejeição por parte da sociedade tradicional, desde o período da abolição. Talvez máculas como mágoas derivadas por constrangimentos sofridos no passado possam explicá-los melhor. Mas não temos dúvida de que, no mínimo, é por demais complexa a composição sociocultural do ser humano. É nesse quadro que se insere nossa observação. Aqui, nossa preocupação é verificar a inabilidade dos responsáveis pela elaboração das leis para ler as ações, a organização e os movimentos da ditamarginalidade, que chamamos por adoção de sociedade paralela, composta por aqueles que formam o manancial de pessoas habitantes do espaço da exclusão social. Constituíam um mundo social extralegal (De Sotto, 2000, passim)? Ou a extralegalidade era uma forma de exclusão social?
A sociedade paralela seria aquela ordenada diferencialmente da que vive sob a égide da lei? Configuravam-se num anverso da ordem? Era uma sociedade que, segundo Jean Claude Schmith, à luz do verdadeiro discurso dos dominantes, “se define negativamente, (...) gente sem senhor, inútil ao mundo” (Schmith, 2003, p. 263). Essa gente que, ao simples exame do espaço da marginalidade, se revela corporificada em um tecido social avesso e autônomo, mas ao mesmo tempo também paralelo, construtor de uma teia de relações novas, surpreendentes e igualmente configurando-se como um corpo de cultura autônomo (Katz, 2003, p. 197) e praticamente impenetrável. Trata-se do denominado marginal, que afirmamos pertencer a uma verdadeira sociedade paralela (Silva, 1996). Agora se revela consciente e contestatório, com formas variadas de comportamento. Trata-se do velho marginal, sempre marcado por um sentido de exclusão social das regras e violento nos atos, em que, tomado de consciência, cultura e também de palavreados próprios, verbalizados diferencialmente dos da ordem, ganhou, como podemos constatar, categoria distinta e nova, que precisa ser decodificada.
A palavra marginal é aqui empregada em função do espaço de complexidade existente na sociedade, talvez um vazio, quase sempre de definição difícil, principalmente no momento em que o indivíduo se encontra preso a uma suposta situação de convívio não claro aos olhos da ordem, organizado ou, aparentemente, segundo ela, desorganizado.
O seu universo se configura como um mundo diferente, que se justifica pela visão paradigmática de um mundo ordenado e regido por normas que determinam atitudes e comportamentos característicos dos seus grupos sociais.
Quando as determinações e exigências estabelecidas não atendem mais às expectativas de uma sociedade como um todo, a tendência é haver rompimento das estruturas sustentadoras do grupo social no qual se está incluído. Um exemplo é o paulatino avanço das práticas capitalistas sobre as escravistas no Brasil, um movimento que se notabilizou por inviabilizar e superar um modo de vida social existente. É que, ao longo do Segundo Reinado, muitas atividades antes oriundas da escravidão vagarosamente começaram a perder a razão de ser frente ao novo modelo de produção que se estabelecia.
Embora lento, o reordenamento de profissões com seus ocupantes, acompanhado de seu reajustamento, deu-se ao longo das novas exigências da vida econômica. Grandes quantidades de pessoas foram excluídas, relegadas a trabalhos eventuais no cotidiano da nossa sociedade, aqui na capital Rio de Janeiro, e outras tantas ficaram sem ocupação na economia formal que se construía. Uns de vida considerada miserável, ou desconhecida, como excluídos sociais, outros apenas miseráveis, somente. Nesse contingente encontravam-se escravos, libertos, livres, tanto nacionais, quanto estrangeiros.
Sabemos que, com a evolução da humanidade e seu crescimento em nível tecnológico, cultural e moral, sempre surgiram necessidades cada vez mais difíceis de serem atendidas, pois é patente que toda a produção de bens, tanto materiais quanto culturais, dificilmente esteve disponível para toda sociedade em seu sentido corporal.
O capitalismo sempre foi excludente! Como foi sempre e ainda é, apenas uma pequena parcela da sociedade se beneficia desses bens. A grande maioria caminha a passos largos para uma existência dentro do jogo de exclusão/inclusão, eventualmente, como se fosse parte de um jogo próprio do sistema, pois, como algo vivo, dinâmico e/ou sistemântico, acaba por ficar inexorável não conceber tal ideia. Mas composto de lados distintos e identificáveis.
Pensar esta situação ao nível da cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, em específico na vida marginal, em que havia maior concentração cultural e populacional, sempre de caráter popular, leva-nos a considerar que uma enorme parcela de seus habitantes não tinha acesso às vantagens econômicas e educacionais. Tal fato contribuía para uma crescente dificuldade na apropriação de bens culturais produzidos pela própria cidade.
Uma vez que o aconchego das letras lhes era negado por várias razões, que possibilidades teriam essas pessoas, ou mesmo seus grupos sociais, de avançarem na leitura de suas vidas e do mundo que as cercava (Silva, 1987, p. 43)? Que novos espaços lhes eram reservados e a partir de que condições?
Essas populações empobrecidas, sobrevivendo na mais absoluta miséria, buscavam uma saída nos espaços alternativos da subvida que a cidade oferecia, quando oferecia. Mas não viveriam assim por muito tempo! Nesses ambientes se auto-organizavam, criando formas de convivência semelhantes a bandos.
Entendê-los nessa complexidade, na elaboração do trabalho de doutoramento que apresentamos na USP em 1996, foi a nossa proposta inicial. Na ocasião, começamos pelo entendimento de toda a chamada, na época, parte maldita da sociedade imperial.
A dita marginalidade carioca, população que vivia de forma que poderíamos classificar de underground, alicerçava-se em uma tríade. Umas especiais tríades causais, cujo primeiro elemento era a violação. O segundo era a violência; o terceiro, a condição de excluído em que o liberto se encontrava após a abolição da escravidão.
Enquanto fenômeno sociopolítico, a marginalidade ocorre quando um determinado papel social é considerado, pelo grupo dominante, como dispensável e indesejável ao status social, mas vive e/ou sobrevive à margem, ou ainda na exclusão social. Por quanto tempo resiste assim? Ora, não há vida vivida plenamente nessas condições! E as provas são muitas. Talvez haja uma forma de subvida, mas, também, não por muito tempo! O que nos causa surpresa é que muitos deles continuam existindo por um tempo que desafia a mais generosa previsibilidade. Não fariam parte de um outro mundo identitário social ainda não decodificado totalmente? Como poderiam resistir tanto nessas condições? São pessoas que habitam um espaço social que precisa de urgente leitura! Configuram um corpo social que possui luz própria, ou seja, identidade, cultura, etc.! O que fazem no seu dia-a-dia? Vivem de migalhas, sobras da sociedade formal o tempo todo! Como se relacionam? Não possuiriam, pelo absoluto descrédito da ordem social, uma outra forma de se relacionar? São ou não, efetivamente, um corpo sociocultural autônomo (Katz, 2003, passim), de ligações estranhas, que pelo desprezo da ordem não avaliam sua dimensão de atuação?
Sabemos que, nessas circunstâncias, o exercício da autoridade, o espaço social e as possibilidades de aquisição de bens simbólicos institucionalizados, tornam-se restritos pelos mecanismos de controle social.
Em consequência, o agente ou componente marginal objetiva sua participação em espaços sociais alternativos, sociedade paralela, corpos autônomos (Schmith, 2003, passim; Katz e Bavcar, 2003, passim), num diálogo de confrontos e acordos, aos nossos olhos sempre informais ou formais, considerando seus mundos, sua ótica e ordem, sempre dinamizados por dispositivos de reação e resistências no interior da sociedade da ordem. Possuem, sim, identidade de outro corpo social, já que, excluídos da ordem social, habitam um outro universo: os dos não-cidadãos da ordem, confundidos com os miseráveis.
Segundo o professor Petrus Maria Vlasman, o conceito de marginal não parte de análises quantitativas. Não se refere ao contexto sócio-econômico-cultural em que a maioria de um determinado povo vive, mas a um conceito ideológico de normalidade (referente à norma) definido por classes hegemônicas de formadores de opinião. Eles estabelecem o nível esperado em termos de qualidade de vida, extraído dos parâmetros de sua própria vida. Vlasman registra ainda que o mesmo processo de conceituação acontece com o vocábulo desenvolvimento, definido a partir dos padrões daqueles que se consideram desenvolvidos.
O autor observa ainda que a marginalidade é vista como uma situação-problema de indivíduos e pode ser resumida na expressão “pobreza, com suas sequelas lógicas de ignorância, apatia, doença, baixa renda, desemprego ou subemprego etc.” (Vlasman, 1993; Azevedo, 1940).
Assim sendo, marginal é todo aquele que desobedece às normas de uma sociedade pela qual termina sendo abandonado e daí insere-se na condição de excluído; de outro modo, como quer Jean Claude Schmith, porque não se enquadra nas regras determinadas pelo grupo hegemônico. Acreditamos que temos toda razão em classificá-lo assim.
Todavia, a marginalidade passa a ser uma situação-problema de indivíduos que nem sempre se encontram reduzidos à condição de pobreza. Ela se identifica basicamente com aqueles indivíduos que não cumprem as normas da sociedade eventualmente por já não adotá-las como suas, absolutamente identitárias. Portanto, nem todo pobre é marginal e nem todo marginal é pobre!
O escravo e o ex-escravo, mesmo sendo mercadoria, ou seja, motivo de mercadejar a vida humana, à luz da lei da época focada aqui, colocavam-se em condição marginal quando burlavam as normas de conduta estipuladas pela sociedade da ordem.
Na década de 1970, Anibal Quijano, em seu trabalho Dependência, cambio social y urbanización en América Latina, refletiu sobre a questão ao tentar explicar o processo de urbanização nos países latino-americanos. Para ele, a marginalidade é “uma forma particular de integração dos indivíduos numa estrutura mais ampla” (Quijano, 1978). Talvez seja um outro corpo que habita o espaço do paralelo, segundo Schmith, ou corpos autônomos mesmo, conforme Katz e Bavcar, o que o primeiro autor não viu. Não se trata de uma situação de mera exclusão na sociedade, mas de um modo específico de integração, algo inerente ao sistema.
Quijano se depara com dificuldades novas e gigantescas ao definir a forma de participação do marginal na sociedade. Assim, podemos inferir que o fato de ele não admitir a existência de um outro corpo social paralelo a que consideramos sociedade da ordem impediu-o de tocar verdadeiramente o problema em suas mais profundas entranhas. A questão é de identificação clara e lógica, e ele não se atreve a verificá-la com esse olhar. Prende-se à ordem formalmente e a seus pilares conceituais; enfim, segue a regra! Para ele, vale o que está escrito, como disse um famoso contraventor falecido do Rio de Janeiro.
Lúcio Kowarick, mais audacioso, postula que uma maneira não básica de participação pressupõe a existência de outra básica, diremos identitárias Assim, é atribuída a Quijano uma posição conhecida como neodualismo. Trata-se de uma nova configuração do conhecido dualismo, já que nos incute a ideia de pólos opostos, como o marginal e o não marginal.
Kowarick acredita ser esta “uma forma maniqueísta de dimensionar a questão, como sugerem os antigos argumentos entre a rigidez do bem e do mal” (Kovarick, 1975). Não se pode negar que a noção de participação ganha certo número de elementos à medida que deixa de ter autonomia e se isola do conjunto das relações sociais, articulando-se com uma abordagem que observa as formas de inserção dos indivíduos na sociedade da ordem como um todo, mas as discussões sobre o tema não param aí.
Luís Pereira, outro estudioso da questão, envolve os tipos de participação ligados à prática do marginalismo, revelando que há a tendência a excluir as pessoas não preparadas do sistema capitalista, principalmente nas formações sociais que geralmente habitam a periferia dos centros urbanos. São pessoas que sobrevivem à margem da vida urbana legalmente constituída.
Investigando o período referente ao Segundo Reinado, podemos notar que o Brasil passava por uma transição do regime de trabalho escravista para outro marcado pelo processo de assalariamento pleno, ou seja, o capitalista (Pereira, 1971; Alencastro, 1988).
Durante essa passagem, as regras de comportamento social acabaram por sofrer profundas mudanças. Foi extinto o banimento do meio social sofrido pelo escravo, mas sua participação nas formações sociais tradicionais gerou um processo de participação que chamamos de participação-exclusão.
Esse conceito é o mais próximo do nosso entendimento, porquanto se supõe que a sociedade urbana determine sempre esse fenômeno, principalmente no quadro das formações capitalistas, pré-capitalistas, ou até mesmo do capitalismo tardio.
Marialice M. Foracchi acredita na veracidade das ideias apresentadas por Luis Pereira (Foracchi, mimeo). Aproveita-as, avança e chega a superar algumas limitações do autor. Dele, incorpora a categoria da dominação, como determinadora das investigações sobre a marginalidade. Associa ainda a noção de participação-exclusão ao universo das representações simbólicas, justamente entendidas como internalização das condições objetivas. Esta é a forma de articular o vínculo entre a estrutura de dominação e a situação marginal. Tal vínculo pode ser reconstituído através dos discursos dos próprios agentes ou, em alguns casos, por meio dos relatos de terceiros.
Expressas na exclusão dos agentes, as contradições objetivas surgem como um tipo de participação específica enquanto excluído, cujo sentido real não é captado pelos agentes mas que não lhes passa totalmente despercebido. Queremos dizer com isso que o excluído se coloca fora do processo de desenvolvimento social ou faz parte de um corpo social e, ao mesmo tempo, participa de outro, da ordem, mesmo negando esse tipo de atuação.
A verdade é que este comportamento também se constitui em uma forma de participação. Ao se portar assim, o marginal acaba optando por uma alternativa de vida com regras próprias e novas, havendo mesmo entre ele e outros marginais uma maneira igualmente nova de disputar e ocupar espaços, até mesmo espaços físicos e geográficos, como favelas, no interior dos centros urbanos, por razões variadas. Tal verificação é importante porque trata do universo de interesse presente na cultura deles e é verdadeiramente elemento de identificação.
A violação daí oriunda é uma questão relativa ao fenômeno da territorialidade, da disputa pela ocupação do espaço urbano entre habitantes do mesmo ambiente. Eles possuem vasos comunicantes entre si e se relacionam em um ir e vir interminável, constante. Tudo garante sua dinâmica no transcontato.
Assim, podemos explicar fenômenos como a comportabilidade dos capoeiras e dos chamados turbulentos na fase imperial brasileira e até dos “bons” dos hábitats que verificamos no alvorecer da República no Brasil do século XIX para o XX.
Certamente, negar as regras é uma forma contraculturalista de participar. Por essa ótica, o universo sociocultural paralelo acaba sendo o exemplo da sociedade alternativa pela negação e se transformando em um corpo autônomo sociocultural. Mas não se vê assim. Ela, na verdade, é uma outra forma de vida sociocultural.
Maria Célia P. M. Paoli desenvolveu um ponto de vista semelhante ao que propomos aqui, porém restrito à contemporaneidade (Paoli, 1974). Podemos notar que não há qualquer incursão da autora no tempo histórico de que nos ocupamos.
Segundo ela, a participação-exclusão designa a condição que os grupos ditos marginais possuem em relação à produção capitalista periférica e à estrutura de distribuição dada, revelada simbolicamente na produção de um modus vivendi específico, marcado pela condição de excluído.
Ora, sabe-se que essa condição gera um tipo especial de participação. Assim, o comportamento do marginal em sua sociedade, a da ordem, será sempre alternativo ao oficial, embora de escolha infeliz, miserável, ou mesmo ausente das chamadas opções de vida. Qualquer que seja o comportamento daquele componente em seu ambiente, estará sempre nas proximidades da ilicitude, se não praticando a ilegalidade e, assim, constantemente expurgado por ela.
É inegável a discussão existente sobre a questão causal da acumulação capitalista. Ela reúne e combina formas desiguais de produção e, consequentemente, relações diferenciadas de produção, o que é indiscutível e óbvio. Esse é o ponto que Lúcio Kowarick e outros defendem; entretanto, a questão não termina por aí. No quadro da marginalidade, há variações que são motivos de preocupação. Não se trata somente da questão apresentada, não obstante seja ela a que mais aflora no âmbito das formações sociais.
Sem dúvida, é correto esse ponto de vista (Kowarick, 1975; Cardoso, 1972). Contudo, aprofundando as observações, verificamos outros aspectos igualmente relevantes. Um deles é a característica de negação no comportamento do marginal, que acaba promovendo uma forma de sociedade diferenciada da convencional.
Denominamos esse conjunto de comportamentos sociedade paralela, que possui regras específicas. Um tipo variante de poder e tal situação-problema passam a conviver como paralelos à vida da cidade institucional. Ambas se comunicam, quando os setores de repressão ou de correção – nem sempre de educação –, tentam reintegrá-la ou incluí-la, devolvê-la ao seio da vida que se acredita correta, ordeira, legal e não da extralegalidade. Enfim, a Sociedade Paralela tem corpos socioculturais autônomos ou simplesmente corpo do diferente por uma ótica diferente da oficial.
Trata-se de uma comunicação muitas vezes geradora de choques e até conflitos, pela incoerência dos métodos usados e porque penetra no universo cultural que os identifica, com fins de destruição, quase sempre desconhecida do grupo que o invade, não raro provocando divergências bastantes polêmicas. O contato entre a polícia e o marginal quase sempre se caracteriza pela violação de alguma norma. A presença da polícia é gerada e provada pela imposição do poder da ordem, através da violência das armas e ausência de algo que configure diálogo. Daí a impenetrabilidade de universos compactos de ambos os lados. Isso suscita certo tipo de respeito, traduzido pela prudência no trato ou respeitabilidade que faz parte, que já está incorporada à prática de ambos.
Tal retrato está na forma policial surgida no Brasil durante a segunda metade do século XIX; é conhecida como polícia científica. A exemplo da escola europeia, identificava no crime certa inteligentzia definidora e corpórea, que precisaria ser entendida para ser combatida com eficácia. Traduz uma forma de respeito pela totalidade plural que constituía.
Nesse quadro, não se tratava de mais um simples arruaceiro, vagabundo, ou apenas fora-da-lei que vivia uma vida inteira pendurado em margens como meros restos ou resquícios da ordem, um marginal que se observa. Está patente que se convencia da real “vida” que tinha e ostentava. No mundo do crime, no universo corpóreo do crime, ele tem outras qualificações que o tornam aprimorado e também aprimorador na prática criminosa.
No tocante à relação do marginal com o crime, considerado marginal por uma leitura feita apressadamente, podemos dizer que se trata da condição do agente ser veículo do ato criminoso. Nesse sentido, o crime praticado confere a seu autor a condição que ostenta, ou seja, um justifica o outro.
Nessa relação, evidencia-se a necessidade de verificar a condição do poder. Um poder que, aos olhos dos considerados criminosos, é percebido como algo cristalizado. Para eles, é difícil avaliar que a potência oposta que representam no crime, segundo a cultura convencional, se mantém através de uma capacidade de autoalimentador, que explica o mecanismo de reforço, isto é, a “necessidade de se justificar sempre com mais um crime” (Hobsbawn, 1976, p. 128).
Há um componente em tudo isso que não se pode deixar de registrar: é a urgência em se manter poderoso, o que tanto pode ser feito através da inteligência como, mais frequentemente, através da força física. O fato de planejar é sempre um sinal de grande liderança. Criar a estratégia e também a tática de ação no corpo confere liderança. Na hierarquia, fica reservada para outros a tarefa da execução. Surge então uma escala de valores que é garantida pela liderança e pelas forças estratégicas concentradoras e distribuidoras.
Lúcio Kowarick também estuda esse tema. Afirma que os grupos ou corpos marginais são conceituados a partir das exigências de acumulação do capital, o que é uma forma de mimética peculiar de inserção na divisão social do trabalho.
Por esse ângulo, o estudo de Karl Marx Exército Industrial de Reserva, ao olhar os dissonantes conflitos socioeconômicos da Revolução Industrial Inglesa do século XVII/XVIII, procura mostrar que a dita marginalidade nasce de contradições básicas e essenciais. Não se trata apenas de desajustes entre as partes constituídas da sociedade. Tal posição não é descartável.
Entretanto, há aspectos que devem ser observados além dos que são mencionados, pois trata de uma sociedade industrial, que não é o caso aqui. É bom que não esqueçamos de que nossa sociedade viveu quase quatro séculos de chicote e pelourinho, em umregime, no mínimo, pré-capitalista ou escravista, em que a vida humana era mercadejada livremente. Um regime que desconhecia, ou pelo menos desprezava, a possibilidade de haver escravos com condição de formar sociedade e cultura independentes, relacionarem-se. Enfim, de formar um mundo sócio-econômico-religioso e cultural independente. Por isso, os resultados são inesperados até hoje.
Fernando Henrique Cardoso apresenta a questão da participação a partir de uma análise crítica das conotações da ideia de participação enquanto consenso, realocando a questão num contexto de dominação. Tal posição já se apresenta mais próxima da argumentação aqui veiculada. Coloca os marginais como beneficiados de parte dos frutos da sociedade, embora sob um modelo de vida distinto.
Não se está vendo um tipo de participação engajada na concepção de um Estado oposto ao de marginalidade, aparentemente impossível do ponto de vista das contradições do sistema capitalista, mas respondendo às variáveis sociais oferecidas pelo considerado comportamento marginal, que se situam fora da norma.
Nesse caso, acredita-se haver um Estado oposto ao da sociedade tradicional, ou seja, da ordem, no que tange a comportamentos. Afirma ainda Cardoso: para que a ideia de participação não se limite a uma vaga afirmação valorativa, deve indicar que grupos, ou setores, ou ainda corpos, ou mesmo classes são capazes, em um dado momento, de mobilizar e organizar os espaços socialmente dominados para que estes tratem de obter seus objetivos sociais (Cardoso, 1972, p. 84). Mas o que fazer se esses objetivos sociais forem não identitários com os da ordem?
Manoel Berlinck parte de outro pressuposto: “o de que não existe marginalidade, mas sim pobreza, engendrada e mantida pelo sistema econômico” (Berlinck, 1977, p. 11). Ao tentar demonstrar a inexistência empírica da marginalidade social, o autor buscou identificar algumas organizações sociais concretas que permitiam a sobrevivência e adaptação do setor marginal, demonstrando que tais entidades não são qualitativamente diferentes das existentes no setor integrado da sociedade paulista. Contudo, trata-se de um caso alheio à cidade do Rio de Janeiro, embora do mesmo país e na época pesquisada.
Sabemos da existência dos ‘vasos comunicantes’ entre esses supostos dois mundos. Eles não se distinguem estruturalmente, mas sim na sua dinâmica, como acabamos de verificar.
Além disso, analisamos a questão por outros aspectos, observando inclusive o complexo quadro do conjunto de componentes da marginalidade que habita o ambiente, no caso dos excluídos socioeconômicos. Berlinck não deixa de ter suas razões quando apresenta causas econômicas para a pobreza, pois elas de fato existem. Porém, elas se constituem num caminho para a marginalidade até a condição de excluído social? Temos dúvidas. Sabe-se que não são as únicas responsáveis, absolutas e diretas, pelo surgimento da exclusão e do crime em seu universo. Talvez o sejam por trazerem o problema para a superfície do tecido social, tornando-o emergente e, portanto, clamarem providências urgentes e decisivas dos que ocupam o poder na ordem.
Conclusão
Sabemos que o tema não se esgotou. Sabemos que conceitos como marginalidade são ainda muito incipientes para abordar o gigantismo que nos apresentam os tempos modernos; por isso optamos definitivamente por excluído social, ou banido social, como já tivemos oportunidade de mencionar.
O certo é que esta discussão carece e carecerá sempre de um atrevimento maior, de um comportamento mais audacioso da academia. Talvez o medo que ronda todos os setores da ordem, diante de tamanha existência, ainda não totalmente definida, cause espanto. Pois, convenhamos, admitir a existência de algo assim é permitir o toque da meta-história em todos nós.
Acreditamos haver nos grupos de excluídos sociais um Estado oposto e tambémparalelo ao da ordem tradicional, principalmente no que tange a comportamentos. A ideia de participação não se limita a uma vaga afirmação, apenas valorativa; deve indicar que grupos, setores, corpos socioculturais autônomos, ou mesmo ‘classes’ são capazes de mobilizar e organizar os espaços socialmente dominados. Sempre para que estes tratem de obter seus objetivos sociais.
Os estudiosos que consideram o exército industrial de reserva, de Karl Marx, ao olhar os dissonantes conflitos socioeconômicos da Revolução Industrial Inglesa do século XVII/XVIII, como já tivemos oportunidade de fazer alusão no que chamamos de ordem social daquele tempo, podem verificar que o custo de reprodução da força de trabalho exterioriza que foram questões de maior relevância.
Acredita-se haver realmente um Estado oposto ao da sociedade tradicional, ou da ordem, no que tange a comportamentos, os quais denominamos Estado paralelo, e/oucorpos socioculturais autônomos como querem a professora Helena Katz e Evgen Bavcar, uma configuração de uma verdadeira sociedade paralela, que é capaz, num dado momento, de mobilizar e organizar os espaços socialmente dominados com eficiência que hoje vemos se manifestar. Para que estes tratem de obter seus objetivos sociais, políticos, econômicos, como têm demonstrado recentemente, somente contando com a ausência do Estado formal da ordem.
Não se trata de simples arruaceiros, vagabundos, como foram chamados pelas pessoas de suas épocas (no Império), ou apenas foras-da-lei, como já poderia antever a declarada mimese feita aqui, que viviam uma vida inteira como que pendurados em margens,como meros restos, ou resquícios da ordem, não eram marginais que se observavam. Está patente que se convenciam da real vida que tinham e a ostentavam. No mundo do crime, então, no universo corpóreo do crime, eles têm outras qualificações que os tornam aprimorados e aprimoradores (perdoe o neologismo) na prática criminosa.
Há formas hierárquicas de potência em seus atos, assim como nos ditos grupos de marginais, ou marginalizados, que consideramos excluídos sociais, novamente identitários de forma não prevista pela ordem.
É inegável a discussão existente sobre a questão causal da acumulação capitalista que os considera capital sobrante. Ela reúne e combina formas desiguais de produção e, consequentemente, relações diferenciadas de produção, o que é indiscutivelmente óbvio. Defendendo este ponto, verifica-se que a questão não termina por aí. Dentro do quadro da marginalidade, há variações que são motivos de preocupação. Não se trata somente da questão apresentada, não obstante seja ela a que mais aflora no âmbito das formações sociais.
A violação oriunda dela era uma questão relativa ao fenômeno da territorialidade, que seria a disputa pela ocupação do espaço urbano entre habitantes do convívio desse mesmo meio ambiente. Assim, podemos concluir que a sociedade paralela e/ou corpos socioculturais autônomos constituiu, como constitui, um novo olhar na construção da história social no Rio de Janeiro, pelo menos.
A pós-escravidão, a educação submissa e a novidadeira cibercidadania, como dissemos, exigem realmente olhares mais audaciosos no espaço do científico. A primeira nos revela e nos garante o audacioso desafio do desenho mais real de nosso quadro social e sociocultural após o tempo longevo de escravidão vivida por aqui.
A educação submissa, por ter sido fruto de um corpo que calado (Lemos, 2001, p. 107; Silva, 2000) e até certo ponto convenientemente comportado, mas ocultamente violento e mascarado pelo preconceito, reitera sempre nossa incapacidade de superação das etapas de que fomos vitimados, das quais não conseguimos ainda nos desvencilhar claramente em nossa História Social.
Faz-se mister dizer que ainda vivemos o descalabro de produzir, pela educação submissa, uma trágica trajetória de construção social, a qual, com essa contumaz maneira de gestão invertida que tanto nos martiriza, bestializa, temos pontuado em nossos trabalhos publicados neste site até aqui. Parece-nos que a manutenção dos já ditos jogos faz parte de um histórico e talvez ainda acalentado projeto de manutenção social, o qual foi também sempre acalentado por uma sociedade que ainda vivencia, quase que a fórceps, a condição escravista do passado, que não consegue desvencilhar-se de uma espécie de marca, carma herdado, ou o que valha, do velho processo colonizador, nem mesmo no mundo moderno da cibernética e da pós-escravidão.
O terceiro, a novidadeira sombra da cibercidadania, é o impositivo moderno talvez, mas que nos assusta e com o qual nos deparamos surpresos, no novo mundo da globalização. Assusta-nos porque não estamos nem um pouco preparados para sua superação eficiente e imediata.
Trata-se de um grande e grave dilema, que não desejaríamos para nosso mais terrível inimigo, pois certamente o misto de sofrimento e de esforço para superá-lo parece que se configura cada vez com mais dificuldades. Entretanto, insistimos que, sem uma velha atitude correta de diagnose, será mais difícil a construção de uma prognose que seja eficaz para todos, e/ou que beneficie todos. Sem uma inclusão social eficiente, cidadã, fundada no respeito ao próximo, não conseguiremos chegar a lugar nenhum! Cabe, para tanto, uma, a mais acertada possível, (re)leitura de toda a nossa história social e sociocultural. Para um correto resgate do que Antoine Garapon chama de “animar o sujeito cidadão” (Garapon, 1999, passim).
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Publicado em 21 de agosto de 2007
Publicado em 21 de agosto de 2007
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