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A educação brasileira destrói a consciência democrática
Luiza Barreto Leite
Especial: Memória da Educação
As gerações de 30 para cá precisam ser recuperadas — os moços do Brasil são aqueles que tiveram o espírito formado antes do “nivelamento capanema”.
Dizer que a confusão brasileira começou em 1930 é manifestar partidarismo ou má vontade (o que não é de forma alguma nossa intenção); na realidade, a confusão já estava estabelecida, e de tal forma que, não devemos esquecer, o sr. Getúlio Vargas foi lançado no panorama nacional como “promessa” de salvação. Na verdade, o que ele fez foi apenas piorar a situação, na razão direta do tempo em que se conservou no governo. Não fez nada para corrigir os males passados e aplicou todos os métodos para destruir o pouco que havia de bom; procurou estabelecer o nivelamento da população, mas, em vez de nivelá-la por cima, elevando-a à altura das elites, fez exatamente o contrário: nivelou por baixo, estabelecendo um padrão inferior para todos.
E isto, que se tornou uma verdade inconteste em todos os setores da vida brasileira, desde a política ao comércio, desde as artes aos esportes, no setor da educação atingiu as raias do delírio criminoso, pois é a educação a base de todo o desenvolvimento social de uma nação.
Na verdade, o ensino no Brasil nunca passou de um fracasso democrático, pois, mesmo depois da República, constituiu sempre um privilégio de classe, não propriamente da classe abastada como agora, mas da aristocracia intelectual. Da forma por que estavam organizados os seus exames de grau médio, com o regime de preparatórios, qualquer um podia estudar, mesmo que não possuísse meios de pagar colégios e professores, pois podia estudar em casa e prestar exames nos ginásios oficiais. Dessa forma, os colégios particulares se esmeravam numa espécie de competição, pois, com seus exames não sendo realizados intramuros, isoladamente, e sim publica e coletivamente, as falhas e qualidades de seus alunos se tornavam evidentes, diminuindo ou aumentando o prestígio dos colégios. Era comum a certos colégios mais credenciados só permitirem a inscrição de seus alunos nos exames públicos depois de realizada uma prova de seleção particular. Depois dessa prova, o aluno que não possuísse 90% de possibilidades de um exame brilhante poderia, se quisesse, inscrever-se para prova pública, pois esta era aberta a todos, mas deveria fazê-lo em seu próprio nome e não poderia comparecer envergando o uniforme do colégio. Por esse meio, os pais que pagavam as mensalidades e taxas das escolas particulares podiam estar certos do interesse dos professores pelos alunos, como indivíduos, e do consequente aproveitamento destes. É verdade que os professores sempre se interessavam mais pelos mais aptos, estabelecendo o privilégio do talento. Ainda assim, os pais que não tivessem possibilidades de pagar taxas “seletivas” poderiam colocar seus filhos nos inúmeros cursos preparatórios, todos baratíssimos, ou prepará-los mesmo em casa, com o auxilio dos elementos cultos da família. Do mesmo modo, os alunos mais velhos (não havia limitação de idade para os exames) podiam trabalhar para o seu sustento e estudar nas horas vagas (havia cursos abertos dia e noite).
É claro que isso estabelecia como elemento principal a seleção intelectual, estudavam mais e melhor os mais aptos, mas não os mais aptos financeiramente e sim os mais inteligentes ou os mais estudiosos. De certa forma, isso era um incentivo para os outros, pois ninguém quer ser estúpido ou preguiçoso. Ou, por outra, não queria, pois hoje é diferente: os pais “pagam o pato” e os filhos só desejam comê-lo, sem mesmo tirar as penas, se para isso for necessário o menor sacrifício.
COMEÇA A EXPLORAÇÃO COMERCIAL DO ENSINO
De repente, em 1925, a Reforma Rocha Vaz, tentando “extirpar o mal dos preparatórios”, estabeleceu um outro maior, sob o pretexto de que alguns alunos estudavam apressadamente, só no fim do ano, ou preparavam matérias fundamentais com apenas um ano de estudo — confiando na sorte ou na própria inteligência —, introduziu o sistema seriado, obrigando ricos e pobres, capazes e incapazes, estudiosos e preguiçosos a cursar os mesmos cinco anos sistematizados. Desaparecendo o ensino livre, e com ele os cursos de preparatórios. organizados de forma independente, cai a possibilidade dos menos aptos, dos mais pobres ou daqueles que trabalhavam para viver estudarem com professores particulares, com a própria família ou até sozinhos. Estabeleceu-se um regime de privilégio para os colégios particulares e, consequentemente, a exploração do ensino comercial. O governo, não possuindo (como ainda não possui) ginásios oficiais em número suficiente para cobrir sequer um décimo dos pretendentes à instrução secundária e obrigando por lei os alunos a frequentar o curso seriado, estabeleceu automaticamente a obrigatoriedade de frequência ao colégio particular, ensinasse ele de que forma ensinasse, cobrando os preços que bem entendesse. Era o começo do nivelamento por baixo em matéria de educação e da seleção de valores de acordo com o livro de cheques dos pais ou responsáveis.
REFORMA FRANCISCO CAMPOS, DEGRINGOLADA MENTAL E MORAL
Em 1931, a Reforma Francisco Campos (chamada reforma Chico Ciência) complicou ainda mais as coisas, “dividindo o curso em duas partes, ou dois ciclos: o primeiro de 5 anos e o segundo, e complementar, ou colégio universitário, de dois anos, subdivididos em três ramos com caráter propedêutico de acesso aos cursos superiores”.
Isso acabou definitivamente com a possibilidade de estudo mais profundo para aqueles que, pela força das circunstâncias, são obrigados a trabalhar cedo. Desapareceu o incentivo dos mais inteligentes, dos mais estudiosos, pois, sabendo com antecedência que, estudando ou não, seriam obrigados a cursar os sete anos antes de entrar na universidade, começam a relaxar, a se desinteressar pelas matérias e a procurar outros centros de interesse, nem sempre dos mais aconselháveis para a juventude. Começou então a degringolada, não só mental, mas sobretudo moral, da juventude. Acabaram-se os longos serões daqueles que procuravam progredir mais depressa, acabaram-se as noitadas de estudo “na hora da virada”. Já ninguém se preocupava com os livros, pois, com um mínimo de esforço, era possível conseguir média; só os menos inteligentes precisavam estudar; os outros iam mesmo com as explicações de aula, quando as explicações eram satisfatórias; em caso contrário, arranjavam-se de qualquer forma, sempre com um mínimo de esforço. Começou então a preguiça mental da Inteligência brasileira e aumentou o nivelamento por baixo. Já, nessa altura, começara também a completa desmoralização do Indivíduo, do ser humano, política e socialmente falando. Que fizeram então os jovens? Compreenderam, “rápida e eficazmente” —, com auxílio da escola e dos professores, cada vez mais incompetentes à medida que o comercialismo dos colégios aumentava —, que o problema era abrir caminho na vida, de qualquer forma, mesmo sem conhecimento, mesmo como estudantes, sobretudo aproveitando sua situação de estudantes. Começava então a completa decadência. Exceto uma minoria, ainda sob a influência de pais que haviam sido formados pelo método de seleção dos mais aptos, toda a juventude brasileira só pensava numa coisa: abrir caminho na vida, “honestamente se possível”. Mas, como começava a ser impossível...
A DITADURA E A REFORMA CAPANEMA
Veio então a ditadura e, para satisfazer sua demagogia desenfreada e ao mesmo tempo comprimir ainda mais os espíritos rebeldes de nascimento e criação, vem a Reforma Capanema.
O então ministro da Educação declarou ter como objetivo a formação da personalidade do adolescente e a seleção pelo cultivo de humanidades antigas e modernas e assim elevar no jovem a consciência patriótica e a consciência humanística
Seleção pelo cultivo de humanidades foi o que sempre houve, antes de todas as reformas, e justamente o que se tornava cada vez mais difícil de realizar à medida que aumentava o número de colégios comerciais e, com ele, o de professores incompetentes “contratados para encher buraca”. O que interessa realmente era a Reforma Capanema, organizada para proteger a ditadura; era a “formação da personalidade do adolescente e a elevação de sua consciência patriótica”. Tudo segundo os moldes da ditadura, é claro. Nas suas exposições de motivos, o ex-ministro da Educação define ainda o curso secundário como destinado “à preparação de individualidade condutora, isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens portadores da consecução de atitudes espirituais, que é preciso infundir nas massas e tornar habituais entre os povos”.
Tudo isto parece um pouco confuso, mas, na realidade, é claríssimo: “preparação de individualidade condutora”, isto é, o curso secundário deveria ser reservado aos filhos dos “donos da pátria”, àqueles que, por direito de seleção (já não de nascimento, como no Império, ou de capacidade intelectual, como na Velha República), mas por direito de esperteza, bajulação, de subserviência e, sobretudo, pela força do dinheiro, adquirido com a exibição de todas essas qualidades, haviam conquistado os “brasões da ditadura”. Esses seriam normalmente os escolhidos como “individualidades condutoras”, e a eles estava reservado o curso secundário. É fácil deduzirmos daí o desajustamento total entre a educação, sobretudo secundária., e os filhos de “Barnabés” ou de “Joses Afonsas”. A educação superior no Brasil, começando pela secundária, está reservada às “Marias Candelárias”.
A ESPERANÇA RENASCE
Agora, porém, com a volta ao regime democrático, parece que o próprio Sr. Getúlio Vargas e seu líder da maioria, o ex-ministro Capanema, reconheceram os antigos erros e procuram corrigi-los. Pelo menos já estão chamados para elaboração dos novos programas do ensino os professores formados pela antiga escola, aqueles que já estavam com a mentalidade formada antes da Reforma Francisco Campos ou do “nivelamento por baixo”, e da Reforma Capanema ou da “mentalidade condutora”.
Agora, porém, depois de tantas reformas confusas, já não basta uma reorganização.
Publicado em O Mundo, no dia 31 de março de 1952, nas páginas 1 e 4.
Publicado em 28 de julho de 2007
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