Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Uma mensagem de Angola

Professor Souza

Diário de um professor

Esta semana me programei para mostrar o outro lado de meu cotidiano. Quem acompanha meus diários desde o início deve se lembrar que leciono em duas instituições de ensino: o Colégio João Antônio, que mais ou menos descrevi nos capítulos anteriores, e o Educandário Monte Alverne, cujos edifícios, que remontam ao século XVII, deveriam prevalecer sobre a construção pobre e aparentemente sem atrativos através da qual conduzi todas as minhas inquietações até aqui.

Confesso que minhas escolhas, para além das preferências que tenho, não se expressaram por força da piedade ou de qualquer tipo de cupidez diante da miséria e da pobreza. Não escolhi começar pelo Colégio João Antônio por ser mais modesto fisicamente do que o Educandário Monte Alverne. Isto tem muito mais a ver com a indefinição que se evidencia em todo início de parágrafo, algo inerente à comunicação humana, da qual o meu relato é apenas mais um exemplo.

Se pudesse, seria como o monstro de um bestialógico antigo – livro cheio de criaturas fantásticas –, que, por ter a língua cortada no meio, podia falar duas coisas ao mesmo tempo. Infelizmente, o processo da escrita não dá a ninguém o poder de contar histórias divididas entre muitas ações e reações. Minha onisciência acaba no momento em que escolho um ponto de vista, um único e limitado ponto de vista, para descrever um dia que, por mais comum que seja, tem uma gama enorme de sentimentos e situações dificilmente resumíveis em quatro ou cinco páginas.

Pois bem. Cheguei em casa com o firme propósito de compensar minhas limitações físicas e perceptivas escrevendo sobre o Educandário Monte Alverne. Como acontece todas as sextas-feiras no final da tarde, tomei um banho e, antes de começar a escrever meus diários, realizei uma série de asanas – posições de yoga –, sem as quais não consigo iniciar nada. Coincidentemente, enquanto contorcia meu corpo e esvaziava minha mente para compor o mandukasana (posição da rã), meu jabuti Napoleão cruzou a sala na direção da área, onde diariamente um pote com alfaces frescas o aguarda – ele detestou os cajás experimentados alguns capítulos atrás. Observar o ritmo do animal, a tranquilidade com que enfrentava a distância que mataria a sua fome, permitiu a entrada em contato com meu lado “anfíbio”. Concluí o exercício num encaixe perfeito, cloc.

Estava pronto para escrever. Sentando-me com o objetivo de iniciar meus diários, a janela do messenger abriu assim que eu toquei o mouse e entrei na pasta onde guardava toda minha colaboração semanal para o Portal da Educação Pública.

Senta diz: Oi, Prof Souza, td bem?

Meu coração acelerou. A vida constantemente nos convida a desviar de nossos propósitos. Não existe caminho reto. Deixei de lado os arquivos dos Diários de um professor e respondi imediatamente ao chamado daquela pessoa, parte desgarrada de minha história.

Prof Souza diz: Qnt tempo, Senta! tá td indo... e vc?

Senta diz: OK.  Saudades do Brazil...

A palavra saudade já possuía, por si mesma, uma carga profundamente emotiva. No caso de Senta, a potência duplicava por ter aprendido a pronúncia correta e seu significado através de uma curta aula de português dada por mim. Ela tinha acabado de chegar da Alemanha, e na sua língua o termo ibérico não encontrava um equivalente. Passei uma tarde divertida, tentando forçá-la a dizer corretamente, mas ela só conseguia dizer “soudate” ou “sautati”.

Prof Souza diz: Vc tá na Alemanha?

Senta diz: No África. Angola.

Angola. Senta participava de uma Ong alemã que prestava assistência às crianças órfãs do mundo “em Vias de Desenvolvimento”. Vestia-se de palhaço e fazia mímicas e jogos lúdicos com os pequenos. Realizava oficinas. Chegou a Bacanaço no final de 2006, por motivos óbvios: ali funcionava um dos maiores orfanatos da região.

Prof Souza diz: Comprou novas pantufas?

Senta diz: He he he he

Até no Messenger suas risadas soavam despropositadas. Isto a tornava mais encantadora. Conheci-a no Colégio João Antônio, quando realizava suas pantomimas no pátio, acompanhada de Rudolf e Candice – outros membros da trupe – cercada por crianças. A maquiagem aprofundava a tristeza dos seus olhos. Tranças loiras saíam como duas espigas de milho do chapéu coco rosa-choque. Roupas largas e coloridas escondiam as formas de seu corpo flexível. Pantufas brancas, com o formato de coelho, completavam o conjunto.

Senta diz: Angola feliz = Brazil. but meninas ssassinadoswar.

Misturava tudo com o inglês, mais inteligível para um brasileiro do que o alemão. Pensei em responder que aqui, de uma certa forma, também enfrentávamos uma guerra. Entretanto, evitei qualquer sinal de dramaticidade.

Prof Souza diz: Chegou qndo?

Senta diz: 1 mes. ir a casa de D’Jowba.

Claro! Uma hora ela iria chegar em Angola. D’Jowba, o amor da vida de Senta, nasceu lá. No final do ano passado, após o espetáculo com as crianças, olhei-a sem a maquiagem e percebi que trazia um segredo triste. A certeza veio no momento em que pronunciou seu nome, no momento em que fomos apresentados por Ivana. Senta era a personagem principal da ópera romântica de Wagner, O navio fantasma,e os finais felizes não são a especialidade dessas obras clássicas.

Prof Souza diz: E aí?

Senta diz: Vi photos.

Fiquei imaginando Senta olhando as fotos da infância de D’Jowba. Seus olhos azuis e marejados acompanhando os dedos de uma mãe africana, lembrando do filho em algum dialeto do sul de Luanda, adornando o português com a sonoridade das savanas. Seu filho resolveu partir para a Europa contra sua vontade. Sua morte estúpida num país estranho foi ao encontro de seus piores pressentimentos. Morreu assassinado nas ruas de Berlim por um grupo de neonazistas. Talvez as duas tivessem se abraçado.

Prof Souza diz: Conheceu a mãe dele?

Senta diz: No. Morto. I see your aunt and your brother...

Acho que estou muito melodramático hoje. Nada de mãe saudosa lembrando do filho. Mas a cena das fotos poderia ter acontecido. Ou com o irmão ou com a tia. Afinal, as circunstâncias que envolveram a morte de D’Jowba foram trágicas. Um pensamento me veio, repentino e fulminante. Será que Senta apaixonou-se pelo irmão de D’Jowba?

Prof Souza diz: Está namorando...?

Enviei a pergunta e me arrependi amargamente em seguida. Mandei-a de maneira displicente, navegando em páginas da internet que mostravam paisagens de Angola. Senti que fui infiel aos sentimentos de Senta. Pensei em mandar um pedido de desculpas em seguida, mas esperei que me respondesse. Esperei, esperei a janela do messenger invadir o canto de minha tela de computador durante uns cinco minutos e nada. Aquele silêncio serviu para que eu remoesse meu sentimento de culpa e sentisse que ela jamais esqueceria D’Jowba. Havia desafiado a todos para ficar com ele. Vinha de uma família de classe média alemã, conservadora demais para admitir seu relacionamento com um músico africano que tentava a sorte na Europa. O pior foi que um dos suspeitos da morte do namorado era seu próprio irmão, membro de um grupo de carecas nacionalistas conhecido pela hostilidade aos imigrantes, sobretudo africanos. Depois da tragédia, Senta resolveu abandonar a vida familiar e sair pelo mundo.

Prof Souza diz: Senta?

Senta diz: Sorry. o telefone toco. Goodbye.

E ficou por isso mesmo. Então, fiquei diante da tela branca, meio desnorteado, sabendo que tudo que havia planejado escrever naquele dia tinha sido engolido pelas emoções, pela curta conversa tida com Senta na sexta-feira. Não conseguiria escrever sobre outra coisa.

No sábado à noite tentei falar com ela no messenger e consegui. Foi um papo mais curto que o anterior. Pedi que me autorizasse a publicar nossa conversa em meus diários. Informei o site do Portal da Educação Pública para que lesse o resultado, e ela respondeu OK.

Não sei se ela vai ler estas linhas durante a semana em que o site ficará no ar. (Espero que não tenha te magoado de alguma forma, Senta, caso esteja lendo estas palavras invasivas). Preocupa-me também o fato de ter dito muito pouco sobre meu dia como professor, de ter mais uma vez me desviado do assunto que me propus ao iniciar esta coluna. Enfim, medos e dúvidas que fogem completamente ao meu controle. Tentarei consertar tudo na próxima coluna, caso não surja nenhum outro contratempo. Até lá.

Publicado em 28 de agosto de 2007.

Publicado em 28 de julho de 2007

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.