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A mosca no vidro

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

“A filosofia entra no jogo quando a linguagem sai de férias”. Li alguma coisa do tipo em um livro do pensador austríaco Ludwig Wittgenstein, mas não consigo lembrar exatamente onde. Wittgenstein foi o meu primeiro grande anti-herói filosófico. Frases como essas estavam espalhadas em uma grande quantidade de escritos deixados por ele em Cambridge. Caixas e caixas de sapatos cheios de fragmentos; aforismos em livros, fichas em catálogos, dois cadernos, um marrom e um outro azul, cheio de anotações. Essa foi a herança deixada por esse sujeito estranho, filho de um grande industrial do aço do império austro-húngaro, herdeiro de uma das maiores fortunas do entreguerras; um jovem inteligente e emocionalmente instável, que cursava engenharia aeronáutica no começo da década de 1910 e acabou encontrando Bertrand Russell, um dos grandes ativistas e pensadores do século passado e foi desviado do seu intento de inventar o avião (era nisso que ele trabalhava antes de ter contato com lógica matemática e resolver se dedicar ao trabalho filosófico).

Wittgenstein é um pensador da era pós-filosófica. Um espécime típico do século XX. Para muitos, ele é um demolidor da Filosofia. Alguém que veio para mostrar que os grandes problemas sobre os quais os filósofos se debruçavam há muito tempo, na verdade, eram apenas confusões mentais causadas por algum tipo de mau uso das palavras.

Perguntar se Deus existe, ou o que é a felicidade ou a justiça, ou mesmo como eu posso saber se o que eu estou vendo ou ouvindo é real ou é virtual seria perda de tempo, no entender desse austríaco, filho de uma família de judeus que se converteu ao catolicismo. Ou melhor, era sinal de algum tipo de distúrbio, de doença da linguagem. A vida era mais simples do que os filósofos pensavam, e tentar responder a essas questões, se não fosse impossível, seria, pelo menos, inútil. Todo o esforço de Wittgenstein foi para tentar encontrar um único problema filosófico que valesse a pena ser pensado. A ideia era simples: ele pegava uma dessas questões esquisitas (“Se Deus é bom, porque existe o mal?”, por exemplo) e tentava traduzir em uma linguagem que pudesse ser compreendida por qualquer pessoa, mesmo aquelas que não tinham nenhum conhecimento de filosofia. Caso o problema pudesse ser traduzido, era apenas uma forma mais complexa de dizer algo simples. Caso não pudesse ser traduzido, era uma armadilha da nossa linguagem.

A Filosofia seria, assim, uma espécie de confusão causada pelas dificuldades que o homem tem de encontrar o significado justo para os termos que usa em seu discurso. Toda a tradição da Filosofia estaria, assim, presa em falsos problemas, derivados do encantamento que a linguagem dos filósofos provocou neles mesmos. Esses caras estranhos estariam encantados pelo seu discurso complexo, enlouquecidos pelo mau uso de termos cotidianos (ser, sujeito, objeto, bem, ideia, verdade, nada). Ficaram presos à própria linguagem, como moscas ficam presas no mel. Por isso, esse austríaco ranzinza, que renegou a fortuna do pai para viver uma vida ascética, dormindo em uma cama de madeira sem colchão, comendo mal e trabalhando obsessivamente (ou seja, alguém que não pode ser considerado clinicamente normal), acabou por se tornar um modelo de antifilósofo. Alguém que pensava que, sobre aquilo que não podemos falar, temos o sincero dever de nos calar; e que a lógica não pode, nunca, oferecer a resposta sobre o sentido de nossa vida. Ele escreveu: “Só pode existir dúvida onde exista uma pergunta; uma pergunta, só onde exista uma resposta; e esta só onde algo possa ser dito”. Se a Filosofia é uma grande confusão, então, o melhor seria desistir dela.

Isso teria acontecido no século XX se um outro filósofo, chamado Martin Heidegger, não tivesse aparecido para tentar continuar a confusão e dar esperanças de verbas para pesquisa nos departamentos de Filosofia, pelas universidades mundo afora.

Publicado em 04/09/07

Publicado em 04 de setembro de 2007

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