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A função social da vergonha

Pablo Capistrano

Esse artigo é dedicado aos sem-vergonha da própria vergonha
(Desculpe, Nietzsche, mas eu tive que escrever isso)

Nelson Rodrigues foi um grande fazedor de frases. Uma das que eu mais gosto é “Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”. Na época de Nelson o pudor sexual era um indicativo de um tipo muito particular de sentimento moral: a vergonha.

Irmã da culpa, a vergonha é aquela sensação miserável, aquele sentimento devastador e inquietante que lhe tira o sono quando você é flagrado fazendo algo moralmente condenável. È certo que o que é moralmente condenável varia. Na época da minha avó, que também era a época de Nelson Rodrigues, mostrar as pernas era algo moralmente condenável. Uma mulher honesta, decente, não mostrava as coxas. Do mesmo modo, o moralmente condenável varia de lugar para lugar. Um vereador holandês flagrado recebendo propina para votar uma lei qualquer pode ser possuído por um tão profundo e avassalador sentimento de vergonha que sua única saída seja o suicídio, mas pode não dar a mínima se um eleitor o encontra na porta de um coffee shop de Amsterdã que vende a melhor e mais variada maconha do planeta. No Brasil, a coisa parece que se inverte.

É o “moralmente condenável” variando no lugar e no tempo. Agora, o que parece não variar, nas sociedades humanas, são os sentimentos morais. Da mais distante aldeia até o bairro mais descolado de Nova York; da fazenda mais fria na Baviera até os mais caudalosos desertos cortados por caravanas de beduínos berberes, a vergonha é a mãe do homem. Ela é que nos faz humanos. Que constrói as bases desse mundo artificial que nos rodeia. A vergonha e a culpa são as melhores ferramentas para formatar um sujeito que não roube, não receba propina nem atire na cabeça de um outro ser. Que não espanque mulheres em paradas de ônibus e não bote fogo em um homem que está dormindo na rua em uma madrugada fria.

Confúcio, que viveu entre 551 e 479 antes da era cristã, já sabia aquilo que minha avó me ensinou: “se conduzirmos o povo por meio das leis e realizarmos a regra uniforme com a ajuda dos castigos, o povo procurará evitar os castigos, mas não terá o sentimento de vergonha. Se conduzirmos o povo por meio da virtude e realizarmos a regra uniforme com a ajuda dos ritos, o povo adquirirá o senso de vergonha e além disso se tornará melhor”. Sem a vergonha e a culpa, fica muito caro para um sistema social qualquer se manter inteiro. Os custos que o Estado vai ter para desenvolver um aparato repressivo que coíba as atitudes consideradas moralmente condenáveis são muito altos, em um mundo no qual a vergonha perdeu o sentido. É completamente inútil a existência do Direito sem que haja uma quantidade mínima de vergonha e culpa que auxilie os juízes, os promotores, os advogados e os policiais a manter a ordem social. Quando os próprios agentes do Estado, quando vereadores, juízes, policiais, prefeitos e governadores, perdem em conjunto a vergonha, então, meu amigo, a chapa fica muito, muito mais quente, porque aquilo que nos une, aquilo que faz com que um vizinho possa viver em paz com outro vizinho se esfacela e o caminho é um só.

Não estamos vivendo uma crise moral nestes últimos dois anos. Ela é bem mais antiga do que a mídia quer fazer pensar. Essa ideia de que a corrupção aumentou nos últimos anos e blá blá blá é balela política. A crise do “moralmente condenável” no Brasil tem, no mínimo, cinquenta anos. Ela está ligada à transição de um universo rural e aristocrático, fortemente influenciado por uma moral religiosa, para um mundo burguês. O confronto entre a geração da minha avó (a de Nelson Rodrigues) e a da minha mãe (a de Nelson Mota) marcou esse momento de passagem no final do século passado. O Brasil abandonou a velha moral, como fez a Europa nos últimos anos do século XIX, e adotou a moral do mundo da indústria e do consumo. Hoje, para muitos pais de família, casar sua filha com um rico canalha é bem melhor do que com um pobre honesto. Hoje, a maior vergonha não é de ser “esperto”. Nós nos sentimos culpados por não termos dinheiro suficiente para comprar um belo apartamento e uma Mercedes. Nossa maior vergonha é de não sermos ricos, jovens, descolados, bem nutridos com o vinho mais sofisticado e o prato francês da estação. Temos vergonha de não fazermos sexo o suficiente, de não termos os músculos certos nos locais exigidos, de não usarmos a roupa cara da loja de banalidades. Nossa vergonha é de não sermos vistos saindo de um carro preto na frente dos mais sofisticados restaurantes e de não termos dinheiro para pagar ao colunista pelas nossas fotos publicadas na revista de fofocas.

Abandonamos uma velha moral e não conseguimos ainda encontrar uma moral melhor para pôr no lugar. A crise da nossa vergonha é de conteúdo, não de forma. Se há uma função social da vergonha, é de evitar a guerra de todos contra todos; num mundo onde não há verdade, nunca vai ser possível haver paz.

Publicado em 11 de setembro de 2007.

Publicado em 11 de setembro de 2007

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