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Educandário Monte Alverne

Professor Souza

Diário de um professor

Saí do Colégio João Antônio na quarta-feira com a alma tranquila. Andi apareceu na aula. Chegou calçado, com um aspecto mais saudável que de costume. Pela primeira vez, desde que o ano letivo começou, dispôs-se a realizar um trabalho: pedi aos alunos da turma 503 que comparassem a civilização egípcia com os tempos modernos. Mesmo entendendo muito pouco do que ele quis dizer com aquelas palavras tortas, rasuradas – suas ideias não chegavam a formar frases –, para estimulá-lo a recuperar as notas baixas do bimestre passado carimbei um nove e meio, frisando a nota com um enfático “Muito bom!!”. O menino pegou o exercício cheio de garranchos ininteligíveis, soltou um riso que interpretei como de satisfação e foi embora. Será que iria mostrá-lo à sua avó? A pergunta ecoava em minha mente enquanto me dirigia ao Educandário Monte Alverne. Às quartas e quintas, das 15 h às 17 h, leciono ali.

Moro sozinho e praticamente não saio de casa. O único luxo que me permito de vez em quando é comprar alguns CDs de ópera, geralmente importados, e livros. Vivo com o básico, de modo que o pouco que ganho como professor de escola pública daria para pagar as contas, pelo menos. O que me forçou a engordar o orçamento nos últimos tempos foi um problema de doença na família. Quatro anos atrás, meu pai ficou muito doente e, depois de ele quase morrer em uma fila do SUS, resolvi pagar-lhe um plano de saúde. Sua idade avançada e o histórico de uma vida desregrada chutaram os valores da mensalidade lá para cima. Não tinha como arcar com mais aquela despesa.

Conversei com Ivana e ela me recomendou o Educandário Monte Alverne. Eles estavam precisando de professor de História e pagavam razoavelmente bem. Inicialmente resisti, pois não me oriento pelos dogmas católicos. Meu ceticismo casa melhor com as religiões orientais, para um panteísmo que convive perfeitamente bem com um lado ateu não declarado.

Ivana foi dura e irônica comigo. Olhou nos meus olhos e disse que, entre a cruz e a espada, só me restava agarrar a primeira e seguir em frente. Com o salário pagaria o plano de saúde de meu pai. Além do que, completou, um colégio franciscano nos dias de hoje não diferia muito de qualquer outra escola particular do Rio de Janeiro.

Se não havia diferenças com relação a outras escolas particulares do Rio de Janeiro, o Educandário Monte Alverne diferia, em muitos sentidos, do Colégio João Antônio. Primeiro, sua localização. Fica em um dos bairros de classe média alta mais conhecidos da capital. Nas ruas, a fina flor da Zona Sul carioca. Mulheres e homens de todas as idades transitam com roupas leves, andar moroso e despreocupado nas calçadas margeadas por vitrines, coisa muito diferente das ruas barrentas e sem sinalização onde os habitantes da Zona Norte diariamente se esquivam de dívidas, como quem contorna poças de lama.

Construído no alto de uma rua nobre, o edifício do Educandário Monte Alverne também diferia acentuadamente do humilde Colégio João Antônio, que, por maior que fosse o capricho com que Ivana realizava as reformas em sua estrutura, não chegava à imponência e à sobriedade do antigo convento franciscano. Antes de chegar ao prédio principal, atravessa-se um bonito pátio interno, que ao longo de sua extensão evolui apoiado na composição de doze arcadas paralelas, trabalhadas em rocha cinzenta. No centro do espaço, um enorme chafariz desativado serve de bancada para os alunos, que ali ficam jogando conversa fora antes de a sineta tocar.

No final do pátio, chega-se ao prédio principal. Entrando-se nele, à esquerda, acessa-se o segundo andar, onde funciona a parte administrativa do Educandário. A escadaria parte-se em duas, enrolando-se para cima como as conchas de dois caracóis acasalados. Paredes brancas, lisas e grossas, feitas a partir de óleo de baleia e conchas socadas pelo trabalho de antigos escravos, índios e negros, protegem interiores despojados, com móveis de madeira escura e muitos quadros com motivos sacros. No corredor que leva até a sala da direção, enfileiram-se retratos de antigos frades realizados a tinta ou retocados sobre fotos em preto-e-branco. Todas as vezes que passava por ali, sentia-me na pele de um indefeso feiticeiro a caminho da fogueira. Da primeira vez, essa sensação quase me fez dar meia-volta e desistir do trabalho.

Meus temores foram sendo vencidos aos poucos. Logo que fui convidado a entrar na sala do irmão Amadeo, percebi que os tempos eram outros. A começar pela informalidade com que o diretor da tradicional escola me recebeu. Com uma camisa de seda amarela e uma calça de brim azul marinho. Após o aperto de mão – em meu nervosismo, quase levei seus dedos aos lábios, como se estivesse diante do papa –, o frei gentilmente dispôs uma cadeira diante de sua mesa e pediu que sentasse. Tinha uma voz aveludada, que soltava após longas reflexões, conferindo a suas palavras o dom de uma suave sentença. Entreguei-lhe meu currículo e falei um pouco de minha experiência como professor. Nossa conversa foi extremamente profissional. Ao invés de café, ofereceu-me chá verde, hábito que adquiriu ao administrar uma escola da Ordem em Macau. Se não houvesse a presença de um crucifixo atrás da mesa, a lembrança de que estava diante de um franciscano apagar-se-ia por completo.

Saí de sua sala praticamente empregado. Pediu que aguardasse contato, mas intimamente sentia que o emprego já era meu. Aproveitei que não tinha nada para fazer e resolvi ir até a biblioteca, conhecida por conter algumas raridades, como uma edição do século XVII de Ars magna lucis et umbrae, escrita por Athanasius Kircher,em dez volumes, e exercícios espirituais anônimos do século XVIII, fartamente ilustrados com as mais estranhas penitências. Em uma delas, desenhado em traços límpidos de modo a destacar as chagas sangrentas, um padre envolto por demônios interiores flagelava-se com um cilício cheio de pontas cortantes.

Corria a lenda que o acervo foi salvo por Francisco de Monte Alverne, no século XIX. Nessa época, os mosteiros franciscanos e beneditinos deixaram de ser subsidiados pelo Império, e muitos deles acabaram abandonados. O frade, uma das figuras mais eminentes da época, guru intelectual de toda uma geração de artistas românticos, levara alguns exemplares raros para sua cela e, mais tarde, doou-os à Biblioteca Nacional. No início do século XX, o Mosteiro de Santo Antão foi reformado, transformado em escola e reabilitado para receber de volta tão importantes obras do ponto de vista histórico.

Ontem mesmo estive na biblioteca, como faço toda semana. Adoro ficar no meio das estantes, andando entre seus volumes como um viajante atravessa os corredores de um expresso à procura de assento. Comprava o jornal do dia ou pegava um dos exemplares da biblioteca com quase trinta mil volumes de livros e escolhia um canto para gozar esse prazer tão vital para mim. Vez por outra encontrava um aluno amante da leitura e trocávamos olhares de cumplicidade. Entre minha saída do Colégio João Antônio até a minha entrada em sala de aula no Educandário Monte Alverne, às 14:45h, sobrava-me bastante tempo para ler à vontade. Isso quando não ficava conversando com frei Serapião, o bibliotecário.

Ah, meu amigo Serapião! Conheci-o no primeiro dia, logo que entrei na biblioteca. Olhava espantado o tamanho do cômodo e sua organização, levando em conta que estava em uma escola de ensino fundamental e médio, e não em uma universidade. Frei Serapião, como sempre, ficava numa bancada disposta diante das mesas tal qual um orador prestes a emitir as primeiras frases de efeito. Sua imaginação poderosa estava sempre alerta, pronta para as argumentações mais tortuosas. A impressão aumentava pelo fato de ser estrábico e nunca termos certeza de realmente olhava para a gente enquanto fazia suas reflexões barrocas. Mas acho melhor deixar para uma outra oportunidade a apresentação dessa figura extraordinária. Estou me estendendo muito no dia de hoje.

Ah, já ia me esquecendo de uma coisa. Sexta, antes de desligar o computador, acessei minha caixa de mensagem e descobri que Senta havia mandado um e-mail para mim. Ela leu, no Portal da educação pública, nossa conversa no Messenger. Estava um pouco triste. Disse que se sentiu invadida em sua intimidade, que achou estranho ver-se apresentada como uma personagem de diário. Não sabia dizer se havia gostado ou não da minha iniciativa. Aproveitou para responder à pergunta indiscreta, deixada no capítulo anterior: ela não estava com cabeça para ter um relacionamento com ninguém. Não estava namorando, como eu havia imaginado.

Cansado, nem escovei os dentes, nem desliguei o computador, nem fiz meus exercícios costumeiros de yoga. Deitei na cama, de roupa e tudo. Simplesmente apaguei.

Publicado em 11 de setembro de 2007.

Publicado em 11 de setembro de 2007

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