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Napoleão e a vinda da Família Real: como o ogro entrou nessa história

Leonardo Soares Quirino da Silva


Chafariz do Mestre Valentin;
esse largo é a atual
Praça XV de Novembro.

O sol nasceu como todos os dias na Baía de Guanabara naquela manhã de 7 de julho de 1807. O trânsito dos botes e barcos entre os navios e o porto continuava como sempre. Os escravos que cotidianamente iam buscar água no chafariz do Largo do Carmo seguiam com sua atividade, bem como o resto da população da cidade. Os cariocas não podiam imaginar que dentro de nove meses o Rio de Janeiro mudaria para sempre.

As razões para isso encontravam-se a quilômetros dali. A sorte da cidade, da colônia e do reino estava sendo decidida à revelia dos principais interessados, na cidade de Tilsit, onde dois antigos inimigos viraram aliados, para prejuízo dos reis ibéricos. Pelo tratado que leva o nome dessa cidade, Napoleão e o czar Alexandre I selaram sua aliança e, nas cláusulas secretas, dividiram, na prática, a Europa em duas.

Nessas cláusulas secretas, de um lado o imperador francês comprometeu-se em apoiar os interesses do czar na Turquia. Os objetivos russos eram tomar os estreitos de Bosfóro e de Dardanelos para garantir seu acesso ao Mediterrâneo, bem como expulsar os turcos dos Bálcãs.

O objetivo de Napoleão, por sua vez, era garantir a aplicação efetiva do Bloqueio Continental. O tratado previa que Rússia e França deveriam convocar a entrada de Dinamarca, Suécia e Portugal no bloqueio. Estes países deveriam, ainda, declarar guerra à Inglaterra. Os países que recusassem seriam considerados inimigos das duas coroas.

Escalada

A seguir assistiu-se a uma política deliberada, por parte do governo francês, para justificar a invasão de Portugal. O primeiro passo foi o envio, no dia 19 de julho, de ultimato que obrigava o príncipe regente a entrar no Bloqueio Continental e declarar guerra à Inglaterra até 1º de setembro. Caso o governo português não aderisse, França e Espanha declarariam guerra a Portugal. Em nove de agosto, o governo de Napoleão decidiu o embargo, a retenção dos navios portugueses que se encontravam em portos franceses.

No dia 2 de agosto foi iniciada a preparação das forças de invasão. No início de outubro, eram cerca de 20 mil soldados reunidos no sul da França.

Passou o 1º de setembro sem que o príncipe regente tivesse aderido ao bloqueio ou declarado guerra à Inglaterra. Em 23 de setembro, durante uma recepção em Paris e diante do embaixador português, Napoleão declarou que "se Portugal não fizer o que desejo, a Casa de Bragança não reinará mais na Europa dentro de dois meses". Não por acaso, as mães inglesas ameaçavam seus filhos mal-criados: "ou fazes o que quero ou te entrego ao ogro Napoleão".

Dividido

O príncipe regente encontrava-se em situação difícil. Em terra, seu reino era ameaçado por franceses e espanhóis. No mar e além, pelos ingleses. Entre estes e aqueles, dom João ficou com o mais antigos dos aliados.

Desde 1386, Portugal e Inglaterra mantêm uma aliança que, apesar de alguns percalços, tem sido renovada e, dizem alguns, com mais proveito para a segunda que para o primeiro. Tal aliança foi estabelecida quando os portugueses apoiaram o pleito de João de Gante ao trono espanhol.

Naquele momento, contudo, pesaram também algumas outras considerações que se pode dizer mais substantivas. A primeira era o risco de a metrópole se ver isolada de suas colônias pela marinha inglesa. Cerca de 75% do comércio português era feito com sua principal colônia, o Brasil. Os ingleses ameaçavam ainda ocupar as colônias portuguesas; assim, uma aliança com os franceses seria pôr em risco o império colonial. Depois, a forma pela qual Napoleão tratava os Estados ocupados ou derrotados também não recomendava aceitar os termos franceses.

Para os ingleses, por sua vez, manter Portugal ao seu lado era importante. Lisboa servia de base para as frotas que iam ao e vinham do Mediterrâneo. O país era também uma das portas de entrada de mercadorias britânicas no continente, uma vez estabelecido o bloqueio[1]. Por conta deste, a ida da Família Real para o Brasil também oferecia a possibilidade da abertura oficial do mercado brasileiro para os comerciantes ingleses, que já operavam aqui.

Por fim, os ingleses temiam que, em caso de invasão ou de adesão, a frota portuguesa caísse em mãos francesas. Nesse particular, a preocupação era que os franceses viessem a recompor sua frota e retomar a ameaça de invasão da Inglaterra, afastada desde a derrota em Trafalgar.

Ademais, desde 1789 Portugal e França estavam em campos opostos. A coroa portuguesa era um dos Estados membros da 1ª coalizão[2]. Mesmo depois do fim da coalizão, em 1797, apenas portugueses e ingleses continuaram em guerra contra os franceses.

Portugal só assinaria um acordo de paz com a França em 1802. Contribuíram para isso a derrota na Guerra das Laranjas (1801) e o abandono à própria sorte por parte dos ingleses.

Invasão

Após a autorização do primeiro-ministro Manuel de Godoy, as forças francesas entraram na Espanha em 17 de setembro.

As ordens de Napoleão para Junot eram de chegar o mais rapidamente possível a Portugal para tomar Lisboa e capturar os Bragança e sua armada, bem como fazer o reconhecimento da Espanha.

Enquanto os exércitos franceses marchavam para Portugal, Napoleão recebeu a notícia de que o príncipe regente concordara com três das quatro exigências francesas. Dom João recusara apreender e entregar as propriedades de cidadãos ingleses em Portugal, mas aceitara fechar os portos para os produtos ingleses, prender os súditos britânicos e declarar guerra à Inglaterra[3].

A única recusa, contudo, foi suficiente para que o imperador francês continuasse com seus planos.

No dia 28 de outubro, Godoy e Napoleão assinaram em Fontainebleau um acordo pelo qual dividiam Portugal em três partes. O sul ficaria com a Espanha, o centro com os franceses e o norte iria para a casa real da Etrúria, como compensação pela perda de possessões na Toscana.

No dia 19 de novembro, o exército francês entrou em Portugal sem encontrar resistência. Também não encontrou ninguém. O campo estava vazio. Ao longo das estradas, a população rural havia desaparecido. Isso tornou difícil, para os franceses, conseguir suprimentos para as tropas[4].

Aliadas, a velocidade da marcha e a falta de gêneros contribuíram para reduzir o tamanho das forças invasoras de 25 mil para dois mil soldados. Desde sua entrada em Portugal, por Alcântara, até Lisboa, os franceses fizeram 480 km em 19 dias. Em suas memórias, um dos veteranos franceses disse que "muitos homens encontraram suas mortes pela pura miséria - ou nas mãos dos camponeses".

Por essas e por outras, talvez tivesse razão Dona Maria I, a louca, que, ao ser levada para o embarque, gritava não entender por que a corte estava se retirando. "Que guerra perdemos?", perguntava a rainha.

Se soubesse do estado de penúria dos franceses, talvez Dom João não tivesse vindo para o Brasil. Mas não sabia. A corte partiu em 28 de novembro de 1807, dois dias antes de os franceses chegarem a Lisboa.

Portugal não chegou a ficar um ano sob ocupação francesa. Em 30 de agosto de 1808, Junot assinou a Convenção de Sintra, pela qual se comprometia com os ingleses a retirar suas forças, que tinham o direito de levar suas armas, bagagens e saque de volta para a França.

Napoleão tentou ocupar Portugal mais duas vezes - em 1809 e 1811 -, sem sucesso.

Durante o período em que a corte ficou na colônia, o reino foi governado pelo general inglês Beresford; o Rio de Janeiro e o Brasil mudaram para sempre.

Publicado em 18 de setembro de 2007

Publicado em 18 de setembro de 2007

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