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A época em que tudo são flores
Mariana Cruz
Acho legal ter flores em casa. Tanto assim que meses atrás comprei uma jardineira com icsórias para enfeitar a janela do meu quarto. Mas como apreciar não significa cuidar, as pobrezinhas só duraram o ínfimo tempo de uma quinzena. Tenho que confessar minha culpa: supus que o clima dos trópicos cuidaria de meu jardinzinho melhor do que eu, então transferi à mãe-natureza a incumbência de regá-lo quando bem achasse. Ela, porém, parece não ter se empolgado muito com a nova atribuição, decretou um recesso pluvial e acabou com minhas flores de uma hora para outra.
Enquanto isso, o jardim da vizinha da frente (de quem copiei descaradamente a ideia) estava lá vigoroso, resplandecente, humilhando meu canteirinho infértil colocado ao deus-dará. Inegável, porém, que ela tinha seu mérito: todas as manhãs estava lá com seu regador de desenho animado (aqueles grandões coloridos) jogando águas nas suas flores e, nos dias especialmente quentes, eu a flagrava repetindo a tarefa à noite.
Meu jardim poderia estar tão bonito quanto o dela, mas, ao invés de tentar recuperar o tempo perdido, dei de ombros e me consolei amparando-me na filosofia popular de que a cópia é sempre inferior ao original. Só estava cumprindo meu desígnio de plagiadora de jardins.
Apesar do descaso com minhas plantas, minha intenção era boa. Vez ou outra era tomada por um impulso ecológico e decidia regá-las todos os dias, revivê-las, cuidar com disciplina e carinho delas. Assim passavam-se três, quatro dias de abundância hídrica; depois, coitadas, tornavam a ficar à mercê das nossas chuvas intermitentes. À noite, quando chegava da pesada jornada de trabalho, raras vezes dava uma olhada naquilo que um dia fora um jardim; só restavam uns matinhos e galhos. Apesar da culpa, outros afazeres me chamavam: fazer comida, colocar roupa para lavar, dar telefonemas, ou mesmo cair na cama... e tornava as esquecer minhas flores sedentas.
Mas na semana passada algo inesperado aconteceu. Minha ineficiência continuava operante, só que, ao passar os olhos displicentemente pelo meu canteiro de manhãzinha, para minha surpresa ele estava absolutamente florescido, colorindo de amarelo e vermelho o quadradinho de minha janela, como um quadro impressionista. As flores floresceram (como é mesmo o nome dessa figura de linguagem?) da noite para o dia; apesar do descuido, dos longos intervalos a seco, elas venceram todo o desleixo e estavam todas exibidas, frondosas, nada a dever às da vizinha cuidadosa. Aliás, estavam até mais bonitas, eu diria, pois guardavam um aspecto mais selvagem. Seria um sinal? Um presente? Uma graça? Não, bastou me situar temporalmente para descobrir a causa de tal bênção: era a primavera chegando! Depois do inverno, ela vem com toda a sua exuberância. No Hemisfério Sul, ela chega dia 23 de setembro e vai até 21 de dezembro fertilizando todos os jardins: dos bem-cuidados aos abandonados. Sem discriminação, sem desigualdades.
A estação das flores traz uma luz diferente, bonita, suave. Os nublados dias de inverno ficam para trás e os casacos voltam para os armários, e ainda não sofremos a agressão dos dias escaldantes de verão: a pele grudenta de suor, praias lotadas, engarrafamentos, camelôs vendendo água por entre os carros, carona no ar-condicionado das lojas (que nessa época ganham status de oásis) quando se tem que resolver duas ou três coisas na rua... enfim, em nosso país, convenhamos, o verão não é uma estação para principiantes. O tempo primaveril é um quentinho acolhedor, ameno, amigável. De excessos, só as flores que enchem a vista. Fica-se com as boas coisas do inverno - vinho, queijo, chocolate - e do verão - mar, sol, sorvete.
A alegria de uma deusa
A palavra primavera vem do latim primo vere, que quer dizer começo do verão. Interpretemos não como sendo o início do verão propriamente dito, mas sim a estação que prepara, que o antecede.
Na mitologia grega, são diversas as histórias sobre a origem da primavera; uma delas está associada à ninfa Salmácis, protetora das plantas, que teria se apaixonado tão profundamente por Hermafrodito que acabou se fundindo a ele em um único corpo. Daí a lenda de que aquele que se banhasse na Fonte Salmácis se tornaria afeminado, uma vez que hermafrodita é um vegetal ou animal que possui ambos os sexos no mesmo corpo.
Esse é um dos mitos. Existe outro mais conhecido e talvez mais bonito. É a história de Perséfone (ou Prosérpina) e Deméter (ou Ceres, palavra da qual procedem os termos celeiro e cereais).
Deméter é a deusa da agricultura, da terra cultivada, das colheitas e das estações do ano. É propiciadora do trigo, planta-símbolo da civilização. Ela e seu irmão, Zeus, tiveram uma linda filha chamada Perséfone, cuja estonteante beleza fez com que Hades (Plutão), o senhor da mansão dos mortos (também chamada Hades), se apaixonasse por ela. Um dia, enquanto a donzela colhia suas flores no campo, ele a raptou.
Ao tomar conhecimento do sumiço da filha, Perséfone se desesperou, procurou-a por todos os lugares. Por conta de sua busca incessante, a deusa, encarregada de cuidar da fecundidade da terra, nada produziu. Por esse tempo, a terra tornou-se estéril, o gado morreu, os grãos não germinaram, o povo ficou sem ter o que comer.
A fonte Aretusa, conhecedora das profundezas da terra, revelou a Deméter que sua filha se encontrava nos subterrâneos de Hades. A deusa então decidiu não voltar para o Olimpo (a morada dos deuses) enquanto Perséfone não lhe fosse devolvida e pediu a Zeus que a tirasse do mundo das sombras. Este, solidário com a deusa e ciente da situação de escassez e infertilidade em que a terra se encontrava, pediu a Hades que libertasse sua prisioneira. Ele, aparentemente, concordou.
Havia, porém, uma condição: todo aquele que se alimentasse de algo daquela região tinha a obrigação de sempre retornar lá. E foi exatamente isso que aconteceu: Hades fez sua amada comer alguns grãos de romã; dessa forma a jovem foi condenada a permanecer naquele local, como esposa dele e rainha das sombras.
Compadecido dos homens que penavam com a escassez de alimentos, e de Ceres, que sofria com a falta da filha, Zeus deu permissão para que a cada ano Perséfone passasse seis meses na companhia da mãe na superfície da Terra; nos seis meses restantes, ela teria que permanecer no Hades.
Nesse período em que Perséfone subia à terra, Ceres ficava radiante com a presença da filha e fazia tudo florescer. Era o início da primavera. A jovem, quando chegava à terra, passeava pelos bosques, acariciava as flores, e deixava-se levar pelos braços de Zéfiro, o vento suave, a cada manhã. E, findo seu "tempo de férias", Perséfone tinha de voltar ao Hades e se iniciava a época do inverno. Ceres ficava desolada pela perda da filha, descuidava da natureza, deixava morrer as flores, os cereais, tornava tudo infértil. Apesar de ser um período difícil, tal "provação" é necessária para que a semente possa brotar e romper a crosta seca da terra.
Musa inspiradora
Pela abundância de cores, flores, frutos a primavera talvez seja a estação do ano que mais sirva de fonte inspiradora a pintores, músicos e poetas.
Nos últimos versos da música Cântico à Natureza de Nélson Sargento, Alfredo Português e José Bispo, é possível constatar o vigor dessa estação:
A primavera,
Matizada e viçosa,
Recheada de amores
Engalanada, majestosa
Desabrocham as flores
Nos campos, nos jardins e nos quintais
A primavera é a estação dos vegetais
Oh! Primavera adorada
Inspiradora de amores
Oh! Primavera idolatrada
Sublime estação das flores
Do samba para a música paz-e-amor de Beto Guedes, Sol de Primavera; nela, o cantor mineiro se refere à primavera como uma época de recomeço, de perdão:
Quando entrar setembro
E a boa nova andar nos campos
Quero ver brotar o perdão
Onde a gente plantou
Juntos outra vez
E como deixar de fora e emblemática canção É primavera, imortalizada na voz do síndico Tim Maia?
É primavera, te amo, meu amor
Trago esta rosa
Para te dar
Meu amor
Hoje o céu está tão lindo
Vai chuva
Não é apenas nas músicas, nas pinturas, nas festas populares e poesias que a primavera é lembrada; neste texto de Cecília Meireles, ela mostra a força com que a natureza é tomada pela chegada da primavera.
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Mais adiante ela nos direciona poeticamente para aquilo a que devemos ficar atentos nesta estação:
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos.
Mas deixemos de lado as teorias primaveris e a aproveitemos enquanto é tempo - é o que por fim nos aconselha a escritora:
Saudemos a primavera, dona da vida - e efêmera.
Promessa primaveril
A propósito: o prazer de ver meu canteiro florido foi tanto que prometo que, mesmo quando a primavera passar, me encarregarei de diariamente molhar minhas plantinhas. Aguardem!
- http://virtualbooks.terra.com.br/padregabriel/Primavera.htm
- http://www.sergiosakall.com.br/historia_arte/mitologia-grega-persefone-proserpina.html
- Meireles, Cecília. Obra em prosa. Volume 1.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Pubicado em 25/9/2007
Publicado em 25 de setembro de 2007
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