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Corpo e mente: passado versus presente

Ricardo Corrêa Peixoto

O intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreria a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto.

Francis Bacon, 1979

Por vezes nos deparamos com as superposições ou justaposições de diferentes tempos históricos e suas mentalidades adjacentes, por vezes antinômicas pela busca de tornar cognoscíveis os inúmeros contrassensos. Partindo da história das mentalidades ou ainda de uma produção historiográfica, cujo cerne está no inorgânico, em que o passado é negado aos olhos mas é corroborado por corações e mentes, a partir daí empreende-se uma espécie de arqueologia da mente humana, que se apresenta como uma dimensão imensurável e, por conseguinte, engendra o perigo iminente de anticientificidade, o que pode condenar ou não essa historiografia que se baseia em fontes psíquicas, imateriais e, porque não, metafísicas.

A partir dessas premissas, nos deparamos ironicamente com o homem em toda a sua excentricidade, inquietação, ávido por encontrar sentido para sua vida e/ou existência aparentemente sem propósito, apegando-se às suas verdades efêmeras, concepções paradigmáticas que ousam por um certo tempo explicar o mundo, teocentrismo, racionalismo, holismo, religião, ciência, enfim, todas essas mudanças bem mais parecem uma corrida desesperada por algo convincente.

Ensandecidos dentro de um mundo repleto de regras, exigências, símbolos e arquétipos, ou seja, construtos artificializados e mutáveis, mas que respondem pelos substratos que alicerçam nossa frágil sociedade e todo seu conglomerado de instituições, que numa batalha inexcedível busca exorcizar seus demônios que a história mostra, sem nenhum sarcasmo, que eles atendem pelo nome de homo sapiens.

Por isso mesmo, somos levados a estabelecer uma série de relações e preencher inúmeros requisitos para estar em consonância com os ditames criados por nós mesmos, a fim de sermos aceitos, de estarmos aptos, trazendo sustentabilidade e exequibilidade para o sistema. Como diria Arthur Schopenhauer, “a nossa vida são como imagens em um mosaico tosco”. Assistimos às leis serem mudadas, às paisagens, à arquitetura; achamos grotescos o antigo, os cortes de cabelo, as roupas, os sapatos, estilos musicais, os padrões estéticos, estes últimos que de maneira precípua vêm gerando toda sorte de doenças psicossomáticas, como bulimia, anorexia e toda sorte de crises existenciais que, grosso modo, não passam de esquizofrenias sociais compelidas pela modernidade e seus rígidos padrões de beleza, erigindo, por assim dizer, uma segregação e/ou racismo estético.

Por outro lado, outras coisas permanecem perenes, quase intactas em nossas idiossincrasias e, por conseguinte, nossos julgamentos, nossos limites do aceitável; entretanto, ainda achamos inconcebíveis inúmeros delitos e os punimos, seja pelo encarceramento e/ou alienação, alijamento do convívio social ou mesmo pela pena de morte, que seria a recusa definitiva da sociedade ao direito do infrator à vida, por entender que não há retratação; enfim, atos como assassinato, estupro, sequestro, pedofilia, tráfico de drogas são dogmaticamente inaceitáveis; todavia, outros delitos começam a ser descriminalizados, abrandados a partir de novas racionalizações e pressupostos que mui lentamente vão sendo maturados na idiossincrasia social, como é o caso do usuário de drogas, que no Brasil já recebe punições mais tênues, por hoje entendermos que se trata muito mais de uma patologia do que de uma simples sublevação da lei; em outros países, como a Holanda, o uso de drogas é permitido e regulamentado, o que evidencia a inexistência de homogeneidade moral no mundo, denunciando nossa incapacidade de entender o homem que se metamorfoseia no tempo e no espaço.

Parece eternamente improvável que a humanidade, de modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda que por uns breves momentos, estão e têm estado entre os principais apetites da alma (Huxley, 2002, p. 5).

Um exemplo clássico de um braço do passado no presente são os tabus, que permanecem em silêncio por muito tempo até conjugarmos a devida capacidade de vencer as formas espectrais que nos constrangem.

Quebrar tabus exige ousadia para dizer o não dito, da mesma forma que requer prudência e coragem para mostrar a verdade ao olho desarmado. E tudo que é ousado, por si só, está fora de lugar, pois implica desacato e atrevimento. Atrevimento para expor aquilo que, por uma questão moral, jurídica ou política, não deveria ser dito. Daí a quebra de tabus revelar silêncios propositais da História que, por si sós, também são história... (Ferro, 2003, p. 7).

Se nos propomos a decifrar ao menos fragmentos de nossa história mental,  trazendo a lume memórias rarefeitas, esquecidas nos corações e mentes não só de grandes personalidades que dispõem dos meios materiais para oficializar suas leituras da história, mas, outrossim, de gente simples que, apesar de não dominar os substratos científicos e acadêmicos, são pessoas que à sua maneira racionalizam e interagem intuitivamente com essa história, ou seja, sem abarcar as incontáveis possibilidades de resgatar o passado, estaremos aprisionados não à História, mas a uma fábula ritualizada e chancelada por apriorismos que negligenciam as pérolas escondidas nos intelectos simples, circunscrevendo nosso diálogo entre as temporalidades em acontecimentos como as cruzadas medievais e seus imperativos, cujas forças motrizes tiveram origem na mentalidade religiosa, concomitantemente com os interesses comerciais, somadas às questões demográficas da época, respondendo pelo ideário dessas ações legitimadas por uma mentalidade em comum.

Podemos verificar a simbiose entre o arcabouço ideário e a forma com que uma dada sociedade se relaciona com o mundo físico; a exemplo disso temos os modos de produção, como o feudalismo, bem como o capitalismo que lentamente foi gerado das ruínas feudais, iniciado pelo mercantilismo. A inquisição chancelada pela igreja, que pregava o amor e o perdão mas que matava em nome da fé é também exemplo dos anacronismos e antíteses em todos esses períodos, que se caracterizavam por mentalidades com certo nível de congruência, simetria ao sistema, senão de maneira plena, mas, em caráter hegemônico, tanto que fora exequível. Todas as utopias sociais e devaneios são igualmente valiosos para um mapeamento sobre aquilo que exaspera, que busca uma dada sociedade, aquilo que lhe aflige, seus incômodos.

De fato, utopia é a negação de um presente medíocre e sufocante, é o espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso à perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo. [...] De qualquer maneira, a imaginação utópica é um produto da História que nega a História [...] A utopia é nostálgica, busca a harmonia edênica; é, portanto, um mito projetado no futuro (Franco Junior, 1992, p. 12-13).

Max Weber abordou a questão da congruência entre mentalidade religiosa e modos de produção, em sua obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, que sumariando liga a práxis religiosa à forma pela qual uma sociedade produz suas condições materiais de sobrevivência, o feudalismo em consonância com o catolicismo, que legitimava a ordem estabelecida, condenava a usura, incentivava o ócio, por assim dizer, e principalmente negava ascensão na hierarquia social, prometendo então uma recompensa pós-vida. O capitalismo, já em uníssono com o protestantismo, teria como substrato o ascetismo, a usura agora seria permitida, uma ascensão social seria aceitável, assim como o dogma do trabalho para colher ainda em vida as bênçãos divinas. Coincidência ou não, as religiões, apesar de todo seu apelo transcendental, meta-humana,  invariavelmente se portaram ao longo da história em cumplicidade com o universo secular, como diria Mikhail Bakunin:

Numa palavra, não é nada difícil provar, com a história na mão, que a Igreja, que todas as Igrejas, cristãs e não cristãs, ao lado de sua propaganda espiritualista, provavelmente para acelerar e consolidar seu sucesso, jamais negligenciaram organizar grandes companhias para a exploração econômica das massas, sob a proteção e a bênção direta e especial de uma divindade qualquer; que todos os Estados que, em sua origem, como se sabe, nada mais foram, com todas as suas instituições políticas e jurídicas e suas classes dominantes e privilegiadas, senão sucursais temporais. [...] No que diz respeito a isto, o protestantismo é muito mais cômodo, é a religião burguesa por excelência. Ela concede de liberdade apenas o necessário de que precisa o burguês e encontrou o meio de conciliar as aspirações celestes com o respeito que exigem os interesses terrestres. Assim, foi sobretudo nos países protestantes que o comércio e a indústria se desenvolveram (Bakunin, 1979, p. 242).

O passado e o presente se confundem nas mentalidades, o que soa inverossímil, híbrido e anômalo; entretanto, a inteligibilidade dos fenômenos sociais e humanos,  os costumes, as ideias, enfim,  esses aspectos situam-se numa área de entroncamento onde diálogos precisam invariavelmente ser feitos, precisamos mapear e encontrar o exato ponto de junção, o amálgama entre o inconsciente e o intencional, o individual e o coletivo, o público e o privado. Dessa maneira, teremos senão a verdade histórica, mas ao menos não seremos reféns de prolixas dissertações demasiadamente intelectualizadas, garbosas, mas despidas de espírito e verossimilhança. Não podemos incorrer no erro de dar primazia aos comportamentos da elite ou do proletariado, ou mesmo atribuir proeminência a um determinado agente histórico e sim encontrar o que há em comum entre os diferentes estratos sociais, a simetria entre os pólos, aquilo que faz com que coexistam numa mesma realidade histórica, mesmo diante de um confronto patente.

A mentalidade permeia as formas surdas e mudas das ações, aquilo que parece improviso, insólito, realizado mecanicamente; tudo isso na verdade representa as pulsões domesticadas, a reprodução de uma herança muitas vezes imperceptível, resultado de uma infusão de ideias que passam a ser internalizadas, levadas a uma dimensão bem próxima do inconsciente. Essas estruturas são as que mudam mais lentamente, o que gera constantemente uma dissonância com a realidade histórica concreta.

Sendo assim, a mentalidade corresponde a uma idiossincrasia coletiva, ou seja, a forma pela qual uma sociedade se percebe e se relaciona com seu entorno, com sua realidade, como ela explica e entende o que acontece à sua volta, como ela enfrenta o inteligível e o ininteligível, o sagrado e o profano, o que é moral e que não é, o que é condenável e o que é permitido, questões como sorte, azar, o mau olhado, as superstições, nossas preces para São Jorge ou para Ogum. O coletivo, com suas leis, seus instrumentos de coerção, suas sentenças, sua relação com a morte, sua música, seus ritos, sua ambiência, mitos, todos esses e outros tantos infindáveis aspectos, nos permite mapear o universo mental da humanidade. Enfim, um emaranhado de conexões que consubstanciamos a fim de perceber maiores esperanças, sem que de fato tenhamos alguma garantia de sucesso, mas que ao menos nos proporciona uma certa segurança.

Temos, outrossim, a coexistência de diferentes mentalidades numa dada época, uma espécie de antinomia ou anomalia sistêmica que gera conflitos devido à incongruência de ações e reações com a realidade histórica. Isso fica evidente ao abordarmos a doença do nosso século – o estresse –, gerado por um frenético estilo imposto pela cada vez mais exigente e concorrida vida moderna, comprometendo o lazer, o enlace familiar, as relações altruísticas, causando grave crise identitária e existencial.

A consecução epistemológica das mentalidades deve ser cuidadosa para evitar anamorfoses apriorísticas, uma vez que não se trata de mero reflexo mecânico engendrado por implacáveis corpos de ideias, muito menos imposições, mas são a construção e a desconstrução de teorias, normas; enfim, a mentalidade é forjada pelo confronto, por uma equação em desequilíbrio que teima por se equilibrar, que está ligada ao social mas não de maneira subjacente, não como apêndice, não é gerada por um indivíduo, por mais proeminente que este seja; a mentalidade é obrada pela coletividade, porém não necessariamente há consenso; cada grupo, mesmo vivendo num mesmo tempo, possuirá diferentes nuances; entender a mentalidade é olhar por detrás do espelho, é procurar o anverso do avesso, entendendo de uma vez por todas que o passado pode estar separado do presente pelo tempo, mas seus inexoráveis enclaves fantasmagóricos nos assombrarão no corpo e na mente, nos possuindo e manifestando-se em forma de medo, medo do novo.

Referências:

BACON, Francis. Novum organum ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
HUXLEY, Aldous. As portas da percepção (tradução de Oswaldo de Araújo Souza). São Paulo: Globo, 2002.
FERRO, Marc. Os tabus da história (tradução de Maria Ângela Villela). Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
FRANCO JUNIOR, H. As utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992.
Deus e o Estado, cujo título não foi de autoria de Bakunin, recupera a primeira, de 1882, organizada por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, publicada em Genebra pela Gráfica Juraciana. No livro Bakounine – combats et idées, lançado pelo Instituto de Estudos Eslavos, Paris, 1979.

Publicado em 2 de outubro de 2007

Publicado em 02 de outubro de 2007

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