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Primeiras experiências

Sabine Mendes

O primeiro curso que me chamou era assustador! Era muito mais sofisticado, em termos de ambiente, do que o curso em que estudei. Tinha uma videoteca, com filmes originais sem legenda! Tinha assinaturas de revistas americanas de todos os tipos! Eu nunca tinha visto coisas assim antes. Tinha a mesma sensação de parque de diversão. Gostava tanto do ambiente, de estar começando a trabalhar, da sofisticação na decoração e da existência de coffee breaks (foi meu primeiro contato com eles!) que às vezes tinha de me policiar e lembrar que, na verdade, esse era apenas um emprego temporário. Gostar seria como dormir com o inimigo imperialista. As aulas eram para executivos, em sua maioria aulas particulares. Algumas aconteciam nas próprias empresas e outras na sede do curso. Trabalhava-se com coleções de livros feitos para o chamado International English, publicados por editoras de universidades estrangeiras e vendidos no mundo inteiro.

Por que era assustador? Tudo começou no treinamento. O treinamento que, na verdade, era um teste para ver se nos adequávamos à metodologia. Aquela coordenadora falando com uma fluência invejável e mostrando que livros usar para que períodos, falando de abordagem comunicativa, mandando a gente ler um monte de coisas. Eu precisava de toda a minha concentração e mais um pouco na hora de falar. Morria de medo de falar alguma coisa errada em inglês! E se eu errasse uma preposição? E se trocasse o “do” pelo “does”? Você não tem ideia do que é passar pelo primeiro treinamento, ouvir falar de abordagens pedagógicas, sendo que a única coisa que você consegue ter em mente é: “Lembra que na terceira pessoa se usa does... lembra que tem “s” no final do verbo... Lembra que na terceira pessoa se usa does...” Eu ouvia os outros professores falando e morria de vergonha de falar também. Todos pareciam saber falar inglês melhor do que eu e, quando por acaso alguém cometia um erro, era quase palpável o sentimento generalizado de: “Esse aí não vai entrar, não!”. E eu pensando: “Preciso do dinheiro... concentre-se, Sabine... na terceira pessoa se usa does”. Você não tem ideia da tortura que era!

Bem, talvez você tenha...

Como na maioria dos treinamentos por que passei, era um processo de seleção no qual se passava o básico do que se esperava do professor em sala de aula, pedia-se que o candidato preparasse uma aula e apresentasse e, de acordo com o resultado e a participação ao longo do treinamento, selecionavam-se os mais aptos. Tudo isso em três ou quatro dias. Eu não aprendi muito sobre abordagem comunicativa naquele treinamento. Saí de lá com a vaga noção de que abordagem comunicativa era não ser tradicional, não ficar preso a quadro e exercícios de “complete” e fazer com que o aluno falasse bastante. Procurar montar situações nas quais o aluno tivesse de falar, situações interessantes. Mas eu sabia tão pouco sobre metodologia que, no final das contas, isso podia ser simplesmente o que eu queria ouvir.

O mais importante a resgatar para mim, no entanto, é essa tortura de falar inglês como uma profissional do inglês. Tudo ajudando a reforçar a visão de que professor não erra nunca, professor sabe tudo sobre gramática. Você pode estar pensando: “mas, pelo amor de Deus, essa coisa de terceira pessoa é superbásica, não tem como você errar isso!”. Deve estar imaginando que eu não tinha fluência alguma, como assim?

Bem, você está em seu direito de imaginar. Mas não era bem isso, não, e nesse ponto aprendi outra lição importante, parecida com a da “moeda” na minha viagem: uma coisa é saber falar inglês; outra coisa é falar inglês para ensiná-lo. Cada vez mais eu me convencia de que, a cada situação nova que surgia na qual eu tinha de falar o idioma, eu tinha de reorganizar meus papéis, me reinventar, e nesse processo ficava meio atordoada, já que era tudo tão novo. Nessas horas (era minha primeira experiência profissional!) o vocabulário vai embora. Some. Porque não basta aprender a palavra e o que ela significa, é preciso reaprender a palavra cada vez que temos de utilizá-la em um novo contexto. Claro que isso foi ficando muito mais rápido com o passar dos anos! O que não quer dizer que, até hoje, eu não sinta um frio na barriga antes de uma experiência nova e precise de um tempo para me ambientar, me acalmar, quando vou usar o inglês em um contexto diferente. A cada novo contexto, uma nova insegurança: a primeira vez como professora em treinamento, a primeira vez como professora dando aula, a primeira vez em cada curso novo, com cada grupo de pessoas, na sala da pós-graduação... A primeira vez falando com um americano de verdade... Lembro-me de ter me sentido assustada quando fui dar um treinamento pela primeira vez em inglês, porque pensava: “Meu Deus, eu cheguei ao ponto em que meu inglês é referência para alguém! E se eu erro?”

No tal treinamento, então, eu percebi que certas coisas não saíam fácil para mim. Ocorreu-me, não estando totalmente “retardada” com a situação, que eu não havia aprendido inteiramente essas coisas. A questão do presente e do “s” na terceira pessoa era uma delas. O uso do passado irregular era outra. Eu reparava que os professores se gabavam de saber listas e listas de passados irregulares. E morria de medo de esquecer! Procurava não construir frases com esses passados, para não correr o risco de errar. Aliás, gastava muito mais energia não falando do que falando. Antes de cada frase, pensava um milhão de vezes. Cheguei a ensaiar frases em casa e a sonhar com elas. Era comum que um professor dissesse que o passado de think (pensar) é thought e em seguida completasse com bring/brought, fight/fought para ilustrar seu conhecimento de causa, forma totalmente legítima de demonstrar-se digno de contratação, mas que me fazia pensar: “Eu não sei o passado de todos os verbos! Assim pra sair falando eu não sei!”

Outra tortura generalizada eram as preposições. Quando usar on, in, at, about... Eu preferia formar frases sem preposições de nenhuma espécie, coisa que pode ser bem difícil. Eu sabia usar, veja bem, só não sabia explicar quando usar nem sabia usar sob pressão de continuar desempregada! Até que fui percebendo que havia uma espécie de etiqueta, misturada com código de honra, do treinamento para situações em que algum professor se enganasse com uma dessas coisas. O código dizia: “Generalize”. Um exemplo: Se você não tem certeza da utilização de alguma coisa e percebe que cometeu um erro, diga que “viu isso em algum lugar” ou “já vi sendo utilizado dessa maneira na televisão”. Vai ser difícil qualquer pessoa, a não ser um nativo da língua, dizer: “Não, você nunca ouviu isso!”. Outra forma de escapar era dizer: “Informalmente se usa assim” ou “Ouvi em uma música, sabe como é, licença poética!” Havia ainda o clássico: “essa forma é pouco usada, mais existe”. Tudo isso para não dizer: “Eu não sei, como é que é mesmo?”.

Devo dizer que, em anos de treinamento, como candidata ou como coordenadora, ouvi no máximo cinco vezes alguém dizer que não sabia alguma coisa.

Devo dizer também que, nesses raríssimos episódios, dos quais me lembro bem, observava uma reação parecida por parte dos demais professores: alguns aproveitavam a oportunidade para demonstrar que sabiam e ganhar pontos, outros olhavam com cara de espanto como a dizer: “E pode admitir que não sabe?”.

Claro que tudo isso pode ser só minha forma de ver as coisas, baseada na minha própria insegurança, mas como sou eu quem está escrevendo... Depois você me dá retorno disso.

Era um ponto em meu casamento com o inglês em que me descobria vivendo com um desconhecido. “Você já não é mais o que era antes!”. Na verdade, talvez a melhor analogia seja a de ter filhos. Não éramos só eu e o inglês curtindo falar mal das legendas, ouvir músicas ou imitar sotaque. Passamos pela fase em que os vizinhos dizem “esse seu marido não presta!”, quando eu mentia, dizia que gostava de outras coisas na faculdade e tinha vergonha do inglês. Vencemos o distanciamento e agora tínhamos de produzir uma coisa nova: uma aula. Por um lado, o inglês tornou-se completamente diferente na minha cabeça, algo a ser categorizado, listado, acumulado, organizado em frases de acordo com o nível de dificuldade... Por outro lado, começou a mostrar-se através dos livros, das publicações, dos filmes como material de trabalho.

A coleção de livros e materiais extras, por sinal, era apresentada com grande pompa no treinamento, quase como se fossem livros de autoajuda: “Aprenda a lidar com seu parceiro”, porque eu não me via (jamais!) dando aula sem um livro para me dizer a ordem das coisas. Conhecendo a complexidade das listas gramaticais a serem seguidas (no básico se ensina isso e, no intermediário, aquilo outro), eu senti vergonha da minha inocência no curso comunitário, achando que eu ia ensinando assim com fotocópias, com música, com materiais que tivesse à mão, sem ter uma organização para me amparar. Sentia-me, no entanto, sortuda por ter tido experiência como professora, por mínima que fosse, na qual eu me sentia relaxada para testar o que quisesse. Acho que todo professor deveria ter direito de encontrar um lugar para tentar antes de decidir. E o clima de pressão é tão grande nos cursinhos que, muitas vezes, isso não é possível.

O olhar dos outros foi fundamental no meu processo de construção como professora de inglês. Eu não parava de pensar: “Essas pessoas levam isso mesmo a sério! Existe técnica para isso! Não dá pra fazer com boa vontade não, tem que saber como fazer!” E sentia-me dividida entre o alívio de encontrar-me entre pessoas que achavam minha habilidade linguística (capitalista ou não!) algo útil e digno de salário (ainda que mísero!) e o medo de estar me afundando no lado negro da força, prestes a me tornar uma especialista em algo politicamente incorreto.

Publicado em 2 de outubro de 2007.

Publicado em 02 de outubro de 2007

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