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Qual a cor de Machado?
Leonardo Soares Quirino da Silva
Identificado com o liberalismo democrático dos anos de 1860-1880, com profunda aversão ao positivismo e ao evolucionismo; este seria o perfil ideológico do Bruxo do Cosme Velho, revelado na palestra O Nó Ideológico de Machado de Assis, apresentada pelo professor Alfredo Bosi (USP). A palestra encerrou o I Encontro Machado de Assis/Fundação Casa de Rui Barbosa, onde foi realizada, no dia 9 de agosto.
No início de sua apresentação, Bosi observou que os estudos de ideologia retomam importância na década de 80, após a maré estruturalista. Segundo o professor, esses estudos se realizam ao longo de dois eixos: o primeiro vê a ideologia como instrumento de dominação política; o outro, como uma visão de mundo, daí seu caráter difuso.
O professor da USP considerou essa dualidade útil nos estudos literários e, em especial, para falar sobre Machado de Assis. “Se formos nos perguntar efetivamente qual é essa ideologia, se essa pergunta for cabível para um romancista, temos que entender as ideologias dominantes em seu tempo”, declarou.
Bosi observou que a metáfora do nó é a que melhor traduz a trama ideológica em que se encontrava Machado. As várias influências sobre a forma como o autor via o mundo seriam como “vários fios unidos de modo intrincado, sem que se possa acompanhar um sem se tocar no outro”.
Memórias Póstumas
Na análise dessas diversas influências, o professor da USP se baseou na análise de Memórias Póstumas de Brás Cubas. O episódio que serviu para o início das discussões foi o capítulo que trata do romance com a cortesã Marcela, em que Brás fala da importância dos joalheiros nas histórias de amor (Capítulo XVI – Uma reflexão imoral).
Para o professor, se a passagem se interrompesse nesse ponto, “nosso pesquisador ideológico só poderia puxar uma linha”. Para Bosi, essa linha remete diretamente ao liberalismo excludente, que reflete a burguesia extremamente conservadora, de onde vem Brás, e que fundou o Estado recém-independente.
Bosi observou que essa corrente ideológica vingou não somente nos países e regiões onde predominava a economia escravista agroexportadora, mas regeu todo o ocidente atlântico desde o período napoleônico até a restauração monárquica francesa. O objetivo de seus proponentes era pôr fim à Revolução Francesa. Entre estes, estava Guizot, não por acaso citado no jornal que Brás criou, e era a principal corrente ideológica no período da juventude de Brás; foi explorada por Machado de Assis, que, segundo Bosi, a representa em alguns personagens. Estes escapariam do tom caricatural graças ao domínio que o escritor tinha da língua. Entre os porta-vozes dessa corrente, ele citou Cotrim, cunhado de Brás Cubas, e Damasceno, cunhado de Cotrim, que, no capítulo ICII, falam sobre o impacto da pressão inglesa sobre o tráfico e o medo da democracia o que faz com que um deles afirme que a revolução está próxima.
Liberalismo ético
Mas o episódio de Marcela não se encerra com os joalheiros, observou o professor. Se assim fosse, o pesquisador ficaria com a impressão de um Machado politicamente reacionário, observou Bosi.
Para o professor, é na continuação do capítulo que o pesquisador vai encontrar o segundo fio formador do nó ideológico machadiano. Brás considera imoral sua reflexão sobre a importância dos joalheiros. Quem o faz é o personagem, que morre em 1869, e Machado de Assis, que escreve o livro em 1880.
Isso tem importância na malha do livro. “Em outras palavras, a crônica frívola da burguesia colonial de 1822 cede ao tom e à perspectiva crítica do ideal político denunciante, que agora é o liberalismo idealista e ético dos anos 80”, notou Bosi.
O professor observou que o debate ideológico nos anos de 1860 foi centrado na discussão sobre o projeto que resultou na Lei do Ventre Livre. Por isso, para ele, a nova ideologia liberal que surge é, na verdade uma contraideologia, quando se toma como referência o liberalismo excludente das décadas de 1820 e 30.
Terceiro fio
Ainda na análise do capítulo XVI, Bosi chamou a atenção para um terceiro fio do nó ideológico do autor, mais sutil mas não menos importante, quando ele diz que “o que eu quero dizer é que a mais bela testa do mundo não fica menos bela se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada”.
O professor notou que a primeira posição moral, mais severa, que condenara o brilho das joias, agora parece mais concessiva, como quem reelaborasse, no estilo diplomático de quem morde e assopra, pois o “brilho das pedras raras pode, afinal, muito bem se casar com a beleza da mulher e com o amor que lhe dedica o seu amante”, declarou.
A partir daí, Bosi discute a ideologia de moral de Machado de Assis, em que destaca a influência do moralista francês Rochefoucauld.
Recorrendo à análise do capítulo XXXIV (A uma alma sensível), o professor fez um paralelo entre a reflexão de Brás sobre sua atitude ao desfazer o noivado com Eugênia e uma máxima do moralista francês, para quem “somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros”.
Nesse capítulo, o palestrante lembrou que o personagem pondera com um leitor imaginário se teria sido cínico naquele episódio e declara:
Não, alma sensível, eu não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemonium, alma sensível, uma barafunda de cousas e pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, que isso às vezes é dos óculos, e acabemos de uma vez com esta flor da moita.
Machado na maturidade
Para descobrir se existia uma ideologia ou contraideologia na obra madura de Machado de Assis, Bosi optou por adotar uma lógica excludente. Para ele, antes de afirmar sua adesão a uma ou outra linha de pensamento, seria mais fácil identificar a opção ideológica do Bruxo do Cosme Velho pelas correntes que escolheu satirizar.
O professor da USP lembrou que, no fim do século XIX e início do XX, havia três correntes ideológicas principais no mundo ocidental. A primeira era o positivismo de Comte; a segunda, o evolucionismo de Spencer; e o liberalismo democrático, à qual Machado de Assis se filiava desde os tempos em que cobrira o Senado como jornalista, nos anos de 1860.
Nas Memórias Póstumas, Bosi destacou dois momentos de crítica ao positivismo. No primeiro, no reencontro de Brás com Quincas Borba, que, a exemplo de Augusto Comte, fundou uma religião.
Para o professor, contudo, o melhor exemplo da posição de Machado com relação ao positivismo e ao evolucionismo é expressa no delírio de Brás, considerada por Bosi uma alegoria antiprogressista por excelência. Para o professor:
Nessa aversão ao comtismo, trabalhava no pensamento de Machado uma franca relutância em admitir o sentido imanente ao transe histórico, sendo essa razão mesma do progressismo do século, quer no sistema positivista, quer no evolucionista, que aplicava o darwinismo à história da humanidade, o critério naturalista, pelo qual cada geração previa a vitória do mais forte e dos mais aptos; logo, os melhores vencerão na luta pela sobrevivência.
Ainda com relação ao evolucionismo, Bosi observou que, apesar de Machado de Assis não deixar de reconhecer o predomínio da força na relação entre os homens, não fazia a apologia desse triunfo.
Machado na rede:
Publicado em 2 de outubro de 2007
Publicado em 02 de outubro de 2007
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