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A poesia ainda existe
Cláudia Dias
Anular
Mão e hélice contracenam
como os cones de uma
ampulheta partida ao meio
(areia derramada aos pés
do tempo, entre cacos
da espera e desespero)
Como pensar, ou fazer, poesia se no meio da noite uma rajada de fuzil irrompe teu sono e te expulsa do regaço turquesa de um sonho ancestral? O cotidiano do Rio de Janeiro assombrado pela mídia, bandidos e polícia parece ser o lugar menos provável para o surgimento de um poema.
Mas a poesia ainda existe e há poeta capaz de subverter a amargura dos tempos sombrios, quebrar a ampulheta do tempo e cristalizar o instante em que a cidade resplandece azul. Leonardo Martinelli é um deles. Hoje, quem se arrisca a colocar o dedo no ventilador sabe que no poema há vagas para os abismos da modernidade e eles são a matéria poética deste jovem poeta. O que torna especial alguns de seus poemas é a disposição que ele apresenta de trabalhar poeticamente as precariedades do nosso tempo sem se deixar fascinar pela negatividade, nem fazer dela a lente pela qual vê a vida. O defunto baleado pela polícia em plena fuga, a página indisponível na internet, a falta de grana: tudo cabe no poema.
Dorian
Então fitei
a tela - meus
olhos impressos
no espelho
(leitor-irmão
de sangue e tinta
ausente)
Cupins e traças
se encarreguem
da moldura:
quem sabe de mim
sou ele
Dedo no ventilador é o primeiro livro, e apresenta as irregularidades típicas de uma trajetória poética em formação. Entre poemas insossos como Telefone "Sinal de véspera/ em seu vórtice/ mudo - granada/ caseira, à espreita/ sopesando números, e outros de intensa carga poética como Medidas "(...) sorrimos estanques/ ao colo da sorte/ desatando o dia/ a golpes de foice", o que se esboça, nesse momento de estreia, é a perspicácia de imprimir aos acontecimentos da vida cotidiana a engenhosidade dos versos resultantes do estudo erudito na academia de Letras. Leonardo é doutor em literatura comparada e músico de uma banda underground. Partilhando do desamparo de uma geração que já foi chamada por Haroldo de Campos de pós-utópica, Leonardo desfere outras nuances à obscuridade típica dos primeiros poetas modernos.
Do subterrâneo, que o poeta elege como pórtico, é subvertido o niilismo peculiar aos poetas malditos. Outra característica, que talvez seja uma tendência da atual poesia, é a necessidade de ser ouvido, que ele anuncia no hall de entrada à primeira seção do livro, nos dois pequenos versos de Aníbal Cristobo: "me escuchás?/ no puedo verte". Não que Leonardo não guarde um quê de poeta maldito, persiste, ainda, um certo "romantismo desromantizado", como diria Hugo Friedrich, e em alguns momentos ele faz questão de preservar a obscuridade: como na terceira parte do poema A Amiga imaginária "Caso de ocupar-se/ o plano inteiro em minúcias/ táticas, submetido à fúria onomatopaica desse/ maquinário apenas/ entrevisto?". Momentos, aliás, dos menos interessantes do livro que acaba por denunciar o estágio inicial e ainda claudicante da trajetória do poeta.
A agradável surpresa são os poemas que expressam a capacidade de apreender poeticamente o que há de prosaico no cotidiano do morador de uma metrópole em pleno século XXI, como em Aniversário do motorista. No melhor estilo poema-acontecimento, revela a doçura do menino que vê poesia na inesperada festa de aniversário do motorista de ônibus: "placas advertem/ a iminência do trecho/ - basta girar/ o volante para que/ a imagem retorne: já/ não estamos a caminho/ de casa e então/ os gritos e as palmas ritmadas (...)".
A partir de pistas fornecidas pelo próprio autor em suas referências artísticas a Duchamp e a Chagall, podemos pensar que Leonardo estaria, como alguns de seus contemporâneos, entre o xeque-mate dado por Duchamp à arte contemporânea - que perpetrou o nó de que se tudo é arte, nada é arte - e a lírica de amor à vida que Chagall expressou em seus quadros, uma espécie de conciliação com a esperança que parece fazer-se necessária em tempos difíceis.
O livro é dividido em quatro seções: Viva-voz, Ocorrências, Poemas da Amiga e Dedo no Ventilador.
Conduzido pelos eleitos, sua família poética - Murilo Mendes, Jorge de Lima, Breton, Chagall, César Valejjo, Duchamp e Mário de Andrade - Leonardo Martinelli tem a virtude que falta em alguns de seus contemporâneos: a consciência da tradição poética, "Esquecer para lembrar: centelha inglória", como revela no verso de abertura de Museu cotidiano, primeiro poema do livro.
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Ficha técnica do livro:
- Título: Dedo no ventilador
- Autor: Leonardo Martinelli
- Gênero: Poesia
- Produção: Editora Bem-Te-Vi, 2005
Publicado em 23/1/2007
Publicado em 23 de janeiro de 2007
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