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Sobre a paixão

Eliane França

Deveríamos todos ter, em nossas profissões, a paixão dos astronautas, dos atletas, das mães apaixonadas. E me perguntam o que seria do gari, do ascensorista, do segurança. Seríamos todos limpantes, apertaríamos nossos próprios botões ao dar bom-dia aos médicos, cientistas e artistas que não teriam por profissão apertar botões e dar bons-dias, além do mais nossa segurança moraria na nossa confiança na inteligência do outro.

Que tal acabar com as semiprofissões, os simulacros de emprego, as funções degradantes, entediantes e que atrofiam mentes e corações? Que tal saudar os novos filósofos, escritores, ambientalistas, cirurgiões, técnicos esportivos, gênios em computadores, arqueólogos, pedagogos verdadeiros, comunicólogos, tradutores, agrônomos, circenses e milhões de outras funções que viram paixão e têm sua execução e sua competência garantidas pelo estímulo da própria pessoa que a executa sem necessitar de falsas regulações exteriores? Por que fazer uma pessoa ficar ligando para a casa da outra para oferecer coisas que nenhuma das duas quer? Por que fazer um ser humano distribuir papeizinhos nos carros ou segurar faixas no sinal? Por que prender quem quer que seja em uma função burocrática, que é o aviltamento maior da inteligência do homo sapiens?

Há milhões de paixões a serem descobertas, por que desperdiçar tanto talento e tanta esperança? Tanta habilidade escondida... Simplesmente porque quem deveria estimular essa paixão não tem nenhuma. Já se acha tão alijado contando feriados e os dias para as férias que não percebe que sua paixão não está ali. Aliás, nem sabe, o coitado ou a coitada, qual sua verdadeira paixão. Não, não é contar notas em um banco, tampouco o ócio criativo. Talvez seja comprar, comprar. Mas isso não é paixão para ninguém, pois nunca aliviou o mínimo de angústia que mora em todos os corações viventes. Pergunte a um maestro ou a um maratonista se sua profissão lhe aliviou essa angústia por pelo menos um décimo de segundo... provavelmente sim. Isso significa que a humanidade está no caminho certo ao se apaixonar e no caminho errado ao se banalizar. Salve os construtores, navegadores e veterinários. Mas, principalmente, salve os apaixonados.

Imagine subir à Lua sem uma mínima paixãozinha que fosse! Morte certa, a própria Lua coraria. Mas ir a uma sala de aula e odiar cada serzinho que está ali é considerado comum. Não ofende ninguém, só destrói invisivelmente corações.

Depois do tanto que já se descobriu sobre o ser humano e sobre como ele aprende, é no mínimo uma vergonha ter essa profissão em que não se é especialista em nada, apenas se leu um pouco mais – nem sempre – do que as crianças sobre determinado assunto e não quer saber nada sobre Epistemologia, Psicopedagogia, sobre a mente humana. E, o mais trágico, colocar a culpa nas crianças. Querem “passar conteúdos” (estariam eles amassados?) ultrapassados pelo conhecimento superior da humanidade, repetindo banalizações que nem foram questionadas, e as crianças, esses monstros, não querem ouvir. Sábia a biologia. Eles protegem os próprios ouvidinhos tentando lembrar aquela música que aprendeu, treinam a mira com a bolinha de papel, criam desenhos excelentes num pedaço de papel, deliram com outro mundo, conversam com o colega, socializando, buscam seguir a biologia do homem, que é se interessar por algo que alcance a inteligência.

O homem não tem instintos, tem inteligência. E se a tiram, o que lhe resta? Distribuir papeizinhos? Não os deixe cair na entropia por falta de paixão daquele que se acha vilipendiado pelas crianças mas que, na verdade, aviltou-se quase por si próprio cedendo à ordem vigente, não descobrindo sua paixão ali dentro ou fora dali, que não lê, não ouve, mal fala e mal vê. Mas o pior: acha que sabe.

Sabe o quê? Falar mal? Falar mal de crianças? Onde está a sua paixão? Se não está na sala de aula, no contato com as crianças, saia dela, por favor. Vá ser útil em outro lugar. Vá procurar sua paixão, pelo bem da humanidade. Mire-se no astronauta, no recordista, no neurocirurgião. Saia da sala de aula, porque se até agora não descobriu que a paixão (assim como a inteligência e a moral) é uma construção e não cai do céu, não merece ficar nela. Não merece se torturar de tal maneira e causar um mal maior àqueles que não descobriram ainda sua paixão.

Que venham os psicogeneticistas, por favor. E todos eles apaixonados por essa esplêndida coisinha chamada mente humana.

Publicado em 16 de outubro de 2007.

Publicado em 16 de outubro de 2007

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