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A sociedade paralela e/ou corpos sociais e socioculturais autônomos

Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva

Os seres humanos são a única espécie que tem história. Se têm também um futuro não está tão claro. A resposta está na perspectiva de movimentos populares firmemente enraizados em todos os setores da população, dedicados aos valores que foram reprimidos ou postos à margem da ordem social e política existente: comunidade, solidariedade, preocupação com o frágil meio ambiente que deverá sustentar as gerações futuras, trabalho criativo sob controle voluntário, pensamento independente e verdadeira participação popular em todos os aspectos da vida.

Noam Chomsky

Introdução

Este artigo tem por objetivo verificar a situação do excluído social na cidade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX em suas principais características, considerando sua passagem de uma condição apenas miserável para uma situação social configurada no que chamamos sociedade paralela. Representa o espaço dos excluídos sociais, dos compositores de outra ordem social, alternativa, um outro mundo de relações absolutamente independentes e diferentes. Nossa preocupação central é apresentar os pilares teóricos da existência de uma sociedade paralela no Rio de Janeiro de então, que se mantinha de maneira autogestora e cuja existência preocupava as instituições do Segundo Reinado.

A gênese da violência na cidade do Rio de Janeiro

Entre 1850 e 1890, período que se estende do ano da paralisação do tráfico negreiro ao início da fase republicana, a vida produtiva da cidade passou por uma série de mudanças. Uma delas foi a criação de sociedades paralelas.

Tais sociedades eram compostas por pessoas que se organizavam em grupos conhecidos como maltas de capoeiras; a sociedade paralela, em razão de seu caráter proxêmico, emocional, era corporificada na violência, principalmente pela necessidade de manter a territorialidade, visto que sua estruturação caracterizava-se por ser diferente da tradicional (Zusman, 1991). Acreditamos terem sido formadores de uma cultura própria e especial que os identificava.

O caráter peculiar dessa sociedade paralela está nos hábitos e comportamentos que enfatizamos com o propósito de compreender a dinâmica interna que condiciona as relações econômicas e sociais que definem e sustentam a marginalidade como forma de resistência ou potência oposta ao poder constituído. Por seu sentido de corporificação grupal, expressa por vezes na linguagem, optamos por uma abordagem respaldada no conceito de bandos, aqui entendidos como grupos que se insurgiam contra a ordem estabelecida.

Era significativo que existissem, no interior dessa sociedade paralela, formas flagrantes de controle social, além dos choques existentes entre ela e a sociedade tradicional. Havia também formas simbólicas de dominação.

Foi um tempo em que a cidade vivia aterrorizada pelo capoeira; não possuía nenhuma lei que sistematizasse seu combate e, por conseguinte, promovesse a ação de coibi-lo. Essa lei só apareceu muito tempo depois, quando a sociedade paralela já estava enraizada, oferecendo resistência organizada - inclusive culturalmente - e não mais se dobrando facilmente à ação da polícia.

Sociedade paralela: a ordem do diferente

O Rio de Janeiro sofreu diversas transformações ligadas basicamente a dois fatores: a crise da cafeicultura fluminense e a explosão demográfica (Gomes; Ferreira, 1987). No que tange ao espaço e, principalmente, ao problema da moradia, as mudanças também foram significativas. Grande número de fazendeiros e comerciantes deslocou-se para confortáveis solares, localizados na parte ocidental da cidade, abandonando o centro comercial. Este, contudo, continuou a abrigar os antigos casarões, que passaram a ser subdivididos.

Além desses espaços, ocupados por pessoas de baixa renda, a cidade contava com casebres e cortiços que eram verdadeiros esconderijos. Dentre a população urbana marginal concentrada nessas moradias, encontravam-se pessoas turbulentas e capoeiras (Carvalho, 1987, p. 15).

A historiografia contemporânea pouco privilegia aqueles que permaneceram à margem dos setores produtivos da sociedade. Jean Claude Schmith, admitindo que o pesquisador sente-se limitado quando procura abraçar em suas análises a totalidade social, sugere a necessidade de um olhar que se estenda ao objeto através de suas franjas (Schmith, 1990, p. 261). Uma história invertida assim é recomendada por ser reveladora de múltiplos pontos de observação que devem espelhar a crise de consciência da sociedade em que se inscreve e levar em conta, igualmente, seus problemas materiais.

Verificar a problemática do excluído social pelas formas de reprodução da ordem gera a necessidade do estudo de questões como as formas de exploração e dominação de uma determinada sociedade. Observar quantitativamente o número de pessoas é apenas o primeiro passo. Há que se verificar a amplitude das injustiças sociais que são inerentes ao próprio funcionamento da sociedade.

Bronislaw Geremek apresenta dois planos de realidades sociais para abordar essa problemática: sociocultural e socioeconômico (1976, p. 34). Eles ocorrem quando um indivíduo - ou mesmo um grupo -, podendo participar de um determinado conjunto de relações de produção, coloca-se na condição de excluído da hierarquia de valores dessa sociedade. Pela recusa, afasta-se também do referencial que a ordena, razão pela qual acaba assumindo a condição de excluído social. Nesse caso, a recusa codifica as passagens da cidadania plena para a marginal e desta para a de excluído, estabelecendo para isso até mesmo o ritual de tal mudança.

Geremek levanta ainda a hipótese de que nem toda marginalidade pode ser considerada vil, já que existiram algumas positivas. No caso brasileiro, por exemplo, o vínculo de dependência entre a população oriunda da escravidão, fossem eles libertos ou escravos, era muito forte e gerava ligações perigosas tanto para dominadores como para dominados. No Segundo Reinado, o declínio paulatino da escravidão garantiu novas formas de relações que lembravam as antigas. Os escravos ao ganho mantinham acentuada dependência do espaço urbano. O mesmo ocorria com o liberto e até com o brasileiro livre.

Michelle Perrot fala de uma camada de pessoas excluídas socialmente pelo analfabetismo. As formas de tratamento que a sociedade lhes impõe, negando-lhe a palavra, não promovem sua destruição. Um outro elemento do elenco de ingredientes do excluído social é a vergonha social. Tais pessoas acabavam vivendo em grupos, constituindo os denominados bandos de companheiros (1991, p. 315).

Maria Helena P. T. Machado defende a existência de uma camada de trabalhadores informais e flutuantes na cidade de São Paulo entre 1890 a 1914. Registra que o aumento demográfico e o desenvolvimento econômico possibilitaram o aparecimento de tais tipos de trabalhadores casuais, apresentando, como consequência, "o inchaço do setor informal da economia, o crescimento desmesurado de formas múltiplas de trabalho temporário, do subemprego e do emprego flutuante" (Machado, 1984, p. II).

Ela afirma ainda que esse grupo, em sua luta diária para sobreviver, desenvolvia uma "experiência cumulativa de improvisação" e que mudava "quotidianamente de ofício". Contudo, sua abordagem privilegia a São Paulo de 1890 até 1914, um período imediatamente posterior ao que nós observamos.

Thomas H. Holloway trata da relação polícia versus resistência à repressão. Apresenta quadros estatísticos onde são claros os volumes de prisões efetuadas. Entretanto, não se preocupa em verificar esses mesmos dados numa tabela mais sequencial, em que os intervalos de tempo para o período são menores. Não trata da corporificação do grupismo, por nós denominado sociedade paralela, em que a resistência se cristalizava. Ele observa apenas a instituição policial e seus problemas. Em nossa pesquisa investigamos essa instituição com lentes ampliadoras dos problemas menores que, ao mostrar suas ações e relações, ajudam a conhecer melhor o marginal.

Quando trata das fronteiras internas da marginalidade, Jean Claude Schmith considera que seus espaços são fragmentados, que não há economia de mercado eficiente e unificadora de todo o universo conhecido. Demonstra que as direções apontadas revelam vários espaços justapostos e imbricados. Isso porque as pessoas que habitam os grupos da sociedade paralela atuam pelo seu livre arbítrio, "avançando ou recuando sucessivamente ao sabor da extensão de suas culturas" (Schmith, 1990, p. 268).

Muitos caíram na condição de excluídos pela prática da mendicância, vagabundagem e criminalidade, provocando todo um conjunto de comportamentos defensivos e de rejeição por parte da sociedade tradicional.

A sociedade paralela é aquela ordenada diferentemente da que vive sob a égide da lei. Uma sociedade que, segundo Schmith, à luz dos dominantes, "se define negativamente", mas que, ao simples exame do espaço da marginalidade, revela-se corporificada em um tecido paralelo com uma teia de relações impenetráveis. Trata-se do marginal que se revela consciente e contestatório, marcado por ser um excluído violador das regras e violento nos atos, em que, tomado de consciência e tomado de palavras, ganha categoria distinta e nova.

A palavra marginal é aqui empregada em função do espaço de complexidade existente na sociedade, no momento em que o indivíduo se encontra preso a uma suposta situação de convívio não organizado ou aparentemente desorganizado. Seu universo configura-se como um mundo diferente, que se justifica pela visão paradigmática de um mundo ordenado e regido por normas que determinam atitudes e comportamentos dos grupos sociais.

Quando as determinações e exigências estabelecidas não atendem mais às expectativas de uma sociedade como um todo, a tendência é haver rompimento das estruturas sustentadoras do grupo social. Um exemplo é o paulatino avanço das práticas capitalistas sobre as escravistas no Brasil, o que inviabilizou e superou um modo de vida social. É que, ao longo do Segundo Reinado, muitas atividades, antes oriundas da escravidão, vagarosamente começaram a perder a razão de ser frente ao novo processo de produção que se estabelecia.

Embora lento, o reordenamento de profissões, acompanhado de seu reajustamento, deu-se ao longo das novas exigências da vida econômica. Grande quantidade de pessoas foi excluída, relegada a trabalhos eventuais, e outras tantas ficaram sem nenhum. Uns como excluídos sociais, outros ocasionalmente nessa situação.

Nesse contingente encontravam-se escravos, libertos, livres, tanto nacionais quanto estrangeiros. Sabemos que, com a evolução da humanidade e seu crescimento tecnológico, cultural e moral, sempre surgem necessidades cada vez mais difíceis de serem atendidas. Pois é patente que toda produção de bens, tanto materiais quanto culturais, dificilmente está disponível para toda a sociedade em seu sentido amplo. Como apenas uma pequena parcela da sociedade se beneficia desses bens, a grande maioria caminha a passos largos para uma existência de exclusão.

Pensar na vida marginal na cidade do Rio de Janeiro, onde havia a maior concentração cultural e populacional, leva a considerar que uma enorme parcela de seus habitantes não tinha acesso a vantagens econômicas e educacionais, o que contribuía para uma crescente dificuldade na apropriação de bens culturais produzidos pela própria cidade.

Uma vez que as letras lhes eram negadas por várias razões, que possibilidades teriam essas pessoas ou seus grupos sociais, de avançar na leitura de suas vidas e do mundo que os cercava (Silva, 1987, p. 43)? Que novos espaços lhes eram reservados e a partir de que condições? Essas populações empobrecidas, vivendo na mais absoluta condição de miséria, buscavam uma saída nos espaços alternativos da subvida. Nesses ambientes, organizavam-se criando formas de convivência semelhantes aos bandos. Entender essa complexidade é a nossa proposta.

A marginalidade carioca alicerçava-se em uma tríade cujo primeiro elemento era a violação. O segundo era a violência, e o terceiro, a condição de excluído. Enquanto fenômeno sociopolítico, a marginalidade ocorre quando um determinado papel social é considerado, pelo grupo dominante, como dispensável e indesejável ao seu status social. Nessas circunstâncias, o exercício da autoridade, o espaço social e as possibilidades de aquisição de bens simbólicos institucionalizados tornam-se restritos pelos mecanismos de controle social. Em consequência, o agente marginal objetiva sua participação em espaços sociais alternativos, num diálogo de confrontamento e acordos informais dinamizados por dispositivos de reação e resistências.

Segundo o professor Petrus Maria Vlasman, o conceito de marginal não parte de análises quantitativas. Não se refere ao contexto sócioeconômico-cultural em que a maioria de um determinado povo vive, mas a um conceito ideológico de normalidade, norma definida por classes hegemônicas de formadores de opinião. Elas estabelecem o nível esperado em termos de qualidade de vida, extraído dos parâmetros de sua própria existência. Vlasman registra ainda que o mesmo processo de conceituação acontece com o vocábulo desenvolvimento, definido a partir dos padrões daqueles que se consideram desenvolvidos. Observa ainda que a marginalidade é vista como uma situação-problema de indivíduos, e pode ser resumida no vocábulo "pobreza, com suas sequelas lógicas de ignorância, apatia, doença, baixa renda, desemprego ou subemprego etc." (Vlasman, 1993; Azevedo, 1940).

Assim sendo, marginal é todo aquele que desobedece às normas de uma sociedade pela qual termina sendo abandonado, pois não se enquadra nas regras determinadas pelo grupo hegemônico. Todavia, a marginalidade abriga indivíduos que nem sempre se encontram reduzidos à condição de pobreza. Ela identifica-se basicamente com aqueles indivíduos que não cumprem as normas da sociedade. Portanto, nem todo pobre é marginal, nem todo marginal é pobre. O escravo, mesmo sendo uma mercadoria à luz da lei, colocava-se em condição marginal quando burlava as normas de conduta estipuladas pela sociedade.

Na década de setenta do século XX, Anibal Quijano refletiu sobre essa questão ao tentar explicar o processo de urbanização nos países latino-americanos. Para ele, a marginalidade é "uma forma particular de integração dos indivíduos numa estrutura mais ampla" (Quijano, 1978, p. 9). Não se trata de uma situação de mera exclusão na sociedade, mas de um modo específico de integração, algo inerente ao sistema. Contudo, ele se depara com dificuldades ao definir a forma de participação do marginal na sociedade.

A obra de Lúcio Kowarick postula que uma maneira não básica de participação pressupõe a existência de outra básica. Assim, é atribuída a Quijano uma posição conhecida como neodualismo. Trata-se de uma nova configuração do dualismo, já que dá a ideia de pólos opostos, como o marginal e o não marginal. Kowarick acredita ser esta "uma forma maniqueísta de dimensionar a questão, como sugerem os antigos argumentos entre a rigidez do bem e do mal" (Kowarick, 1975, cap. 6).

Não se pode negar que a noção de participação ganha um certo número de elementos à medida que deixa de ter autonomia e se isola do conjunto das relações sociais, articulando-se com uma abordagem que observa as formas de inserção dos indivíduos na sociedade. Mas as discussões sobre o tema não param por aí.

Luís Pereira relaciona os tipos de participação ligados à prática do marginalismo, revelando que há uma tendência do sistema capitalista de excluir as pessoas não preparadas, principalmente nas formações sociais que geralmente habitam a periferia dos centros urbanos. Investigando o período do Segundo Reinado, notamos que o país passava por uma transição do regime de trabalho escravista para o assalariamento pleno capitalista (Pereira, 1971; Alencastro, 1988, p. 30).

Durante essa passagem, as regras de comportamento social acabaram por sofrer profundas mudanças: foi extinto o banimento do meio social sofrido pelo escravo, mas sua participação nas formações sociais tradicionais gerou um processo de participação que Pereira chamou de participação-exclusão. Esse conceito supõe que a sociedade urbana determina o fenômeno, principalmente no quadro das formações capitalistas, pré-capitalistas ou até mesmo do capitalismo tardio, o que corrobora nossa tese.

Marialice M. Foracchi acredita na veracidade das ideias de Pereira. Aproveita-as e chega a superar algumas de suas limitações. Incorpora a categoria da dominação como determinadora das investigações sobre a marginalidade. Associa ainda a noção de participação-exclusão ao universo das representações simbólicas, justamente entendida como internalização das condições objetivas. Esta é a forma de articular o vínculo entre a estrutura de dominação e a situação marginal. Tal vínculo pode ser reconstituído através dos discursos dos próprios agentes ou relatos de terceiros. Assim, procurar-se-á observar a questão usando o discurso pinçado de matérias jornalísticas, crônicas e registros policiais da época.

Expressas na exclusão dos agentes, as contradições objetivas surgem como um tipo de participação específica do excluído, cujo sentido real não é totalmente captado pelos agentes. Queremos dizer com isso que o excluído se coloca fora do processo de desenvolvimento social e ao mesmo tempo dele participa, mesmo negando esse tipo de atuação. A verdade é que esse comportamento também é uma forma de participação. Ao portar-se assim, o marginal acaba optando por uma alternativa de vida com regras próprias e novas, havendo inclusive entre os membros desse grupo uma maneira igualmente nova de disputar e ocupar espaços nos centros urbanos, até mesmo os físicos e geográficos. A violação daí oriunda é relativa ao fenômeno da territorialidade, da disputa pela ocupação do espaço. Assim, é possível explicar fenômenos como a comportamentalidade dos capoeiras e dos turbulentos.

Negar as regras é uma forma contraculturalista de participar. Por essa ótica, o universo social paralelo acaba sendo o exemplo da sociedade alternativa pela negação. Mas não a vemos assim: ela, na verdade, é uma outra forma de vida social. Maria Célia P. M. Paoli (1974) desenvolveu um ponto de vista semelhante, porém restrito à contemporaneidade. Para ela, a participação-exclusão designa a condição que os grupos marginais possuem em relação à produção capitalista periférica e à estrutura de distribuição dada, revelada simbolicamente na produção de um modus vivendi específico. Ora, sabe-se que a condição de excluído gera um tipo especial de participação. Assim, o comportamento do marginal em sua sociedade será sempre alternativo ao oficial. Qualquer que seja o comportamento daquele componente em seu ambiente, ele estará nas proximidades da ilicitude.

É inegável a discussão existente sobre a questão causal da acumulação capitalista. Ela reúne e combina formas desiguais de produção e, consequentemente, relações diferenciadas de produção. Defendido este ponto por Lúcio Kowarick e outros, verifica-se que a questão não termina por aí; há variações. Ainda que seu ponto de vista seja correto, ao se aprofundarem as observações verificam-se outros aspectos. Um deles é a característica de negação no comportamento do marginal, que acaba promovendo uma sociedade diferenciada da convencional, a sociedade paralela, que se apresenta com regras específicas; um tipo variante de poder. Tal situação-problema passa a conviver como paralela à vida da cidade institucional. Ambas se comunicam quando os setores de repressão ou de correção (nem sempre de educação) tentam reintegrá-la, devolvê-la ao seio da vida que se acredita correta. Trata-se de uma comunicação geradora muitas vezes de choques e conflitos, pela incoerência dos métodos usados e porque penetra no universo cultural frequentemente desconhecido do grupo, provocando divergências não raro bastante polêmicas.

O contato entre a polícia e o marginal quase sempre se caracteriza pela violação de alguma norma. A presença da polícia gera a imposição do poder, através da violência das armas e da ausência de diálogo. Daí a impenetrabilidade de universos compactos de ambos os lados. Isso suscita um certo tipo de respeito, traduzido pela prudência no trato.

Tal retrato está na forma policial surgida no Brasil durante a segunda metade do século XIX, conhecida como polícia científica, ao exemplo da escola europeia, identificando no crime uma certa inteligentsia que precisaria ser entendida para ser combatida.

No tocante à relação do marginal com o crime, podemos dizer que se trata da condição de o agente ser veículo do ato criminoso. Nesse sentido, o crime praticado confere a seu autor a condição que ostenta. Ou seja, um justifica o outro. Nessa relação, evidencia-se a necessidade de verificar a condição do poder. Um poder que, aos olhos dos criminosos, é percebido como algo cristalizado. É difícil para eles avaliar que a potência oposta no crime se mantém através de uma capacidade de se autoalimentar que explica o mecanismo de reforço, isto é, a "necessidade de se justificar sempre com mais um crime" (Hobsbawn, 1976, p. 128).

Há um componente em tudo isso que não se pode deixar de registrar: é a urgência em manter-se poderoso, o que pode acontecer tanto através da inteligência como, mais frequentemente, da força física. O fato de planejar é sempre um sinal de grande liderança, porquanto cria a estratégia e também a tática. Na hierarquia, fica reservada para outros a tarefa da execução. Surge então uma escala de valores que é garantida pela liderança e pelas forças estratégicas, concentradoras e distribuidoras.

Reiteramos que há formas hierárquicas de potência nos grupos de marginais, ou marginalizados. Lúcio Kowarick afirma que os grupos marginais são conceituados a partir das exigências de acumulação do capital, segundo uma forma peculiar de inserção na divisão social do trabalho. Deste ângulo, o exército industrial de reserva e o custo de reprodução da força de trabalho são questões da maior relevância. O autor procura mostrar que a marginalidade nasce de contradições básicas e essenciais. Não se trata apenas de desajuste entre as partes constituídas da sociedade. Tal posição não é descartável. Entretanto, há aspectos que devem ser observados, pois ele trata de uma sociedade industrial, que não é o nosso caso aqui.

Fernando Henrique Cardoso coloca a questão da participação a partir de uma análise crítica das conotações da ideia de participação enquanto consenso, abordando-a num contexto de dominação. Tal posição é mais próxima da nossa argumentação. Coloca os marginais como beneficiados de parte dos frutos da sociedade, embora sob um modelo distinto de vida. Não se está vendo um tipo de participação engajada na concepção de um Estado oposto ao de marginalidade, impossível do ponto de vista das contradições do sistema capitalista. Mas as variáveis sociais oferecidas pelo comportamento marginal situam-se fora da norma.

No que tange aos comportamentos, acredita-se haver um Estado oposto ao da sociedade tradicional. Cardoso afirma ainda que, para que a ideia de participação não se limite a uma vaga afirmação valorativa, deve indicar que grupos, setores ou ainda que classes são capazes, num dado momento, de mobilizar e organizar os espaços socialmente dominados para que estes tratem de obter seus objetivos sociais (1972, p. 84). Manoel Berlinck parte de outro pressuposto, "o de que não existe marginalidade, mas sim pobreza, engendrada e mantida pelo sistema econômico" (1977, p. 11).

Ao tentar demonstrar a inexistência empírica da marginalidade social, o autor buscou identificar algumas organizações sociais concretas que permitem a sobrevivência e a adaptação do setor marginal, demonstrando que tais entidades não são qualitativamente diferentes das existentes no setor integrado da sociedade paulista. Contudo, trata-se de um caso alheio à cidade do Rio de Janeiro, embora no mesmo país e mesma época pesquisada. Sabemos da existência de vasos comunicantes entre esses supostos dois mundos. Eles não se distinguem estruturalmente, mas sim na sua dinâmica.

Além disso, verificamos a questão por outros aspectos, inclusive observando o quadro complexo do conjunto de componentes da marginalidade que habitam o ambiente no caso dos excluídos socioeconômicos. O autor não deixa de ter suas razões quando apresenta causas econômicas para a pobreza, pois elas de fato existem, porém se constituem num caminho para a marginalidade e a condição de excluído social. Sabe-se que não são as únicas responsáveis absolutas e diretas pelo surgimento da exclusão e do crime em seu universo, ainda que tragam o problema para a superfície do tecido social, tornando-o emergente e, portanto, a clamar providências urgentes e decisivas.

Configurando a sociedade paralela ou a ordem do diferente

Retirada de Schmith, a expressão sociedade paralela ou ordem do diferentepara abordar a população de excluídos sociais (capoeiras), verificamos a necessidade de aprofundar os estudos sobre os grupos que se formavam na marginalidade da cidade. Notamos que eles eram formadores de um tecido paralelo de relações impenetráveis aos demais (Schmith, 1990, p. 263).

Tais grupos estruturavam-se enquanto formas empáticas de associação. Não eram culturas institucionalizadas, mas formas culturais paralelas definidas por uma solidariedade pautada pela empatia, substitutas da forma normal de um social racionalizado. Segundo Michel Maffesoli, nesses grupos observamos que:

O sexo, a aparência, os modos de vida, até mesmo a ideologia são cada vez mais qualificados em termos ("trans", "meta") que ultrapassam a lógica identitária e/ou binária. Em resumo, e dando a esses termos sua acepção mais estrita, pode-se dizer que assistimos tendencialmente à substituição de um social racional por uma socialidade com dominante empático (1987, p. 17).

Os grupos que se formavam na marginalidade identificavam pessoas e ações e formavam, em conjunto, uma atmosfera interna própria, demarcando seu espaço de poder, hierarquizando-o e estabelecendo sistemas de subordinação e proteção. O que predominava nesses grupos era o dispêndio, o acaso, a desindividualização. O embriagado, o ladrão e o fugitivo acabavam na sociedade paralela. Sua força de grupo gerava uma forma de potência oposta ao poder da sociedade tradicional. Dentre suas características estava a proxemia (vida promíscua), analisada por Maffesoli.

Sua área geográfica de domínio exprimia e concentrava os indicativos de sua coesão e força. Era o local "daqueles que pensam e que sentem como nós", no entender de Durkheim (1926, p. 70), mas também aquelas áreas onde se concentravam as pessoas habituadas a tais maneiras de viver. Segundo Maffesoli:

Trocas de sentimentos, discussões de botequins, crenças populares, visões de mundo e outras tagarelices sem consistência que constituem a solidez da comunidade do destino (1987, p. 19).

A ideia de corpo, nesses grupos, aparece de formas diversas e muitas delas com grau múltiplo de volatilização. Os capoeiras, por exemplo, possuíam representação mais definida e consistente. Tinham ordem interna e regras, que passavam pelo que denominamos universo consuetudinário. Essas características faziam lembrar que o grupo era antes de tudo um corpo, e este era maior do que a própria individualidade. Entretanto, o "grupismo", como registra Berque, difere do gregarismo, pelo fato de que "cada membro do grupo, coincidentemente ou não, se esforça sobretudo para servir ao interesse do grupo, ao invés de simplesmente procurar refúgio nele" (1982, p. 167). Cada membro se esforça para servir ao interesse da corporação, mantendo-a coesa.

Nesse particular, o elemento capoeira expressava-se constantemente pelo comportamento. Mesmo vindo de outra malta, acabava forçado a proceder de acordo com as regras do novo grupo. Acreditamos que os microgrupos de ladrões e outras tipologias aqui mencionadas apresentavam graus semelhantes de coesão, porém eram mais voláteis no que diz respeito à durabilidade de sua formação e conduta.

Tomando como base essas características da sociedade paralela, podemos afirmar que, entre as pessoas que compunham seu contingente, seguramente estavam muitos daqueles que não tinham profissão definida, devido à situação instável em que se encontravam no mercado de trabalho. A cidade do Rio de Janeiro estava apinhada de homens e mulheres desocupados (Brasil, 1872, p. 58). O que nos levou a pesquisá-los foi o fato de conseguirem viver nessa condição social. A seguir apresentamos alguns números desses contingentes humanos.

Na paróquia do Engenho Velho encontramos um total de 4.750 pessoas, 2.212 integrantes homens e 2.538 integrantes mulheres sem profissão definida.

Na paróquia da Glória encontramos cerca de 6.295 pessoas sem profissão definida. Esta também apresentava superioridade de mulheres em relação aos homens: 2.048 homens para 4.247 mulheres.

A paróquia de Santo Antônio apresentava um total de 4.552 brasileiros livres sem profissão definida. Mais mulheres do que homens: 1.215 homens e 3.337 mulheres.

A paróquia do Espírito Santo contava com um total de 3.809 pessoas sem profissão definida, sendo o número de homens um pouco superior ao de mulheres: 1.929 homens e 1.880 mulheres. Era a segunda paróquia com um total de homens livres superior sobre o de mulheres.

Grande disparidade ocorria entre os dois sexos na paróquia de N. S. da Candelária no que tange aos sem profissão definida. Dentre as 1.136 pessoas sem profissão definida, apenas 124 eram homens, para 1.012 mulheres.

A paróquia de Sant'Anna, por sua vez, contava com um total geral maior que o das outras: possuía 11.085 pessoas sem profissão definida. Era a paróquia de maior população. Havia forte aglomeração de pessoas que habitavam espaço geográfico reduzido, provavelmente em condições de vida precárias. O número chegava a 4.018 homens; entre as mulheres esse número era bastante superior, chegando quase ao dobro da população masculina: 7.067 pessoas. Na paróquia de São José, havia um total de 4.706 pessoas sem profissão definida, 1.844 homens e 2.862 mulheres.

A paróquia de N. S. Apresentação de Irajá possuía 2.033 pessoas sem profissão definida, quase o dobro de mulheres em relação aos homens: 1.272 contra 761.

Investigamos também, no censo de 1872, os totais gerais para a cidade do Rio de Janeiro de pretos e pardos (o censo não fala de morenos e mulatos). Encontramos um total, entre os pretos, de 5.275 homens para 19.611 mulheres e, entre os pardos, 5.780 homens e 18.207 mulheres. Como podemos notar, havia diferença grande entre eles. O número de mulheres era maior que o dobro dos homens.

Comparando o efetivo de pretos escravos com o de brasileiros livres, inferimos que a distribuição por paróquias era bastante irregular. Confrontando totalizações, podemos apresentar um panorama mais abrangente da distribuição desse efetivo populacional sem profissão definida na cidade do Rio de Janeiro.

Com relação ao cotidiano dessa população sem profissão definida, acreditamos terem vivido pendularmente, apesar de não se poder defini-la com precisão, pois o número de ocorrências policiais não cita a profissão dos envolvidos.

No dia 28 de agosto, por uma hora da tarde, na Rua da Candelária, o procurador do Banco Rural José Bernardino Ribeiro, que conduzia diversos maços de dinheiro em notas, recebeu um grande empurrão de Francisco Manoel da Conceição, fazendo assim cair na rua uma porção daquelas notas das quais se apoderou. Preso em flagrante, foi restituído o dinheiro roubado. Abriu o subdelegado da Candelária o respectivo inquérito que remeteu ao Dr. juiz de Direito, providenciando em 17 de outubro como incurso no artigo 157 do código criminal, condenado pelo júri em 12 de novembro a 4 anos de prisão com trabalho e multa de 20% do valor do furto (Brasil, 1884).

Como em muitos registros não é mencionada a profissão do condenado, acreditamos que este poderia se enquadrar na camada de população sem profissão definida. É importante salientar que havia muitos crimes em que apareciam pessoas ocupantes de empregos de ínfima categoria, como domésticas, jornaleiros, madeireiros, tecelões, pedreiros e operários do setor de vestuário ou calçados.

Novos dados surgem após o exame do censo de 1872. Nele encontramos um universo de pessoas sem ocupação efetiva, pessoas que só em alguns momentos estavam trabalhando. Denominamos essa população trabalhadores de ocupação menor e temporária. Acreditamos ser este tipo de ocupação um vaso comunicante entre o mundo da sociedade tradicional e o mundo da sociedade paralela, devido à sua inconstância entre o mundo do trabalho e o da desocupação.

Pelo censo de 1872, podemos notar que essa população de ocupações menores, somada àqueles "sem profissão definida", constituía em parte o contingente do qual saíam os marginais da cidade do Rio de Janeiro.

População composta pelas "costureiras", que também aparecem em algumas ocorrências policiais. Atingem o total de 9.178, sendo 1.563 escravas. Os poucos representantes do sexo masculino que exerciam tal profissão eram escravos. Mesmo entre os brasileiros livres registram-se apenas 22 homens. As mulheres, portanto, predominavam, num total de 7.593 pessoas.

Os "operários em madeiras" também aparecem nas ocorrências policiais, com 2.971 integrantes, distribuídos pelas dezenove paróquias da cidade. Não há mulheres nos registros. Foram registrados 781 escravos integrantes desse ofício. O número era bem maior no que diz respeito aos brasileiros livres, chegando a 2.190 homens.

Quanto aos "operários em edifícios" que também povoam as ocorrências policiais da cidade, o número era alto. Tínhamos entre os escravos do sexo masculino um total de 644 pessoas e, entre os brasileiros livres, 1.127 pessoas.

Outra profissão comum nas ocorrências policiais era a de "operário em calçados": eram 724 pessoas, sendo 188 homens de origem escrava. Entre os brasileiros livres, o censo apresenta 533 homens e apenas três mulheres.

As ocorrências policiais também registravam um número muito grande de menores e adultos trabalhando como criados e jornaleiros. São totais bastante significativos, chegando a 11.579, distribuídos entre brasileiros livres, comparados àqueles de origem escrava: escravos do sexo masculino, 4.104. Entre os brasileiros livres, o número chega a 5.183 homens e 510 mulheres.

Outro tipo de profissão que aparece com frequência nas ocorrências policiais, é a dos "serviços domésticos". Essas pessoas estavam sempre envolvidas em problema de brigas com companheiros ou ainda em casos de envenenamento de seus donos. Seu total é bem maior que o de outros: chega a 42.361 pessoas. Escravos: 8.672 homens, 11.884 mulheres; entre os brasileiros livres: 4.225 homens e 17.580 mulheres. Nessa profissão havia também muita gente envolvida em crimes. Muitos homens pertenciam a maltas de capoeiras, outros aparecem como desordeiros comuns. O número de mulheres livres nessa profissão era muito grande, com presença constante nas ocorrências policiais.

Outro contingente de profissionais que aparece com forte frequência nos relatos policiais era o de "marítimos". Entre os escravos, totalizavam 1.051 homens. Entre os brasileiros livres, 7.422. Não havia mulheres engajadas.

Entre os "pescadores" havia incidência muito pequena de ocorrências policiais, mas o censo apresenta um total de escravos de sexo masculino de 174 pessoas. Não havia mulheres escravas nessa atividade. Entre os brasileiros livres havia 583 homens e 29 mulheres.

Conclusão

Descortina-se-nos a cidade do Rio de Janeiro que apresentava em seu cotidiano o choque entre dois mundos distintos: o mundo da sociedade cidadã, tradicional e o mundo da sociedade paralela, do excluído social. Optamos por apresentar este último como a "sociedade do diferente", vista pelo primeiro como sua parte maldita, ou seja, aquela que encontra na negação e no preconceito os maiores impedimentos à plena integração social.

Considerando o período e o espaço de nosso objeto de estudo, concluímos haver apreendido o curso de uma economia que caminhava para certa configuração competitiva. Ressalvando-se aqui as proporções da discussão em torno do caráter tardio da implantação do capitalismo, ou mesmo as posições que afirmavam a formação econômica pré-capitalista do sistema, o quadro socioeconômico em formação gerava sérias dificuldades à plena assimilação de uma mão-de-obra desqualificada, sem profissão definida, numerosa principalmente no censo de 1872.

Essas pessoas, por suas origens, ficavam na maioria das vezes à margem do processo de produção. Uma vez na condição de excluído social, tendia à formação de "grupos especiais", como os capoeiras, possuidores de regras de comportamento próprias, opostas à ordem social da cidade e dos que cumpriam a lei e as regras do bom viver.

Marcados inexoravelmente pelo desprezo e abandono, não só do Estado, mas do conjunto da decadente sociedade tradicional de modelo europeizante que vivia no Rio de Janeiro, libertos, escravos e também um grande número de estrangeiros associados aos livres nacionais marginais formavam um conjunto de "cultura paralela", corporificada, diferente e subterrânea, em que pesem seus vasos comunicantes com a sociedade tradicional. Desenvolveu uma cultura especial, que servia de código do ludíbrio, capaz de enganar aqueles que não conviviam cotidianamente com a marginalidade, inclusive a polícia. Muitas vezes, esse artifício servia não só como defesa do grupo mas também denunciava o quanto eram independentes e autônomas essas formações.

No caso dos capoeiras, a cultura atribuía-lhes características grupais diferenciadas, estabelecidas de forma hierarquizada e que demarcavam sua área de poder na cidade. Tinham pensar alternativo, desengajado da sociedade fluminense da época e eram combatidos ferozmente. Essa cultura especial representava, para a sociedade convencional, o chulo, o vulgar. Mas era muito mais do que isso: expressava formas de relacionamento e poder da vida subterrânea urbana do Rio de Janeiro.

Em nível social, os capoeiras representavam a parte maldita, contudo independente e organizada da cidade. Por incrível que pareça, foram protegidos por influentes políticos da época imperial brasileira, como Osório Duque Estrada, entre outros.

Quanto ao perfil institucional, embora a sociedade paralela fosse frágil em sua unicidade, havia ordem interna composta de regras de conduta, principalmente entre os capoeiras. Porém identificavam-se pouco com as da sociedade tradicional. A solidariedade e a coesão eram marcadas rigidamente. Eles possuíam um sentido religioso ligado e identificado com a terra. Fundamentavam seu comportamento na defesa do espaço, na territorialidade como elemento definidor de sua força. Mas, enquanto grupo, respeitavam e atendiam somente ao seu líder, opondo-se a toda forma de poder invasor, como a polícia.

Esta se mostrava incapaz de controlar a ação não só dos capoeiras mas de toda a marginalidade da cidade. As dificuldades no combate e controle social dessa massa se apresentavam no reduzido número do efetivo policial, incompatível com o espaço geográfico de vigilância.

A polícia errava sempre na estratégia e na tática. Inicialmente, por privilegiar notoriamente um combate voltado para o escravo e o liberto, num momento em que estes não possuíam maior volume de desordeiros. Era patente o medo que se tinha da nova condição social do ex-escravo e as consequências da sua libertação.

A dificuldade de ingressar na vida produtiva como braço útil foi responsável pelo ingresso do liberto, do escravo e de parte da população livre (tanto nacional como estrangeira) nesse tipo de vida grupal paralela da cidade do Rio de Janeiro.

Aqueles que se organizavam em grupos sobreviviam com certa ordem e construíam identidade cultural, como os capoeiras, entre todos os mais coesos. Costumeiramente violadores da ordem pública, ligavam-se ao subterrâneo político-social da cidade, configurando um corolário de ações violentas causadoras de conflitos. Possuíam crenças e hábitos religiosos fortes, geralmente ligados à explicação de sua origem e vida cotidiana. Praticavam tanto a microcriminalidade nacional (ocorrências comuns) como a macrocriminalidade nacional (crimes comandados por políticos ou partidos da época). Eram comuns casos de capoeiras que roubavam por iniciativa própria ou em bandos, mas também era corriqueiro encontrar maltas de capoeiras que prestavam serviços criminosos a partidos políticos.

Violar regras sociais era um comportamento comum a essa turba. Nessa violação, demonstrava, em contraposição, organização de sua ordem interna. Configurava-se um poder desordeiro. As maltas defendiam seus espaços territoriais movidas por ações violentas, muitas vezes camufladas e oportunamente usadas em épocas de festejos, como o carnaval, conhecido como Festa do Entrudo.

No volume total, representavam a face subterrânea da cidade, ou seja, o lado obscuro de uma urbanidade vivenciada na violação-violência. Esse tipo de sociedade no Rio de Janeiro, embora possuísse uma organização incipiente, sobrevivia na desocupação.

Ainda que não tenha sido possível o mapeamento, acreditamos que seu poder se definia num espaço físico demarcado geograficamente, pois, em relatos de jornal e ocorrências policiais, notamos a nomeação de ruas lembradas pela existência de uma determinada malta de capoeiras cujo espaço era a rua. Esses grupos costumeiramente aliciavam menores. Impunham o terror na sociedade, enquanto a marginalidade comum provocava apenas desordem. No geral, a ação da sociedade paralela investia contra a sociedade tradicional, burlando regras e opondo comportamentos considerados antiéticos, atentadores à moral, à ordem e à tranquilidade pública.

A sociedade paralela observada e seu vocabulário próprio representavam uma fronteiriça divisão de dois mundos contrapostos, como já aludimos no início da conclusão. Assim, representava uma cultura distinta, convivendo em hibridismo social. Para ela, o desafio era suplantar o poder público de uma sociedade europeizada que sucumbia pela miscigenação, pela inexorável necessidade de convivência dentro de um espaço urbano limitado, cuja disposição dos logradouros dificultava a separação e, ao mesmo tempo, permitia a convivência híbrida em seus becos e vielas.

Assim, a cidade do Rio de Janeiro apresentava-se com uma imagem social em que se confrontavam duas realidades sociais: a organizada e a desorganizada, construindo um império subterrâneo no subterrâneo do Império. Representava a existência de uma sociedade paralela. Minha tese não teve a pretensão de esgotar o assunto, interessou-se por ambas as realidades, conquanto a desorganizada tenha sido apresentada com riqueza de detalhes, pois se constituiu no objeto de estudo escolhido.

O perdão talvez tenha sido o mecanismo mais eficiente para o efetivo controle da sociedade paralela: a ordem do diferente. A complexidade dessa hipótese sugere pesquisas que agora encontram respaldo. A formação dos grupos, os grupismos modernos na cidade podem ter relação com o quadro histórico que apresentamos aqui. Fica o desafio, guardando-se as devidas proporções, de pensar a existência de uma relação de causa e efeito entre o corpo paralelo do antigo grupismo na cidade do Rio de Janeiro e o novo, mostrando que os últimos ainda se configuram como grupos paralelos, sociedades paralelas, dentro da ótica do excluído social. É um desafio saboroso para qualquer historiador.

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Publicado em 23 de outubro de 2007

Publicado em 23 de outubro de 2007

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