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A arte do ator

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Todo mundo sabia que Paulo Autran estava perto de morrer. A morte sempre anda com a gente, ela é sempre a última possibilidade de cada uma das infinitas vidas que o tempo trouxe à tona. Mas quando se dobra a esquina dos oitenta, então, a morte acaba se encaixando junto da gente e fica por ali, rondando, se apresentando a cada dia de forma cada vez mais clara. Apesar disso, sem nenhuma “funebridade”, a morte de Paulo Autran abre um buraco na arte brasileira que vai demorar muito a ser fechado. Sabe, nasci em uma família de atores amadores; minha mãe, minha madrinha, meu pai e meu padrasto, todos trabalhavam com teatro e eu acabei absorvendo alguma coisa desse universo.

Uma das coisas que eu aprendi é que o teatro é a arte do ator. A presença viva do ator é insubstituível, mesmo que não seja um ator shakespereano, em um palco italiano que simula uma parede invisível separando a peça da plateia; mesmo na rua, em espaços arquitetônicos diversos, em lajes de periferia ou em quadras de esportivas de escolas públicas o ator faz o teatro vivo, porque o ritual do teatro é antes de mais nada o ritual da presença do ator, de seu corpo, de sua voz, de sua aura.

Se havia alguém no Brasil que personificava esse entendimento, esse alguém era Paulo Autran. Quando Walter Benjamim escreveu, na década de 1930, o ensaio clássico A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o processo de massificação da cultura já estava em expansão. A ideia fundamental é simples: a arte está perdendo seu aspecto sagrado. Não há mais aura nos objetos artísticos, porque eles podem ser reproduzidos, clonados, digitalizados, fotocopiados, escaneados, embalados para presente e transformados em mercadorias enfileiradas nas prateleiras das lojas de departamento. Quem precisa assistir a um show da Ivete Sangalo para conhecer sua música? Quem precisa viajar até a biblioteca do Vaticano para ler os livros de Aristóteles? Quem precisa ir ao Louvre para conhecer as pinturas de Claude Monet? Ninguém precisa viajar a Dublin para ver Bono Vox se arrastando no chão de um palco em forma de coração enquanto canta uma música romântica ao lado de uma fã em êxtase sexual. A arte foi duplicada, replicada e disponibilizada na rede. Uma entrada no Google e estará à disposição do seu olhar toda a herança pictográfica da humanidade em formato .JPG.

O que Benjamim percebeu foi que a arte havia cedido ao processo de industrialização. Agora ela é um produto que pode ser fabricado em série e comercializado. Esse processo retira da arte seu caráter mágico de objeto único. Exaure a arte de sua sacralidade estética. Paulo Autran mostrou que Benjamim estava correto apenas em parte.

Muita gente não entende por que o maior ator brasileiro desprezava de modo tão explicito a televisão, em um mundo em que jovens atores e atrizes praticam as maiores misérias morais para conseguir uma ponta na novela das oito, em que desconhecidos se mutilam e se submetem ao ridículo para serem objeto de uma fama inútil e idealizada em qualquer reality show vagabundo, em uma época na qual atores e atrizes são utilizados pela grande indústria e depois são jogados no ostracismo como se fossem rolos de papel higiênico usados.

Em uma época como essa, é maravilhoso saber que o maior ator brasileiro não se reduziu a um ícone, mas manteve-se ligado à arte teatral: a última fronteira da aura.O teatro é assim, irrepetível, irredutível a um pacote, irreproduzível. Não se duplica uma apresentação teatral. Cada apresentação é única e toda apresentação exige a presença física do ator. Sua energia vital. Seu orgon. O mundo do teatro não é um mundo de imagens vazias e de caras e bocas bem torneadas em Photoshop. O mundo do teatro é o mundo da presença física do ator no palco.

É a resistência de uma forma artística que se manteve inerte diante de um processo de industrialização que afetou quase todas as outras formas estéticas. A era da reprodutibilidade técnica não chegou ao palco porque, como o próprio Autran ensinava, não importa quão bom vai ser o teleteatro, a telenovela ou a minissérie, elas sempre serão, no máximo, simplesmente bons programas de televisão.

E isso, me desculpem, é muito menos do que qualquer teatro.

Publicado em 30/10/07

Publicado em 30 de outubro de 2007

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