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Nem tudo está perdido

Alcione Araújo

Em conversa vadia, Darcy Ribeiro contava histórias de sua convivência com os índios, não me lembro se Kadiweu, Terena on Kaigang – uma das tribos do Xingu, onde viveu. Falastrão incorrigível, quando tomava a palavra ninguém mais falava, o que criava certo mal‑estar. Assim como, entre antropólogos, havia reservas ao empirismo de suas conclusões, carentes de metodologia científica. Aos meus olhos, porém, era um causer virtuoso, que contava bem as belas histórias que sabia. Como histórias me interessam pelo seu poder de encantamento, me deliciava em ouvi‑las, qualquer que fosse a interpretação – até as do próprio Darcy. Uma dessas histórias ganhou surpreendente desfecho.

Na tribo, ele observava o índio pai brincando com o filho indiozinho. O pai trabalha o barro com paciência e minúcia indígenas e conforma o vasilhame, espécie de bule, com bico, tampa, asa e adornos. Põe junto ao índiozinho que, com uma paulada, destroi todo o trabalho e se diverte – com a aprovação afetuosa do pai que, serenamente, inicia nova peça. O mesmo capricho e a mesma dedicação para o bico, a asa, a tampa e os adornos. Outra vez entrega ao indiozinho que outra vez a destrói a pauladas. E, assim, inumeras vezes.

Querendo ajudá‑lo na brincadeira, Darcy se aproxima e sugere: "Já que ele vai mesmo destruir, por que não simplifica, tira os adornos, o bico e a alça? Fica mais rápido". O índio estranha a sugestão: "Não estou com pressa. Brinco com meu filho, coisa mais bonita que fiz na vida, que vai ficar quando eu for, e quer brincar com o bico e a alça. Se não for com tudo direito, não vai querer brincar, vai achar que engano ele. Não vou ser honesto, ele vai achar que nenhum é honesto e que não há honestidade". Para o índio, brincar era jogo com regras que não admitiam trapaças, que infundiam valores, princípios de vida, e refluíam memória, cultura e religiosidade. Por isso, índio não ensina, índio educa. Verbos no passado refletem a contaminação do branco.

Entre nós, civilizados urbanos, os jogos educativos foram entregues, por pais e professoras, à raquítica imaginação da televisão, à cópia de trabalhos da internet, à emoção competitiva fundada não em viver, mas em vencer, vencer e vencer individualmente! – como se não fôssemos destinados ao outro e condenados à derrota final pela morte. E para alcançar a sacrossanta e ilusória vitória vale tudo: enganar, ludibriar, trapacear. Entre adolescentes americanos, educados para a onipotência, qualquer vestígio de derrota equivale à morte – levando os losers a fuzilar colegas para não partirem sozinhos no suicídio. Pense grande: para cada vencedor, quantos são os perdedores? E o vencedor, não precisa do outro ao menos para aplaudi‑lo?

Em palestra para professores e estudantes em São Paulo, narrei o episódio do índio pai educando o filho e ressaltei a perdida magia da transmissão do saber. Hoje, entregue à sabença de educadores, forma os jovens para serem mais produtivos do que humanos – vai ver sabem o que ignoramos: por que e para que viemos ao mundo!

Ao final, fui procurado por um jovem que queria contar a história que ouviu, parecida com a que narrei. Na versão dele, o índio pai faz para o filho jarros completos e acabados, que a criança também destrói com uma pedra. E tudo se repete: novo jarro, nova destruição, inúmeras vezes. Até que a criança, por vontade própria, em vez de destruir, imita o pai: e, com as próprias mãos, conforma o jarro com asas, tampas e adornos. Com o mesmo barro e a mesma técnica. faz novo jarro, mais sólido, mais útil, mais bonito que o do pai.

Ele entendeu o que Darcy quis dizer, o que culturas antigas vêm dizendo: que a aprendizagem, sem deixar de ser dor e prazer nem inibir o modelo individual de felicidade, é pedra de toque na evolução da espécie humana. Nem tudo está perdido.

Publicado originalmente em Democracia Viva n. 36. Rio de Janeiro: Ibase, setembro de 2007

Publicado em 30 de outubro de 2007

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