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O futebol feminino na escola
Mayra Baldanza
O futebol sempre me encantou. Desde pequena chegava em casa com os pés imundos de tanto jogar na rua. O gosto pelo futebol, inclusive, foi determinante na escolha da carreira em bancos vestibulares. Sonhava trabalhar como fisiologista do Botafogo. Na graduação pude ter contato com as produções científicas e, assim, compreender que existem várias outras questões imbricadas no fazer educativo e desportivo. Que naquela sensação de estranhamento dos colegas por eu ser menina e gostar de futebol existia um processo cultural passível de consideração.
A Cultura representa as práticas e representações de uma sociedade. Os estudos da Cultura nos auxiliam a compreender como os discursos sobre gênero, sexualidade sempre estiveram presentes na história humana. Autores como Michel Foucault (que dedicou parte de seus trabalhos para o estudo da sexualidade e das relações de poder) mostram que mecanismos de poder estão intimamente ligados à formação dos sujeitos. No início do século XIX, por exemplo, o discurso médico ganha força e passa a ter status de ‘verdade’. Vai se intensificando o que Margareth Rago chama de “colonização da mulher”, em que o modelo imaginário de família criado pela sociedade burguesa era imposto. Assim,
a promoção de um novo modelo de feminilidade, a esposa-dona-de-casa-mãe-de-família e uma preocupação especial com a infância, percebida como riqueza em potencial da nação, constituíram as peças mestras deste jogo de agenciamento das relações intrafamiliares”(Rago, 1985, p. 62).
A mulher era vista como naturalmente afeita às prendas do lar e o homem como forte e protetor. Com o advento das guerras mundiais, as mulheres foram conquistando mais espaço como força de trabalho nas fábricas. Aos poucos, outros discursos questionam se esses papéis são naturalmente postos, proporcionando olhares mais atentos às diferenças. Assim, podemos perceber como culturalmente o papel da mulher vem sendo (trans)formado a partir de uma pluralidade de discursos (médico, religioso, da mídia etc.). A participação feminina nos desportos cresce a olhos vistos em todos os níveis (dos escolares aos competitivos), mostrando o quanto se tem a lucrar com seu incentivo e sua prática.
Na escola, os professores de Educação Física utilizam o desporto para desenvolvimento da práxis global dos educandos. Geralmente, o handebol, futebol e voleibol são os desportos mais trabalhados no ensino médio e fundamental. Alguns professores (ou instituições) preferem separar meninos e meninas nos esportes, sendo possível notar nesses casos, em número significativo, uma “preferência” na utilização do voleibol para as meninas e futebol para os meninos. Assim, compreende-se o vôlei como “mais delicado, menos lesivo” para as meninas e o futebol como mais desgastante para os meninos que são “naturalmente mais agitados”. De acordo com Castellani, citado por Cassiano e Barreto (2004, p. 100), durante a ditadura militar, o Conselho Nacional de Desportos (CND) “proibiu às mulheres a prática de lutas, futebol, pólo aquático, pólo, rugby e baseball. Somente em 1986 o CND reconheceu a necessidade de estímulo à participação das mulheres nas diversas modalidades esportivas do país”.
O futebol é um território que as mulheres vêm aos poucos conquistando e de história recente (o primeiro campeonato oficial no Brasil data de 1981). O número de atletas cresceu, o esporte se profissionalizou, mas, em sua maioria, as atletas ainda encontram dificuldades de patrocínio e de campeonatos que deem visibilidade. Neste ano de 2007, tivemos Marta (da seleção brasileira) eleita a melhor jogadora do mundo e alcançamos o vice-campeonato mundial, mas tais conquistas infelizmente não são frequentes.
A partir da década de 1970, vimos de forma mais efetiva a participação do futebol feminino em torneios e campeonatos nacionais. Nessa mesma época, a discussão dos papéis sexuais (muito pelo processo de revolução cultural) se intensificava, proporcionando maior alocação das mulheres nos desportos tradicionalmente masculinos, como o futebol. Não quero dizer, contudo, que antes as mulheres não jogassem futebol, mas nessa época o desporto ganhou contornos mais próximos dos vistos no masculino, como as regras e sinalizações. Nos anos seguintes, foi se desmistificando a ideia de que o futebol era nocivo ao corpo feminino (autores alegavam risco de traumas em “partes baixas e lesões ortopédicas”) e, lentamente, incorporando-se à prática desportiva.
Durante as aulas, podemos observar como garotas e garotos percebem e reagem à prática do esporte. Por parte dos meninos, há uma certa resistência de alguns deles em incorporar as meninas, já que o futebol é "um lugar para meninos". Por isso, elas têm dificuldade em serem aceitas, exceto aquelas que "jogam como eles". Para as garotas, por sua vez, a falta de vivência com o futebol parece ser um dos motivos para algumas delas terem dificuldade e inibição no início, mas tal fato é comum e natural para qualquer desporto. Vemos também resistência de algumas em praticar futebol, considerando-o um esporte bruto ou coisas do tipo, além das que naturalmente não gostam do desporto.
Nota
A ideia de ‘masculinidade hegemônica’ auxilia a entender como historicamente, nos países ocidentais, a figura masculina era sinônimo de superioridade, enquanto a feminina se aliava à doçura e à dependência, sugerindo papéis sociais bem delimitados. A partir do século XIX, intensifica-se a luta pelos direitos das mulheres, e hoje observamos uma presença feminina marcante em todas as esferas sociais.
Artigos como de Barreto e Cassiano mostram exemplos bem-sucedidos de implantação do futebol feminino em escolas, o que auxilia a desconstruir pré-concepções perniciosas sobre o esporte (como as de que a menina que joga bem é masculinizada, ou que o menino que não quer jogar é gay etc.). Em geral, as meninas em geral recebem bem o esporte e devem ser incentivadas a tal. Com esse incentivo à prática, as atletas alçam lugares mais altos no pódio, favorecendo ainda mais as que virão.
O futebol deve ser oferecido nas aulas de Educação Física, proporcionando aos jovens uma formação global, desmistificando possíveis associações entre sexualidade e prática desportiva, enfim, formando cidadãos mais conscientes e críticos dos papéis estanques comumente atribuídos às práticas sociais.
Referências bibliográficas
Barreto, S. e Cassiano, M. Futebol feminino no Brasil: do início à prática pedagógica. Revista de divulgação técnico-científica do ICPG. Vol. 2 n. 7 – out./dez./2004. p. 99-103. ISSN 1807-2836.
Rago, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
Publicado em 30 de outubro de 2007.
Publicado em 30 de outubro de 2007
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