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Melancólicas reflexões sobre a Instrução Pública em Portugal

Eça de Queiroz, março 1872

Especial: Memória da Educação

Eis aqui, com algumas reflexões e algumas cifras, o estado da instrução pública em Portugal:

Em primeiro lugar a instrução entre nós está toda a cargo do Governo.

As câmaras municipais que, por uma velha tradição, nunca se ocuparam das coisas da inteligência – não dão sequer esmola ao ABC. Uma câmara tem antes de tudo, como objecto, macadamizar comodamente as ruas ou as vielas de SS. Senhores os vereador­es têm de construir as estradas que levam às quintas, onde SS. os vereadores, de tamancos a colete aberto, suam sob a folhagem da faia – sub tegmine fagi – depois têm de empregar, subsidiar em geral manter, todos os afilhados de SS. Senhores os vereadores. Quando chega a passar o ABC, SS. Senhores têm a iniciativa cansada e a bolsa esvaziada.

Por seu lado, os particulares, com singularíssimas excepções, nunca levaram a mão à algibeira para dar um pataco a uma escola. (E como estranhar esta abstenção pode parecer uma originalidade fantasista, devemos lembrar que em Inglaterra, França. Alemanha, Dinamarca, Suécia, Itália, Rússia, Espanha, Estados Unidos, os particulares sustentam com um ombro as paredes da escola que os municípios amparam com o outro).

A escola não deve ter
a melancolia da cadeia.

A Lei de 20 de setembro de 1844 concedeu às câmaras municipais autorização para fundarem, com os seus rendimentos, escolas primárias. Quem atenta nestes termos supõe muito racionalmente que as câmaras estavam ávidas de fundar escolas, e que o amor da instrução tinha verdadeiramente tomado o freio nos dentes: supõe ainda que leis anteriores teriam circunspectamente domado este ímpeto desabalado de educação que a Lei de 1844, alargando um pouco as rédeas, permitiu às câmaras palpitantes o criar as apetecidas escolas, não uma correria desordenada, mas num chouto modesto: e supõe enfim que, feita a concessão, as câmaras se atiraram aos pulos, aos corcovos, com a clina esguedelhada, a levantar os alicerces das escolas! Pois bem, sabem quantas escolas têm as câmaras fundado, inteiramente a expensas suas, desde 1844, há quase trinta anos? Uma. Em Setúbal!

De resto, não sejamos injustos. Algumas câmaras tendo, com o curso dos anos, chegado a compreender que soletrar não é inteiramente tão criminoso como roubar, deram generosamente o auxílio dos seus cofres para a organização do ensino – e as 300 câmaras do País, juntas às 4.000 paróquias, têm concorrido, neste espaço de 30 anos, com um subsidiozinho de tostões para a fundação de 41 escolas!

Tal é o desvelo, a inteligência, o patriotismo com que SS. Sas, as espessas câmaras municipais, se ocupam do instrução.

É uma situação paralela à dos Cafres – de nossos irmãos, os Cafres.

O Estado, portanto, tem a instrução inteiramente a seu cargo, e sob sua responsabilidade.

Ora, tendo um país a educar, eis o que o Estado tem feito:

Sabeis, amigos, quantas escolas há, de norte a sul, neste país onde floresce a vinha e Melício pensa? 2.300!

Existindo no País, segundo as últimas estatísticas, 700.000 crianças, e não sendo justo que se apertem na estreiteza abafada duma escola mais de 50 alunos (e já é fazer transpirar os mais tenros cidadãos imberbes), segue-se que deveríamos ter 14.000 escolas.

Temos 2.300!

Devendo, pois, fundar uma escola para cada, 50 crianças, possuímos apenas uma escola para cada 300 crianças! Há uma escola para cada 2.600 habitantes!

Das 700.000 crianças que existem em Portugal, o Estado, nessas 2.300 escolas, ensina 97.000. Isto é, de 700.000 crianças, estão fora da escola mais de 600.000!

Destas 97.000 crianças que frequentam as escolas, sabeis, amigos, quantas se apuram prontas, por ano? Segundo as últimas inspeções, em cada 90 alunos apura-se 1 aluno!

Portanto, Portugal, de 97.000 crianças que traz nas suas escolas, tira por ano, sabendo os rudimentos, 1.940!

Mordei-vos de ciúmes, ó Cafres!

Para esta situação concorrem o aluno, o mestre, e a escola. E a culpa toda, recai no Estado. Porque o Estado impossibilita o aluno, inutiliza o mestre e abandona a escola. Vai, como o general Boum, por três caminhos contra o ABC!

Nos campos, a família é hostil a escola, diz-se. Erro. A família não nega o filho à escola, requer o filho para o trabalho. A criança aí, de sete a dez anos, já conduz os bois, guarda o gado, apanha a lenha, acarreta, sacha, colabora na cultura. Tem a altura de uma enxada e a utilidade de um homem. Sai de madrugada e recolhe às trindades, com o seu dia rudemente trabalhado. Mandá-lo à escola de manhã e de tarde, umas poucas horas, é diminuir a força produtora do casal. Um aluno de mais na escola é, assim, um braço de menos na lavoura. Ora, uma família de lavradores não pode, luxuosamente, diminuir as suas forças vivas. Não é por o filho saber soletrar a cartilha que a terra lhe dará mais pão. Portanto, tiram à criança a escola para a empregar na terra.

O remédio a isto seria a criação de cursos noturnos. À noite, o campo restituiria a criança à escola. Os cursos noturnos eram outrora exclusivamente para os adultos que tinham o seu dia tomado pela lavoura ou pelo ofício. No entanto, num país pobre como o nosso, de pequena cultura e de pequena indústria, a criança trabalha quase tanto como o homem. O filho tem o seu dia tomado pelo mesmo labor do pai. Os cursos nocturnos deveriam ser sobretudo para ele – senão para ambos.

Ora, sabem quartos cursos noturnos havia em Portugal em 1862? 62!

Em Itália, país de população apenas quíntuple, e cuja instrução se arrasta vagarosamente, havia 5.000!

Sabem quanto todos os municípios juntos, os trezentos municípios do País, dão para os cursos noturnos, suprema facilitação da instrução? 1.200$000 réis!

Sabem quanto dá o Estado para esses 62 cursos? 210$000 réis para os cursos nocturnos! 3$890 réis a cada curso! Pouco mais de três quartinhos! É com estas despesas desvairadas que se fazem as bancarrotas desastrosas!

Mas não é tudo! Em 1867, o ministro do Reino promoveu energicamente a criação de cursos noturnos. Fez-se um esforço arquejante, e conseguiu-se, depois de meses prolongados, criar 545 cursos! As câmaras, no primeiro entusiasmo, prometeram magnanimamente, para auxiliar essas criações, 12.000$000 réis. Pois bem, sabem o que sucedeu? Meses depois, as câmaras negaram-se a continuar as dotações.

Algumas mesmo não chegaram nunca a pagá-las!

Outras não quiseram satisfazer ao professor os ordenados já vencidos!

Num distrito, no bestial distrito de Évora, dos 18 cursos nocturnos que se abriram, restavam apenas, meses depois, 3!

No distrito de Coimbra (ó, Lusa Atenas!) de todos os cursos que havia, não restava, passados meses – nenhum!

Ultimamente, em Peniche, os cursos noturnos eram frequentados por 700 alunos. A hedionda câmara fechou-os todos!

Dos 545 cursos que se conseguiram criar em 1867, restam menos de 100!

Que lhes parece, meus senhores, esta singular infâmia?

Ó, nossa pátria! Deus, na sua justiça, te dê uma boa e feroz tirania, que te deite nas palhas dos cadeias, te vergue nos velhos pelourinhos que ainda existam, e te enforque nas traves apodrecidas das forcas do outrora!

Outra das vergonhas desta situação é o professor.

O professor de instrução primária é o homem no País mais humildemente desgraçado e mais cruelmente desatendido.

Sabem quanto ganha um professor de instrução primária? 120$000 réis por ano, 260 réis por dia! Tem de se alimentar, vestir, pagar uma casa, comprar livros, e, quase sempre, comprar para a escola papel, lápis, lousas etc. – com treze vinténs por dia. Note-se que, para a alta moralidade do sua missão, o professor deve ser casado. Pois bem, para criar uma família – treze vinténs por dia!

Mas ouçam! Já em 1813 a junta directora dos estudos pedia ao Governo, que, pelo menos, desse aos professores primários 200$000 réis. Pedia-se isto há 60 anos! A junta dizia, energicamente: “decidamo-nos; sem ordenados suficientes não há professores idôneos". Em 1813, 200$000 réis para um professor era considerado pelas repartições competentes um ordenado apenas suficiente. E, em 1872, com o extraordinário aumento dos preços, a triplicada carestia da vida, professor tem ainda de ordenado os velhos 120$000 réis!

Note-se mais! Há 35 anos, Rodrigo da Fonseca Magalhães, considerando que o professor não podia viver, nem educar-se, nem aproveitar com o ordenado avaro do antigo regime, determinou que os professores de Lisboa tivessem 400$000 réis, e os das outras terras 250$000 réis. Pois bem: daí a três meses essas medidas racionais e inevitáveis foram abolidas! Determinou-se até que aos professores não fossem pagos os ordenados vencidos – e arremessou-se de novo, violentamente, o professor para a indigência!

Além disso, o professor de instrução primária não tem carreira. Está fechado no seu destino como numa desgraça murada: crescer-lhe-ão os filhos, vir-lhe-ão os cabelos brancos, terá educado gerações e continuará sem esperança de melhoria a sofrer dentro dos seus 120$000 réis! A falta da carreira é a extinção do estímulo, a petrificação da vontade. O abandono do ser à fatalidade, à rotina e à inércia. O homem assim não procura progredir: embrulha-se na sonolência do seu ofício como quem se acomoda para a eternidade.

Uma eternidade de 120$000 réis! E ainda deste estreito salário tem quase de sustentar a escola. O aluno pobre só aceita o ensino absolutamente gratuito. Se tem de comprar penas, lápis, lousa, pauta, papel, ­abandona a escola. O professor é forçado a pagar esses apetrechos, de outro modo desertam-lhe a aula, e o vazio de sua escola seria o fim do seu salário.

Acresce que o professorado é uma alta, difícil ciência que se necessita aprender. É esse o fim das escolas normais – aprender a ser mestre. Só a Itália tem hoje já 91 escolas normais. Sabem quantas havia em Portugal? Uma. E sabem o que fez o Governo para seguir esse movimento civilizador e fecundo, que por toda a parte multiplicava as escolas normais? Correu sobre a única que tínhamos – e extinguiu-a! É verdade, meus senhores, extinguiu-a! Dera ela, no pouco tempo que viveu, 91 professores, todos aproveitados pelo Estado porque 70 regiam ainda há pouco escolas públicas, e o resto ocupava-se no ensino livre!

Este professorado quase sem salário, de todo sem carreira, sem aprendizagem normal, cria a seguinte situação:

Na ultima inspecção, de entre 1.607 professores, só foram encontrados com habilitações literárias 263! E só foram julgados zelosos 172!

Que vos parece, patriotas?

A escola por si oferece igual desorganização. Os edifícios (a não ser os legados pelo conde de Ferreira, que ainda quase não funcionam) são na maior parte uma variante torpe entre o celeiro e o curral. Nem espaço, nem asseio, nem arranjo, nem luz, nem ar. Nada torna o estudo tão penoso como a fealdade da aula. Não pedimos decerto para uso do ABC os clássicos jardins de Armida, mas está na mesma essência da organização dos estudos a boa disposição material do edifício escolar. Sobretudo nas aldeias, é quase impossível atrair ao estudo, numa saleta tenebrosa e abafada, crianças inquietas que vêm do vasto ar, da luz alegre dos prados e dos montes. A escola não deve ter a melancolia da cadeia. Pestallozzi, Froebel, os grandes educadores, ensinavam em pátios, ao ar livre, entre árvores. Froebel fazia alternar o estudo do ABC e o trabalho manual; a criança soletrava e cavava. A educação deve ser dada com higiene. A escola entre nós é uma grilheta do abecedário, escura e suja: as crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo: o professor domina pela palmatória e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino.

Além disso, de 1.687 (como viram), só 172 foram achados competentes!

É que há um outro mal terrível: a falta da inspecção. A inspecção é a consciência pública da escola. Sem inspecção, o professor que não tem ordenado suficiente, nem destino garantido, nem estímulo eficaz, desleixa-se por falta de interesse, e a escola desorganiza-se por falta de direção. É o que se dá por todo o País. As escolas estão abandonadas a indolência do professor: e o professor está abandonado à desesperança da vida.

Sabem como é feita a inspecção?

Em cada distrito administrativo há um comissário de estudos que tem, por ano, para inspeccionar as escolas do seu distrito, a gratificação de 120$000 réis. Ordinariamente é um professor do liceu ou o reitor. Isso vigora desde 1844. Ora, em 1854, o ministro do Reino dizia à Câmara dos Deputados, num relatório: “os comissários dos estudos, ocupados na direcção dos liceus, e nas regências de cadeiras, não curam nem podem curar da visita de inspecção das escolas primárias!” É, pois, o Estado que claramente condena o regime estabelecido em 1844. Pois bem, há perto de 20 anos que essa sentença condenatória, da inspecção dos comissários, foi lavrada pelo Governo – ainda existe hoje, em 1872, a inspecção pelos comissários à moda de 1844.

Eis, resumidamente, o estado da instrução:

2.300 escolas num país de 4 milhões de habitantes!

De 700.000 crianças a educar, apenas se encontram 97.000 nas escolas! Destas 97.000, apenas se apuram 1.940. Portanto, de 700.000 crianças a educar,­ educa o País 1.940!

Sendo indispensáveis os cursos noturnos, criaram-se 545. Hoje restam 100!

Os professores têm em 1872 o ordenado de réis (120$000) que já em 1813 era julgado absolutamente insuficiente!

Só com boas escolas normais se podem criar bons professores. Havia uma em 1868. Foi extinta! (Tenta-se, agora, criar 5).

De 1.687 professores, foram julgados com habilitações literárias 263, e zelosos, 172!

As escolas são currais de ensino!

Inspecção não há. Já em 1854 se queixava disso o ministro do Reino! Estamos em 1872!

Eis aqui o estado da instrução pública em Portugal, nos fins do século XIX (Desta indiferença profunda e bestial que há pela instrução, devemos exceptuar os excelentes trabalhos do Sr. D. Antonio da Costa. Os seus livros, escritos com uma exacta ciência e com um altivo sentimento, são o protesto da civilização e a desforra do espírito.)

A instrução em Portugal é de uma canalhice pública!

Que o actual Governo volte os seus olhos, um momento, para este grande desastre da civilização!

Publicado em: Obras de Eça de Queiroz, vol. III, Lello e Irmão-Editores, Porto, Portugal, 1958.

Publicado em 06 de novembro de 2007

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