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Ruan Garcia
Professor Souza
Diário de um professor
Na quinta-feira última fui liberado da aula cedo por causa de uma obra de emergência no Educandário Monte Alverne. Por isso, cheguei em casa ainda no início da tarde. Logo que abri a porta, vi que meu pai estava presente. Ele tinha uma cópia da chave e, vez por outra, vinha me visitar – especialmente nos momentos em que precisava de dinheiro. A televisão estava ligada, mas a sala, vazia. Sobre a mesa do computador, uma pasta de couro com um catálogo de pílulas de emagrecimento do doutor Phillip W.N. Foster. A porta do banheiro abriu junto com o barulho da descarga enquanto eu cruzava o cômodo até a cozinha. “Oi, filho”, disse o velho Souza, fechando a braguilha, “estava vindo pelo centro e resolvi dar uma passadinha”.
Abri a geladeira, enchi o copo de água e comecei a preparar um sanduíche de ricota, tomate e azeite escutando meu pai maldizer o dia em que se tornou vendedor das milagrosas pílulas de emagrecimento do doutor Phillip W. N. Foster. O único a perder peso com o tratamento tinha sido ele mesmo, disse, pois percorria toda a cidade a pé, oferecendo de porta em porta o produto sem conseguir vender uma única cartilha. Ao final do dia, não tinha dinheiro nem para um pf. Emagreceu cinco quilos desde que se tornou sócio do médico americano. Fomos até um banco 24 h, localizado no Catete, e lhe entreguei o pouco que restava em minha conta para que passasse o fim de semana.
Despedi-me de meu pai com a mão no bolso, contando discretamente as poucas moedas que restaram no fundo. Precisaria de uns sessenta reais, no mínimo, para aguentar até o final do mês. Será que Ivana me emprestaria? Ia caminhando na direção do Largo do Machado matutando se não valeria a pena gastar os trocadinhos em um tradicional tucupi com tacacá vendido nas imediações e aí escutei aquela voz inconfundível, cheia de uma intimidade forçada tão irritante para mim: “Souzão! Ô, Souzão! Chegaí, meu camarada”. Em uma mesa disposta em frente ao Galeto na Brasa, cercado por yuppies em ternos engomados, Ruan Garcia abanava a tulipa de chope como um manobrista faria com a flanelinha. Apontava um lugar vago na mesa, convidando-me a ocupá-lo.
Tentei acelerar o passo na ânsia de chegar o mais rápido possível ao tucupi com tacacá, mas Ruan Garcia saiu da mesa e veio em minha direção. Estava mais gordo e calvo. Desde a última vez que nos vimos, ele não parou de galgar posições dentro da política de Bacanaço. Assessor, subsecretário e agora preparava sua candidatura para deputado estadual. Entretanto, mesmo trazendo as marcas da maturidade na expressão, o aspecto ferruginoso de seu rosto ainda lhe dava um ar de criança levada de seriado americano. Abraçou-me e insistiu para que eu me juntasse aos seus amigos. Levemente embriagado, impedia-me de prosseguir minha caminhada. Tive de mentir sobre um compromisso e, pegando o seu cartão pessoal, prometi que ligaria assim que pudesse.
Conheci Ruan Garcia há mais ou menos dez anos, pouco mais de um ano após ser efetivado no Colégio João Antônio. Como disse no início destes meus diários, dos seis professores que prestaram concurso, apenas dois resistiram à prova e foram contratados: eu e Ivana Reis. Dois simplesmente desistiram do magistério com menos de um mês de experiência e um outro pediu transferência para uma instituição no mesmo município. Este último, Charles, o professor de educação física, convivia com a constante deterioração dos materiais – bolas, bambolês, pesos etc. –, muitas vezes repostos com o seu salário. Em 1994, envolveu-se numa discussão com um aluno ligado ao tráfico de drogas da região e foi obrigado a sair da escola. No meio da debandada geral, a diretora Vilma Carla – junto com a Secretaria de Educação – achou por bem contratar alguns profissionais em regime de emergência, sem concurso.
Foi assim que Ruan Garcia acabou no Colégio João Antônio. Na época, nem havia terminado o curso de Educação Física – estava ainda no terceiro período. Como sempre aconteceu em sua carreira, dependia de uma rede de relações políticas e pessoais para se afirmar profissionalmente. Seu primo trabalhava na Câmara dos Vereadores de Bacanaço e adiantou seu lado indicando-o para Vilma Carla, que não pensou duas vezes em chamá-lo para ocupar a vaga.
Mesmo não fazendo questão de esconder minhas reservas com relação à sua personalidade, Ruan Garcia, inexplicavelmente, sentiu-se atraído por mim desde a primeira vez que me viu. Meu desprezo funcionava como um ímã e quanto mais tentava me esquivar de sua intimidade mais ele aprofundava as confissões ao pé dos meus ouvidos. Chegava-se dizendo que nenhum de nós dois merecia aquele emprego nos confins do Judas. Merecíamos mais, muito mais, e que quando conseguisse sair dali e se fazer na vida, dizia, me chamaria para ser seu conselheiro. Na hora da saída, ou do recreio, aproximava-se apertando os passos, passando os braços sobre meus ombros e despudoradamente me perguntava o que eu achava do shape de determinada aluna. Apontava-a com os olhos acesos e com uma intenção que me indignava e o divertia muito.
Desse modo, não demorou para que Ruan Garcia iniciasse suas conquistas no interior do Colégio João Antônio. Os cabelos ruivos, os olhos azuis e a orgulhosa imaturidade de suas atitudes atraíam as mulheres de todas as idades. Com menos de dois meses no Colégio João Antônio, Vilma Carla deixava-o fazer o que queria.
Envolveu-se com pelo menos três alunas. No começo, não fazia questão de esconder seus flertes realizados a céu aberto, geralmente com alguma adolescente mais atirada e já experiente. Levava-as dentro de seu Uno vermelho. Claro que a falta de cerimônia não passou em branco e o mal-estar não demorou a se espalhar pelo ambiente de trabalho. A situação piorou na hora em que Ivana, cujo temperamento explosivo não casava com o silêncio e a omissão, chamou-o de canalha e um bate-boca obrigou a diretora Vilma Carla a intervir. Panos quentes foram colocados. Ruan Garcia recebeu uma advertência verbal e, com a promessa de não mais repetir aqueles atos comprometedores, deu-se por encerrada a discussão.
Com o tempo, a situação acabou se normalizando. O deslize ético pôde ser facilmente interpretado como algo próprio da juventude e inexperiência de Ruan Garcia, alçado à condição de professor com apenas 23 anos de idade. Naquele momento, a situação do Colégio João Antônio também não permitia que, mais uma vez, seus quadros fossem desfalcados.
Um dia, saindo da escola com o professor de Química, Manuel, caminhava na direção do ponto de ônibus. Antes de chegar à Rodovia Rodrigues Alves, entretanto, o Uno vermelho de Ruan Garcia encostou do nosso lado. Com o vidro fumê aberto, ofereceu-nos uma carona. Se estivesse sozinho, negaria – como neguei muitas outras vezes –, mas o velho Manuel aceitou e eu fiquei meio sem ação. Acabei entrando no carro, que partiu em direção à Linha Amarela.
Manuel saltou na altura da rodoviária e, sem que eu tivesse tempo de esboçar qualquer reação, o carro acelerou com destino à Praça XV. Continuei no banco traseiro, como se estivesse dentro de um táxi. Deveria ter insistido para saltar ali mesmo, mas ele não mediria esforços para deixar na porta de casa o “grande Souzão”. Encolhi-me no canto no momento em que seus olhos, refletidos no retrovisor, fixaram-se em mim e, elogiando a minha discrição, começou a sondar a possibilidade de me contar um segredo. Sem mais nem menos, confessou que estava saindo com uma aluna.
No meio do trânsito da Primeiro de Março, entre um sinal e outro, Ruan Garcia ia jogando as peças do jogo aos poucos, sondando minha curiosidade sobre a sua mais nova aventura amorosa. Meu silêncio tornava suas palavras mais ousadas e desafiadoras, de modo que começou a dizer que não teve culpa de nada. “Se acontecesse com você, faria o mesmo”, disse. Passamos a Cinelândia e, antes que chegássemos à Rua do Catete, fez que eu prometesse guardar segredo sobre o assunto. Prometi. Com o carro parado em frente ao meu prédio, voltou-se para mim e falou que estava saindo com Suélen, da 603.
Meu sangue ferveu. Aquilo foi demais para mim. Suélen mal tinha completado os dezesseis anos. Lembrei-me da menina magra e tímida que um dia conheci, cujas roupas diminutas pareciam não haver acompanhado o crescimento do corpo adolescente. Não conseguia entender como um adulto em sã consciência podia deixar que a exibição de um decote o iludisse tanto a ponto de fazê-lo esquecer da menina por trás do artifício, de uma pessoa ainda em formação, testando sua feminilidade como se tateasse no escuro. Quis dizer tudo isto com violência, mas, no momento em que me voltei para Ruan Garcia, vi que seu corpo estava dobrado, apoiado no volante. Levantou a cabeça. Pelo retrovisor, os olhos vermelhos e o abatimento desfiguravam-lhe altivez do rosto. “O que eu faço, cara?”, disse, “O filho não é meu. Tenho certeza de que não é meu”, completou, pousando os olhos sobre as mãos tensionadas no painel do automóvel.
A confirmação desse fato veio com o passar do tempo. Suélen carregava uma barriga cada vez maior, arredondada, girando como um planeta sem órbita fixa. Com sete meses de gestação largou a escola. Nos últimos tempos, quando a encontrava na Estação de Bacanaço com sua barraquinha de doces e biscoitos, tentava convencê-la a voltar a estudar. Ela não dizia que sim nem que não, arrumando a mercadoria sobre o caixote de madeira. Em dez anos, envelhecera bastante e teve mais dois filhos desde que deixara o Colégio João Antônio para trás. Maicon, o mais velho, estava matriculado em outra instituição de ensino, mais próxima de sua residência atual. Vi o garoto uma vez. De pele morena, cabelo escuro, em nada lembrava o suposto pai.
E Ruan Garcia? Logo após nossa conversa no carro, desapareceu da escola. Sumiu. O fato não contou com minha colaboração, pois cumpri minha promessa e não contei nada para ninguém (nem mesmo para Ivana). Deixei as coisas correrem por si mesmas. Após um mês de ausência sem justificativa, a diretora Vilma Carla simplesmente notificou a todos, secamente, que a escola estava novamente sem professor de Educação Física. O cargo tinha sido abandonado. Perguntou-nos se conhecíamos alguém para ocupar a vaga e só. Na época, Suélen namorava um rapaz um pouco mais velho que ela e sua gravidez, dentro da realidade em que vivia, não chamou a atenção de ninguém. O assunto morreu ali mesmo.
Após comer o tucupi com tacacá, voltei para casa com a boca levemente adormecida pelo jambu. Despejei sobre a mesa da sala o conteúdo de um cofrinho, dentro do qual depositava as moedas que pingavam em minhas idas e vindas em ônibus, trens, vans, metrô... Quarenta reais. Nada mal. Se me esforçasse, até sobraria para mais um tucupi com tacacá na próxima semana.
Publicado em 11 de setembro de 2007.
Publicado em 13 de novembro de 2007
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