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O aniversário de Pascoal
Professor Souza
Diário de um professor
Esta semana peguei emprestado um livro da biblioteca do Educandário Monte Alverne. Uma coletânea do grande poeta e dramaturgo espanhol Calderón de La Barca. Na verdade, queria reler sua inesquecível peça A vida é sonho, a estranha e fascinante história do príncipe Segismundo. Frei Serapião, de pé em sua bancada, assim que entreguei o volume para que anotasse a data do empréstimo e o dia que deveria trazê-lo de volta à escola, arregalou seus olhos estrábicos e soltou um dos trechos mais famosos do livro:
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão.
Uma sombra, uma ficção,
e o maior bem é pequeno;
que toda a vida é sonho,
e os sonhos, sonhos são.
Ficou com seus dois olhos pousados em dimensões perpendiculares enquanto eu me mantinha entre o vazio de sua mirada, no espaço dentro do qual os sonhos nasciam e morriam. Peguei o exemplar e me dirigi à saída do educandário.
O movimento era grande. Carros estacionando, crianças passando ao interior dos veículos ou andando juntas em direção ao ponto de ônibus. Vendedores de picolé transitavam à procura de fregueses. A pipoca salgada deixava o ar cheirando a grãos estourados na margarina. Em meio àquela doce balbúrdia de fim de tarde, ouvi o meu nome sendo chamado. “Professor Souza!”, gritou a voz infantil, cujo timbre podia ser de qualquer um dos meus duzentos alunos misturados ali. Voltei-me e descobri o pequeno Pascoal vindo em minha direção, acompanhado de um homem alto, elegante, com um impassível olhar inglês, que julguei ser seu pai. Ele estendeu sua mão, apresentou-se – chamava-se Robson Santos – e, dizendo que seu filho sempre falava a meu respeito, convidou-me à festinha de seus onze anos, sábado às 19:00 h. Deixou-me um envelope contendo o convite, no qual a imagem do homem-aranha fundia-se à de um risonho aniversariante subindo pelas paredes. Embaixo do desenho, a data e o local do evento.
Às vezes a realidade escrita não consegue ir muito longe sem os adjetivos. Se vocês, leitores, estivessem ali no meu lugar, com aqueles dois diante de si, perceberiam imediatamente a cor da sua pele, por mais que lutassem contra quaisquer formas de preconceito. Não precisariam que isso fosse verbalizado de alguma forma, adjetivado, pois a presença do pai e do filho de cor negra naquele universo de classe média alta falaria por si mesma. A imagem impusera-se com força. Chamava a atenção e me desafiava constantemente a um exame de consciência profundo e cotidiano, pois, como professor, deveria zelar para que todos os ganhos de séculos de humanismo não se perdessem com a percepção de um mundo cindido, fragilizado pelas diferenças. Fiquei um tempo imerso nessas questões, que trouxeram com elas um episódio que talvez ajude a entender o motivo daquele convite tão inesperado feito pelo Dr. Robson Santos.
Havia cerca de um mês, estava dando aula para a turma 602. A classe dava para o pátio externo; ficava colada à quadra de esportes. Uma grade impedia que as bolas chegassem às portas e janelas, mas não havia nada que abafasse os gritos e falas dos alunos durante a aula de Educação Física. Às vezes isto atrapalhava as lições. Na ocasião, uma torcida entoava versos agressivos contra um time rival. O que incomodou não foi nem a altura com que cantavam, mas o conteúdo da mensagem. Ele ficou guardado em minha memória, e dizia o seguinte:
Galera diz,
Galera fala
Lugar de preto
É na senzala!
Isto, repetido diversas vezes, obrigou-me a interromper a aula um instante e observar através da porta o que estava acontecendo. Na quadra, a turma 601 jogava uma partida de voleibol. De um lado, três alunos que poderíamos chamar – no jargão da medicina positivista – “caucasianos” definiam a partida através de saques violentos e pela adesão de toda a torcida à causa de uma vitória o mais fulminante possível. Do outro lado, garotos de pele escura tentavam, sem sucesso, conter a humilhação de um placar muito desfavorável. Neste grupo estava Pascoal. Vi-o desnorteado, esticando seu corpo franzino para evitar que a bola quicasse no chão e escutei mais uma vez a cantilena irrompendo com força, ao fim da manobra fracassada:
Galera diz,
Galera fala
Lugar de preto
É na senzala!
Francis, o mais robusto dos jogadores do time “caucasiano”, estimulava os colegas de turma a continuar o coro terrível. De dentro da quadra, após cada ponto, levantava as mãos como um maestro e regia a cadência da música através de palmas, assovios e mímicas debochadas. Procurei com os olhos o professor responsável pela aula de educação física e o achei na ponta da arquibancada, totalmente alheio ao que ocorria ali, com a atenção voltada para o que lia na sua prancheta.
Aquilo estava passando dos limites. Nos últimos anos, a presença de alunos negros no Educandário Monte Alverne tinha aumentado, mas ainda não representavam um grupo significativo dentro de uma das escolas religiosas preferidas da elite carioca. Não iam além de dez crianças, num universo de mais de mil alunos. Alguns bolsistas e filhos de funcionários conseguiam ser matriculados; entretanto, encontravam muitas vezes um meio hostil aos sinais do seu corpo e aos de sua condição econômica. No caso de Pascoal, suas credenciais dispensavam quaisquer medidas compensatórias, pois seu pai era um renomado cardiologista do Rio de Janeiro, mas nada disso o impedia de diariamente ver apontado com escárnio o seu cabelo “bombril”, como faziam os alunos, ou qualquer outra característica reveladora de sua “afrodescendência”. Este ano Francis resolvera “pegá-lo para Cristo”, não perdendo nenhuma oportunidade de humilhá-lo na frente dos colegas.
Com enorme capacidade de liderança e perversidade digna das pré-adolescências mais problemáticas, a cada ano Francis arranjava alguma vítima onde pudesse descarregar suas frustrações. Qualquer apelido arquitetado pelo seu gênio espalhava-se rapidamente pela turma. No ano passado, Caco, um menino que tinha problemas de obesidade, não conseguiu se livrar da alcunha de baiacu e passou praticamente o ano inteiro sendo obrigado a ouvir aquela palavra cada vez que abria a boca em sala. Mudou de turma no ano seguinte. O que tornava a agressividade contra Pascoal mais gritante vinha de sua postura passiva, já que tinha grande necessidade de se afirmar e aguentava tudo com ar de pesada resignação. Não escondia que desejava ardentemente fazer parte do grupo que constantemente o repelia. Isto deixava a situação ainda mais delicada, pois, para que houvesse uma virada ali, não bastaria a reprimenda pura e simples aos agressores. Uma consciência deveria vir à tona.
Assim, intimamente fiquei esperando o momento certo de intervir. Porque resolvi, no dia do jogo de vôlei, que não permitiria que tais cenas se repetissem, pelo menos dentro de minha sala de aula.
Duas semanas depois, a turma 601 compareceu em peso para a revisão. Todos aqueles rostinhos acesos diante de mim, enquanto escrevia no quadro-negro o resumo da matéria. No dia seguinte haveria prova e geralmente repassava alguns pontos que achava importantes, dava dicas daquilo que pretendia deles na hora de responder às questões. Tentava fazer com que vissem a história de maneira a não romper os vínculos com a realidade imediata. Falava do Renascimento, do surgimento da ciência e resgatava algumas descobertas recentes da medicina para mostrar a continuidade daquele projeto aparentemente tão distante. Nesse momento, Pascoal levantou a mão e pediu para ir ao banheiro. Risinhos debochados acompanharam-no, logo após Francis se voltar para os súditos, sempre atentos aos seus cochichos maquiavélicos.
Continuei dando a aula naturalmente. Ainda não havia motivo suficiente para qualquer reprimenda. Evitava ao máximo tomar posição, pois conhecia a vida de Francis e sabia que tinha muitos problemas em casa. Há pouco mais de cinco anos o pai, um dos empreiteiros mais poderosos do Rio, conseguiu sua guarda depois de um longo processo judicial acompanhado em todos os seus pormenores pela imprensa. Gilda Santa Rita, antiga modelo Coco Chanel, entrou em um vertiginoso processo de decadência física e moral por ter sido trocada por uma mulher vinte anos mais nova. Com a exposição pública de sua vida dissoluta em meio a drogas e escândalos nas colunas sociais, o júri não teve dúvidas: decidiu por unanimidade que o pequeno deveria ser de exclusiva responsabilidade paterna. Atualmente sua família voltou a ocupar os jornais por estar envolvida num esquema de corrupção envolvendo superfaturamento de obras.
Respondia a uma pergunta de Myrtes – ela quis saber a diferença entre o Renascimento e a Idade Média – no momento em que Pascoal retornou do banheiro. Mesmo falando, andando de um lado a outro, não perdi nenhum movimento seu até chegar à carteira ao fundo. Observei Francis tapando o nariz como se sentisse o ar empesteado e dizer numa altura mais do que inconveniente “quando não caga na entrada, caga na saída”. O riso espalhou-se num raio que ultrapassava os limites de uma minoria acanhada. Senti uma vertigem apavorante, algo produzido no empuxo de uma onda que perigosamente tomava corpo, sugando o ar, a umidade em torno de mim, para futuramente esmagar tudo que se colocasse na sua frente. Tinha que me controlar e impedir que a situação chegasse nesse ponto. Fiquei em silêncio grave até que a turma notou que eu não havia gostado nada daquilo. Então, olhei para o autor do comentário racista e pedi que o repetisse.
Francis olhou em volta, como se não fosse com ele. Na verdade buscava a cumplicidade da turma, que correspondeu com mais risos, abafados, mas ainda assim desafiadores. “Repetir o quê?”, perguntou, com um leve tom de deboche, “falei de brincadeira, não tem nada demais”. Pascoal estava lívido em sua carteira. A coisa chegara a um ponto tal que qualquer recuo da minha parte seria a perda da autoridade e a entrega das cartas a uma liderança negativa, perniciosa, com quem, a partir dali, deveria sempre negociar. Eu não queria qualquer tipo de negociação. “Teve um tempo que isso era brincadeira”, disse olhando-o direta e severamente, “hoje é crime”. Respirei fundo e antes que pudesse refletir na gravidade da minha colocação ele me cortou, dando de ombros, “meu avô não deixa eu ser preso”. Engoli em seco. Aquele comentário fez com que perdesse a cabeça: “mas dentro da minha sala mando eu”, quase gritei, “e eu não permito qualquer comentário deste nível aqui, estamos entendidos?”.
Havia muitas maneiras de mostrar que o racismo não levava a lugar nenhum. Aquele súbito apelo à minha autoridade de professor de certa forma demonstrou para a turma que eu não tinha argumentos tão fortes assim contra aquela prática desprezível. Ao impor minha vontade, acabei dando força à reação contrária. Antes do fim da aula, Francis e seus amigos saíram de sala com ares de vítimas, enquanto eu falava de Leonardo da Vinci para alunos cada vez mais dispersos. Fui obrigado a dispensá-los cinco minutos antes do término. Pascoal passou por mim de cabeça baixa, constrangido, enquanto enfiava os meus livros dentro da bolsa.
Até o fim da semana fiquei refletindo em como reverter aquela situação e readquirir o respeito dos alunos sem impor minha vontade de forma tão bruta. Tinha tempo suficiente para isso. Quando apliquei a prova na semana seguinte ao acontecimento, já tinha algo em mente. O desafio estava lançado. Até que Pascoal me convidou para seu aniversário...
Publicado em 21 de novembro de 2007.
Publicado em 21 de novembro de 2007
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