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Todos os séculos do mundo

Pablo Capistrano

Oferecer ao estético uma autonomia frente às pressões do mundo social pode ser um exercício comprometedor. Alguém já pode ter pensado que Wagner só foi possível porque houve as tais revoluções burguesas. Imagine como era difícil ouvir música no século XVII. Hoje você está rodeado de música, amigo leitor. Rádios, computadores, tvs, Ipods. Mas houve um período que a música necessitava invariavelmente de um executor e esse executor, geralmente a serviço de algum nobre, tocava nos salões dos palácios ou nas igrejas. Então, a burguesia exige seu quinhão de música e ajuda a produzir as orquestras sinfônicas. Grandes grupos de executores lotando teatros. Pode-se dizer que esse detalhe na estrutura da execução da música produziu a estética monolítica de um Wagner. O imenso ruído de trovões e a grandiosidade de uma música alta, que contamina uma grande audiência num mundo pós-aristocrático, no qual não é preciso ser amigo do rei, ou do duque, para ser um ouvinte. Basta ter dinheiro para pagar o ingresso.

Como se houvesse um padrão formal definido pelas forças de produção social de cada século. Uma estética barroca para um mundo de aristocratas. Uma estética romântica para um mundo de burgueses. Então não haveria lugar para o Eu absoluto (esse tropo hegeliano) se manifestar através do artista. Tudo isso seria bem plausível se não houvesse um Bach para assustar o mundo. Pegue o Concerto para Quatro Pianos e Cordas em Lá menor. O que você ouve? Se você vivesse na Europa do século XVIII poderia não estar ciente, mas você estaria ouvindo o futuro. Uma estranha antecipação de formas musicais que produziriam o século XIX. Tão absolutamente diferente do que se fazia na época, quanto tão absolutamente diferente do próprio Bach. Acho que essa é uma marca do grande artista. Ele consegue ser inconfundível na própria estranheza. Um só sendo muitos. Bach é assim. Parece que cada pedaço de música que se compôs depois dele, vem para continuá-lo, reformá-lo ou mesmo destruí-lo. Isso é o que o Harold Bloom identifica na construção de sua metodologia crítica com o sinal do poeta forte. Ele se manifesta no futuro e se projeta nesse mesmo futuro, como um fantasma ou espectro, para os que nascerão depois. Agora o mais espantoso é o fato de que, muitas vezes, a própria contemporaneidade não enxerga as marcas do futuro. Peguei num livro do Franz Rueb uma carta escrita por Bach dirigida a um tal Georg Erdmann e datada de 28 de outubro de 1730. Nela Bach diz: "1) como vejo que este cargo não é o que me descreveram; 2) como tive muitos contratempos nesta estação de minha vida; 3) como a vida aqui é muito cara e, finalmente; 4) como estou subordinado a um grupo de autoridades esquisitas e pouco afeitas à música, e tenho que viver, portanto, em constante desgosto, sofrendo inveja e perseguição, tornou-se imperioso, com ajuda do Altíssimo, tentar prosseguir em meu destino num outro lugar".

Bach ocupa o centro do cânone da música erudita europeia porque contém em si todos os séculos do mundo. Contém o passado como influência de seus percussores e o futuro como semente em quase tudo que se produziu em termos de música erudita depois dele. Mesmo assim, isso não impediu Bach de padecer de todo o tipo de infortúnio financeiro, maledicência, inveja, incompreensão e de ser esquecido por quase cem anos. Foi Félix Mendelssohn quem reapresentou Bach a uma Europa burguesa, e mostrou que ele não era apenas um bom executor de peças em órgão, mas o centro nervoso da música europeia. Num mundo de celebridades instantâneas e muita pouca esperança no futuro, o espectro do esquecimento ronda todo artista nessa terra devastada. Esse espectro é mais cruel e danoso hoje, e a urgência em ser reconhecido às vezes pode ser fatal para a qualidade de um trabalho. Será que é isso que nos leva a apostar em nossa arte? A crença de que um dia possamos vencer a morte, mesmo sem ter nenhuma certeza de que isso é possível? Estar doente do futuro pode ser uma benção, mas, às vezes, cheira também a algum tipo sarcástico de maldição.

Publicado em 30 de janeiro de 2007

Publicado em 30 de janeiro de 2007

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