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Hoje é meu dia

Rosemary dos Santos

Estava em pé, parada, olhando no espelho. Pensava na minha maturidade e no que os anos fazem conosco fisicamente. Enquanto admiro uma ruga e outra, faço caretas ao espelho para vê-las melhor.

Estou mais velha hoje. Resolvi registrar este momento para lapidar esteticamente as estranhas forças que emanam do meu inconsciente. Envelhecemos. Aos poucos, fui descobrindo que nada dá mais prazer na vida do que saber o quanto já vivemos. Nada nos dá mais prazer do que ver filhos crescidos, filhos dos amigos apenas colegas e, melhor que tudo, ouvir alguém sempre gentilmente dizer: "quantos anos? Nem parece!". Não há nada mais gratificante.

É sábado. Acordo pensativa com o telefone chamando; é minha mãe me desejando feliz aniversário. São 7 da manhã. Agradeço, sorrio, tagarelamos por alguns minutos. Desligo. Abro a janela. A manhã está ensolarada. Gosto de observar as pessoas, seus passos, gestos. Esqueço das rugas e ligo o rádio. Volto aos pensamentos. Crise existencial, marcada por profundos questionamentos sobre o sentido da vida, pois, nesta idade (não digo mesmo), segundo os estudiosos, passa-se por um processo de reavaliação de valores. É a crise da realização pessoal, profissional, amorosa. Bom, é a fase das crises. A pergunta que se costuma fazer é: o que realizei de importante até o presente momento? Pergunta que levaria horas de caminhadas para respondê-la.

Queria fazer como li certa vez numa mensagem de Chaplin: fazer aniversário de trás pra frente e nascer de um orgasmo (desculpem o termo, mas esta é uma crônica de uma mulher que fará enta anos).

Nas reflexões de quem se aproxima vertiginosamente da "experiência", ouso destacar uma outra faceta dessa fase, que é mais terrível ainda: descobrir que já não podemos dançar uma pequena música sem arfar, tomar sorvete sem espirrar, comer sem engordar, ouvir Roberto sem chorar, botar um biquíni sem olhar mil vezes no espelho se aquelas coisas (melhor não comentar) indesejáveis estão bem, bem escondidas e, pior que tudo, ser chamada de "coroa". Digamos que nesses momentos nossos sentimentos mais íntimos e elevados são postos à prova.

O idealismo da fase juvenil é um desses valores que costuma sofrer maior abalo. Em função da perda da inocência da infância, dos devaneios da adolescência e dos sonhos da juventude, surge um perigoso divisor de águas. Ou se reciclam os sonhos e ideais, adaptando-os à realidade, ou nos tornamos autênticos lobos, prontos a consumir, devorar, acumular.

Algumas amigas comentam que eu estou entrando na idade da loba. Dizem que o homem é o único animal, à exceção dos lobos, que consome e devora a própria espécie. O feroz, malvado e místico lobo me assombra desde quando, na infância, ele tentava devorar Chapeuzinho Vermelho e os Três Porquinhos. Eu, hein, que papo mais canibal... Vamos mudar de assunto. Ajeito os cabelos e tento esconder os fios brancos que cismam em aparecer e revelar-se.

Venho no caminho pensando sobre a vida, minha carreira. Tudo porque fazer enta anos deixa-me ansiosa do que está por vir. Momento para construir minha própria identidade. Identidade é também reflexo de um jogo de espelhos. Se pais e mestres não tivessem me incutido que nasci para as letras, quadro, giz e computadores, talvez hoje - se houvesse sobrevivido - eu fosse uma secretária aposentada. Mas o vigor com que esses alunos me contagiam não me dá o privilégio de sentir-me velha, apenas encantar-me cada vez mais com a vida. Transbordar de prazer e entusiasmo existencial.

Não tenho ainda onde cair morta. A herança que eu deixaria aos meus filhos seria umas tantas dívidas e uns projetos não realizados. Pouca coisa. Meu patrimônio resume-se a uns poucos livros, CDs, algumas crônicas tolas como esta em que você está gastando seu precioso tempo para ler. Tenho, é claro, este meu computador, que me auxilia nessa nobre tarefa de escrevinhar minhas memórias. Seu valor de uso, no entanto, supera em muito o seu valor de troca, de mercado. Em breve ele será lembrado como algo remoto, "daquele tempo em que tínhamos que usar o Windows por absoluta falta de opção". Tenho os meus sonhos, é claro, aquela casinha com varanda, cadeiras de balanço com o meu velho do lado, meus cachorros, plantas e bichos e muito tempo para cuidar de tudo.

Bom, só faltam alguns degraus que ainda quero subir, mas mesmo assim não consigo chegar ao fundo do meu ser para encontrar a resposta, talvez porque ela seja só esta: um dia vamos morrer, mais nada. Até lá, sozinhos, somos bolas de neve, navios afundados e água salgada de onde não se extrai nada; precisamos do outro para nos fazer tudo. Sentido de viver.

E as reticências que tanto gosto de usar, uso-as agora, só para expressar minha intenção de continuar, continuar, continuar...

Pubicado em 18/12/2007

Publicado em 18 de dezembro de 2007

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