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A escola e a formação de novos públicos
Ieda Magri
Mestre em literatura pela UFSC e doutoranda em literatura brasileira pela UFRJ
A atitude de recolhimento do indivíduo cuja disposição para a arte é cultivada inexiste naquele que não a cultiva, seja por falta de acesso ou por falta de desejo de frequentar os espaços de cultura. Em 1936, falando do limiar daquele século, Walter Benjamim escreve: "fazer as coisas ficarem mais próximas é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da reprodutibilidade", mas parece que nesse outro século em que vivemos não há mais essa preocupação tão apaixonada para fazer as coisas ficarem próximas. Antes, parece que há uma certa apatia em relação à busca de opções de arte e cultura que não aquelas oferecidas de forma bastante direta pelos meios de comunicação e pelas empresas de marketing.
Diante dessa premissa, no período de 2003 a 2005, foi realizada uma pesquisa sobre a recepção da programação cultural de Florianópolis tendo como público base estudantes de ensino médio e fundamental, a maioria na faixa etária de 13 a 20 anos. Os dados levantados pela pesquisa podem ser obtidos em Arte e público: uma reflexão sobre a experiência estética em duas escolas de Florianópolis, dissertação de mestrado defendida por Ieda Magri em setembro de 2005, no curso de Pós graduação em teoria literária da UFSC. Como dado geral, e principal característica que marca os grupos pesquisados, pôde-se observar que a maioria dos alunos não tem acesso à internet, não tem o hábito de assistir a espetáculos de teatro ou de música e não conhece nem mesmo o museu de artes de Santa Catarina.
Durante o período da pesquisa foram oferecidos ingressos gratuitos para a programação cultural do SESC SC e organizadas visitas a cinemas, museus e espaços de arte. Parte dos alunos passou a frequentar esses espaços e, inclusive, levar consigo a família, o que confirma a premissa de Bourdieu de que a pré-disposição à arte não é privilégio de alguns mas hábito construído e possível a todos.
No entanto, a tentativa de aproximação entre arte e público esbarra no problema da ausência de uma política cultural para a cidade que privilegie uma programação variada de espetáculos, cinemas, exposições, eventos literários, que sustentem a expectativa gerada e que estejam disponíveis de modo ininterrupto. O público não responde de modo positivo às tentativas isoladas de produção artística: por exemplo um festival de teatro ou de dança que só acontece uma vez ao ano sem nenhum desdobramento em temporadas de apresentação dos grupos locais ou de outros estados. Eventos não formam públicos, talvez uma política cultural que faça a arte ficar presente no cotidiano das pessoas, sim. Um convite a cada mês na escola não é suficiente para manter a vontade gerada pelos convites esparsos, não consegue muita coisa além de mostrar um leque de opções que ultrapasse o que é oferecido nos circuitos do mercado. Não é capaz nem de gerar, nem de sustentar o hábito.
Há, certamente, um ponto pânico nesse trabalho de formação de novos públicos: seu comportamento, geralmente, é de um barulho tão alto que faz calar as formas individuais de subjetividade. Então, como fazer silêncio para deixá-las virem à tona sem que se faça apenas um adestramento? Tendo ao fundo, pulsando, uma frase bastante conhecida de Benjamim: "O distraído também pode habituar-se", as cartas, na pesquisa citada, foram apostadas na educação da percepção através da participação, da vivência da experiência estética de se entrar nos ambientes de arte e cultura e da criação de um repertório individual. O público mais habituado teve também que construir o difícil aprendizado da tolerância.
Mas, por que insistir nessa aproximação? Por que a preocupação em formar novos públicos para a arte?
Em primeiro lugar porque a diferença econômica tem amplas relações com a exclusão cultural. O gosto estético é critério de valor: a hierarquização dos indivíduos segundo suas escolhas estéticas encobre um mecanismo profundo de discriminação: "ter cultura" é requisito para alcançar qualquer espaço na sociedade, inclusive um emprego digno ou o direito de falar, denunciar e reagir contra as injustiças sociais. Paolo Virno, filósofo contemporâneo, conceitua o termo multidão como conjunto de singularidades, e situa o um da multidão se constituindo na comunicação, na linguagem, na sua capacidade intelectual, abrindo uma brecha para se pensar os muitos para além da impossibilidade de se mover/entusiasmar o todo: "se podría decir - com Marx, pero contra buena parte del marxismo - que la transformación radical del actual estado de cosas consiste em dar la máxima importancia y el máximo valor a la existencia de cada miembro de la espécie".
Em segundo lugar porque a aproximação entre a arte que está fora do mercado e o grande público permite estabelecer novos espaços imaginários para a sobrevivência da arte enquanto experimentação e descoberta e pressupõe liberdade de escolha para o receptor. Sem as múltiplas iniciativas da sociedade essa aproximação não será possível. Como observa Beatriz Sarlo:
Os setores populares não têm mais obrigações do que os letrados: não é licito esperar que sejam mais espertos, nem mais rebeldes, nem mais persistentes, nem que vejam com mais clareza, nem que representem outra coisa senão eles mesmos. Mas, em contraste com as elites econômicas e intelectuais, eles dispõem de uma quantidade menor de bens materiais e simbólicos, estão em condições de usufruto cultural piores e têm menores possibilidades de praticar escolhas não condicionadas pela pobreza da oferta ou pela escassez de recursos materiais e instrumentos intelectuais. (...) Os setores populares não dispõem de nenhum recurso todo-poderoso para compensar aquilo que uma escola em crise não lhes pode oferecer, aquilo que o ócio dos letrados pode adquirir quase que sem dinheiro, aqueles bens do mercado audiovisual que não são gratuitos ou que não se adaptam ao gosto que o mercado protege justamente porque é o gosto favorável a seus produtos padronizados.
Mas como investir nessa aproximação?
Se, em nome da democratização da arte, operou-se numa concepção de cultura como produto a ser difundido de forma facilitada, no discurso do acesso à cultura, as proposições se invertem: em vez de facilitar a recepção da arte com a reestruturação das mensagens artísticas, ou seja, a adaptação das diversas formas de arte à recepção massiva, por um público despreparado, o caminho mais apropriado seria o de preparar o público para que possa receber as diversas formas de arte. Essa inversão, no entanto, para que fuja de uma concepção iluminista, não deveria se basear num receptor tolo cultural e nem numa forma de arte concebida como única a ser acessada ou com a conotação de "verdadeira arte". Antes, esse preparo, seria um predispor à recepção, uma re-significação dos sentidos, re-sensibilização para a percepção daquilo que está distante do cotidiano imediato.
Uma via de aproximação entre arte e púbico, segundo Canclini, é, sem dúvida, a escola: "a alta proporção de público com formação universitária indica que o interesse pelos museus de arte moderna cresce à medida que aumenta o nível econômico, o educativo e a familiarização prolongada com a cultura de elite". Esse estudo de Canclini, coincide com o de Pierre Bourdieu e Alain Darbel conforme relatado no livro O Amor pela Arte: os museus de arte da Europa e seu público, com base em pesquisa realizada em museus na França, Espanha, Grécia, Itália, Holanda e Polônia em 1964 e 65.
Bourdieu expõe que a frequência aumenta gradativamente à medida que cresce o grau de instrução o que indica que o gosto é também efeito da ação escolar. No entanto, o público que vai ao museu em visitas ocasionais proporcionadas pela escola ou pelas empresas de turismo, não se torna frequentador assíduo. A influência da escola na formação do hábito só é determinante quando há uma sistematização das visitas, ou seja, ir ao museu passa a fazer parte do cotidiano escolar. Não é apenas o fato de ir ao museu por influência da escola o que determina o gosto, mas a competência cultural adquirida através da instrução que a escola proporciona:
"Fica comprovado, portanto, que a intensificação da ação da Escola é o meio mais eficaz para fazer crescer tal prática - ou seja, a frequência dos museus, teatros ou concertos, assim como a leitura e a escuta dos programas culturais de rádio e televisão -, ao mesmo tempo que ela é a condição necessária da eficácia de qualquer outro meio; ou, por outras palavras, os investimentos alocados aos equipamentos culturais são pouco rentáveis na falta de investimentos destinados à instituição escolar, única capaz de 'produzir' os utilizadores desses equipamentos.".
É aceitando essa premissa, facilmente comprovável ainda hoje, que se pode investir na ligação cultura-escola, não numa perspectiva arte-educadora ou no contexto da sala de aula, mas concebendo-a como o lugar onde o receptor em potencial pode receber o convite para desfrutar da arte, o que tem a ver mais com a indicação de caminhos para o uso do tempo livre do que com o ensino da arte. A participação da escola na aproximação entre arte e público não está diretamente ligada apenas na sua preparação para a decodificação dos signos de uma arte que precisa, hoje, de mediação (seja pelos níveis de vida, seja pelas condições de acesso à cultura) senão também para que os sujeitos por ela formados possam ter liberdade de escolha através do conhecimento do que existe como opção e predisposição para a fruição.
Para se atingir metas de formação de público, ao lado da oferta de programação, faz-se necessário também o investimento na educação, seja na formação de professores, seja no envolvimento da escola num projeto maior do que relegar às disciplinas de arte e de literatura a tarefa de "ensinar arte". Para produzir uma ligação duradoura que ultrapasse a escola, é necessário que se trabalhe a educação estética fora dos limites da sala de aula e das disciplinas de educação artística e de língua portuguesa. Esse deveria ser um projeto de toda a escola, que se confunde até com sua missão, com sua filosofia.
Para terminar, gostaria de reproduzir uma fala do escritor brasileiro, Alcione Araújo, dita na 11ª Jornada Nacional de Literatura realizada em Passo Fundo nos dias 22 a 26 de agosto de 2005 e que mostra que as estratégias de formação de público pela educação não são buscas isoladas:
O problema da arte no Brasil é a busca de um público que não está preparado para usufruí-la. A nossa educação, embora esforçada, ainda está afastada da cultura, assim, temos uma cultura pungente, mas sem público. Enquanto seiscentos mil espectadores são o público médio de um filme comercial, as tiragens de livros são de, em média, 3.000 exemplares e apenas 14% das cadeiras dos teatros são ocupadas.
Gráficos ilustrativos de alguns resultados da pesquisa:
Publicado em 27 de fevereiro de 2007.
Publicado em 27 de fevereiro de 2007
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