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Ensino religioso obrigatório? Ou não?
Mariana Cruz
Ao velho ditado "gosto não se discute" foram, aos poucos, acrescentados vários temas - como futebol e política - que, pela prática, mostraram-se desvantajosos quando colocados em debate por gerarem mais desentendimento do que reflexão. Mas, mesmo assim, as contendas continuam. Outro assunto que, vira-e-mexe, aparece na listinha é a religião.
A exaltação que o embate sobre tais temas toma os participantes deve-se, normalmente, ao fato de cada um ter uma opinião cristalizada, não aceitar a verdade alheia e, além disso, tentar insistentemente impor sua visão. No caso da religião, as brigas parecem mais graves, não são simples questões de mesa de bar. Boa parte do mundo vive fazendo guerra "em nome de Deus". Desde tempos imemoriais os povos brigam por sua fé, cada religião querendo impor seus dogmas, suas verdades, seus deuses. Judeus, muçulmanos, católicos, evangélicos lutando, matando e morrendo... pelo amor de Deus.
Assuntos ligados à religião parecem que já têm dentro de si algo insolúvel e eterno (assim como os conflitos religiosos). São coisas que nós, humanos, não alcançamos, são os mistérios, o inefável e, por isso mesmo, nenhum credo pode ser considerado mais verdadeiro que o outro, são vários caminhos para se chegar a um só ponto, a existência de uma religião não pressupõe a anulação de todas as outras, embora seja isso que a maioria pretenda.
Ao traçarmos um meio termo entre as discussões de botequim sobre religião e as guerras santas que nunca cessam, em vários outros campos esbarramos com impasses sobre o tema, como na educação, por exemplo.
Rio de Janeiro; 2000: é sancionada a lei de autoria do então deputado Carlos Dias (PP-RJ) que institui o ensino religioso confessional nas escolas públicas do estado. Pela lei, as aulas de religião ficam divididas por credo, são facultativas e integram o calendário normal das escolas, desde a educação infantil até o ensino médio. Três anos depois, o deputado Carlos Minc (PT), atual secretário estadual do Meio Ambiente, cria a lei que estabelece o ensino religioso para todos os credos. Apesar de aprovada pela Alerj, a então governadora, Rosinha Matheus, vetou o texto por ser favorável à modalidade confessional.
Em recente declaração (O Globo 15/01/2007), o secretário estadual de educação do Rio de Janeiro, Nelson Maculan, expressou a intenção de modificar a disciplina durante sua gestão. As aulas voltadas para cada credo seriam substituídas por uma disciplina que desse uma visão geral de todas as religiões, abordando os aspectos conceituais e históricos de cada uma delas. Além disso, Maculan pretende ampliar também a lista de religiões consideradas confessionais inserindo, por exemplo, o budismo entre elas.
Estes três diferentes momentos decorridos em apenas sete anos já nos dão uma pequena amostra de que religião se discute. E muito.
Se voltarmos um pouco no tempo, veremos que já na década de 30, nosso então ministro da educação, Gustavo Capanema, insurgiu-se contra o grupo católico, posicionou-se em defesa do ensino laico e universalizado sob a responsabilidade do Estado, o que acabou lhe rendendo mais espaço na política ministerial.
Ao longo de todas essas décadas, muito se debateu sobre a questão "ensino laico versus religioso". No artigo "As escolas e o ensino religioso" (biblioteca do Portal), escrito por Karla Hansen em conjunto com os participantes do fórum Discutindo, são apontados vários rumos que o tema "religião no ensino médio" tomou. Lá encontramos o argumento de pessoas favoráveis à inclusão do ensino religioso nas escolas por acreditarem na relevância da religião para a formação ética dos adolescentes, funcionando como um resgate de valores morais tão enfraquecidos nos dias de hoje, também há aqueles que defendem um ensino ecumênico e não obrigatório. E do outro lado, está o grupo contrário à inclusão da religião no currículo escolar, por considerar que matérias como a filosofia, por exemplo, possam suprir o conteúdo religioso sem correr risco de cair no proselitismo. Ainda no grupo "dos contra" há os consideram que, devido à carência de professores de outras áreas, deve-se priorizar o suprimento dessas vagas, em vez de criar uma nova disciplina.
Tais colocações, mesmo que pareçam inconciliáveis, ao extrairmos o sumo de cada uma delas, talvez, possam nos ensinar muito. O ponto em comum da maioria das posições parece ser o desejo de dar aos nossos jovens instrumentos para agirem eticamente. Uma vez que já entendemos o ponto principal, independente dos rumos que tome essa discussão, não fiquemos de braços cruzados esperando o dia em que todas as escolas estejam com seu quadro docente completo, nem jogando nas costas da religião confessional, do ensino ecumênico ou da filosofia a responsabilidade do ensino de ética aos alunos.
Ética e cidadania se aprendem não apenas com professores de religião, filosofia ou em uma escola sem carência de professores. Independente da existência dessas coisas, ética e cidadania podem ser ensinadas por qualquer professor, de qualquer disciplina. Em biologia, através de aulas sobre bioética, ou de forma interdisciplinar aliada à geografia em aulas sobre conscientização ecológica; nas aulas de história através de abordagens críticas e reflexivas sobre a trajetória das civilizações; em educação física através do estímulo de jogos cooperativos e mesmo aquelas disciplinas cujos conteúdos pareçam muito distantes das relações humanas, como as matérias exatas, também há como inserir ética. Os professores de física podem lançar mão de analogias, sair um pouco do campo das obscuras fórmulas repletas de números e letras gregas, e quem sabe tentar explicar a lei de ação e reação partindo de exemplos cotidianos ou regras práticas, como o Imperativo Categórico kantiano: " age de tal forma que a norma de tua conduta possa ser tomada como lei universal". Ou seja, uma má ação pode causar uma má reação.
Não apenas em forma de conteúdo a cidadania e a ética podem ser transmitidas aos nossos alunos. A própria postura do professor em sala de aula já pode servir de exemplo. Desde a pontualidade, do respeito com que tratam os alunos, da capacidade de exercerem liderança sem autoritarismo, a consideração para com seus próximos independe da função que exerçam na escola (funcionários, diretores, alunos, outros professores). Tais funções podem e devem ser exercidas por professores de matemática, física, química, religião, filosofia, enfim, de todas as matérias. Não precisa haver uma matéria específica para ensinar ética, esta deve estar impregnada nas atitudes diárias dentro de uma escola (e fora dela também, mas isso é tema para outra discussão).
A questão da inclusão da religião no ensino médio é importante, mas é importante ver o que está além dela. O papel da educação na vida do homem é tão importante que não podemos delegar a apenas uma disciplina a responsabilidade da formação do caráter. Logo no primeiro capítulo do livro Paideia - a formação do homem grego, encontramos o significado de educação para o grego: "uma educação consciente pode até mudar a natureza física do Homem e suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível superior. Mas o espírito humano conduz progressivamente à descoberta de si próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores de existência humana". Poucas páginas depois podemos ler ainda: "a educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no seu destino exterior com na sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual". É este sentido lato, amplo, grandioso de educação que não podemos deixar se perder. O professor não pode agir como um senhor feudal, preocupado unicamente com o feudozinho de sua disciplina como se nada mais existisse além dela. Cabe a ele auxiliar na transformação do aluno em cidadão, não importa de qual disciplina seja.
Para os que são contra a inclusão do ensino religioso na escola, para os que defendem o ecumenismo, para os que são a favor do ensino confessional e para os têm outra posição, mas concordam que cabe à escola auxiliar na formação ética do aluno, arrisco a sugestão de deixar a contenda religiosa um pouco em suspenso (não de lado, em suspenso!) e pensar sobre o significado da palavra religião, o religar. Para quem não concorda que a "re-ligação" do homem com Deus deva ser assunto de sala de aula, de qualquer maneira tem a função de fazer o aluno religar-se consigo mesmo, entender-se enquanto membro participante da sociedade universal, sujeito, cidadão.
Talvez uma lúdica alteração ortográfica sirva de exercício para todos, do mais cético ao mais crédulo, basta observarmos a palavra "amém", apagarmos o acento agudo e usarmos o verbo que se formou de forma exaustiva. Aposto que Deus, ou se preferirem, Jesus Cristo, Buda, Oxalá, Alá, e os respectivos deuses de cada religião ficariam orgulhosos de nós.
Publicado em 27 de fevereiro de 2007
Publicado em 27 de fevereiro de 2007
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