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As flores e espinhos do filme de João Jardim: Pro dia Nascer Feliz

Mariana Cruz

Do mesmo diretor de Janela da Alma, este segundo longa de João Jardim Pro dia Nascer Feliz, também acaba abrindo janelas e penetrando na alma dos entrevistados, desta vez, adolescentes estudantes do ensino médio.

O filme retrata escolas de três estados do Brasil: Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Dá pano para as mangas para discussões sociológicas, pedagógicas e filosóficas, além de mostrar na prática a importância da educação na diminuição da violência do país.

Ao longo de nosso passeio escolar nos deparamos com salas superlotadas, falta de condução para os alunos, carência de professores e profissionais da educação abalados psicologicamente. Infelizmente, tais fatores - velhos conhecidos nossos- tornam-se mais alarmantes quando, logo no começo do filme, tomamos conhecimento do número de adolescentes fora das salas de aula, da quantidade de analfabetos no país e do precário estado em que as escolas se encontram: muitas delas nem banheiro têm.

No documentário estão presentes pulsões, desejos e frustrações que se espalham pela vasta galeria de jovens personagens. Lá conhecemos os disciplinados, os preguiçosos, os estudiosos, os confusos, os deprimidos, os carismáticos, os engajados, os sarcásticos, os cruéis, e tantos outros tipos que se misturam.

Em uma escola na periferia paulista, encontramos uma loirinha com cara de boa-moça que fala com tranquilidade sobre o dia em que se engalfinhou com a professora (que por sua vez a havia chamado de loira-burra). Em outra escola pública do mesmo estado, Ronaldo, um menino articulado e inteligente, pretende fazer faculdade de filosofia, tornar-se padre e, assim, ajudar as pessoas da sua comunidade.

O exaustivo cotidiano de alguns professores também é visitado. Somos apresentados à professora de literatura que, às vezes, falta ao trabalho por cansaço e assume que vai ao psiquiatra uma vez por mês para conseguir lidar com o estresse da profissão. Curiosamente, é a mesma professora que monta um fanzine com um grupo de estudantes, causando uma significante mudança na vida de alguns deles, como da sensível Keila. A menina fala de sua tristeza, seu tédio, e de como a participação no fanzine da escola lhe abriu um novo mundo, uma nova forma de ver a vida e, por fim, nos presenteia com um comovente texto de sua autoria. Mas tudo isso é perdido. Keila trabalha atualmente em uma fábrica, dobrando calças. Não escreve mais, sua vida é casa-trabalho-trabalho-casa. Desperdício.

O carismático carioca Uanderson diz sorridente que antes gostava de passear pelo baile funk ostentando as armas dos amigos traficantes, pois chamava a atenção das meninas. Ele estava no tênue limite entre a marginalidade e o caminho do bem, pendia para lá e pra cá. Começa a fazer parte de um grupo de música afro da escola, fica empolgado com a atividade, participa de ensaios e apresentações. Seus professores, durante o conselho de classe, decidem passá-lo de ano devido a sua melhora de comportamento, mesmo com suas notas destacadas.... pela caneta vermelha. É uma chance que dão ao rapaz, que em sua nova ocupação de músico continua chamando a atenção das coleguinhas. E, convenhamos, por um caminho muito mais saudável.

A garota-símbolo do filme é Valéria, a talentosa estudante de uma escola situada em Manari, uma cidadezinha do sertão nordestino. A menina fica dias sem poder ir à aula devido a problemas de transporte escolar, e, quando vai, são horas em pé dentro do ônibus lotado. Valéria é leitora assídua de Manoel Bandeira e Vinícius de Morais. Os textos que escreve são surpreendentes. Pena que, pela alta qualidade deles, a professora duvida da autoria da menina. São as flores que brotam na aridez do solo nordestino.

Mas nem tudo são rosas no filme de Jardim. Também existem os espinhos. No depoimento em off de Juma, ela diz ter esfaqueado (e matado) uma colega de escola na frente de várias pessoas. Mas não se importa muito com isso, pois só ficará três anos internada na instituição para menores, e três anos passa rápido. Também não aparecem os rostos dos meninos que, vez ou outra, saem para assaltar como se estivessem indo jogar futebol. Acham graça da cara de medo que as vítimas fazem ao serem abordadas por eles.

Como antítese de todo esse universo periférico somos apresentados às meninas do Santa Cruz, um colégio da classe alta paulista. O objetivo delas é obter os melhores lugares, nas melhores universidades que, de certa maneira, já lhes estão reservados, mas elas têm de fazer por merecê-los. Estudam muito e ainda contam com o apoio da família, dos professores particulares, das colegas. Têm livros, têm dinheiro, mas também têm tristezas. A natureza de suas frustrações é subjetiva: uma passou por um período de depressão por não entender o sentido da vida, não saber o que acontece após a morte, enquanto Ciça, lacrimeja deixando seus olhos ainda mais azuis, pelo fato de perceber que já não causa o mesmo interesse nos garotos, ultimamente só tem estudado. Mais, mais e mais.

Quando questionadas sobre a situação das pessoas menos favorecidas, não sabem como ajudar, elas têm seus próprios problemas e ocupações (a natação, a ioga, o estudo), e se os garotos pobres estivessem no lugar delas, talvez eles também dissessem o mesmo. E além do mais, chegam à conclusão de que, ao ajudá-los, estariam se colocando como superiores. Apesar de nada poderem fazer, sabem o que existe do lado de fora da bolha (como elas mesmas dizem) que vivem. Não são alienadas. E assim resolvem a questão.

A terceira margem

São mundos que se excluem mutuamente, mas se tocam em alguns momentos, seja nas relações de trabalho, com o consentimento de ambos (os pobres precisam de emprego, os ricos de empregados), seja no espaço da rua onde todas as classes se encontram: os mendigos, os ricos, os ladrões, os trabalhadores, os estudantes. É nesse espaço público que a bolha é furada, mesmo que por alguns instantes, quando o vidro do carro é esquecido aberto, um deslize, e surge uma arma. Aí será o ponto de encontro entre os futuros advogados e engenheiros do Santa Cruz e os pivetes que acham graça na cara de espanto de suas vítimas. Como resolver essa contradição?

O filme nos mostra que não existe só o lado de dentro e o lado de fora da bolha, existe um terceiro lado, uma terceira margem do rio, uma terceira via de acesso, como nos ensinam as valérias, uandersons e ronaldos que passam pelas nossas vistas, nossas vidas e nossas classes, sem que, muitas vezes, nos demos conta disso.

Ficha técnica do filme:

  • Título: Pro Dia Nascer Feliz
  • Direção: João Jardim
  • Gênero: Documentário
  • Produção: Flávio R. Tambellini e João Jardim

Publicado em 7/3/2007

Publicado em 06 de março de 2007

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