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O bárbaro frente ao espelho
Luiz Alberto Sanz
Provocações para um diálogo sobre a representação cultural do outro nos meios de comunicação
Para Ued Maluf, o filósofo das Estranhezas — professor dos Institutos de Psicologia da UFRJ e de Arte e Comunicação Social da UFF —, Robson Achiamé — criador e editor da revista libertária Letra Livre — e o Teatro Popular União e Olho Vivo, que exercem forte influência sobre minha práxis.
Para começo de conversa: não entendo de mídia nem percebo o que se quer com o emprego do termo. É uma corruptela com sotaque anglo-saxão da bonita e expressiva palavra latina media. O neologismo, além do mais, reduz ao singular o que era plural em latim e inglês. Cifra-se e oculta-se a diversidade em troca de uma unicidade aparente.
Mas, não se assustem, não sou um estelionatário intelectual. Embora reconhecidamente ignorante, considero-me apto a tratar das coisas enfiadas no saco das media: comunicação social, comunicação de massa, comunicação interpessoal (seja presencial ou a distância), comunicação virtual, meios eletrônicos, impressos e audiovisuais, veículos, suportes e algo mais, bem como de suas relações com a realidade.
Outro componente sensível do nosso tema é o termo Cultura. Até eu penso saber o que é. Porém, em discussões e debates, tenho quase sempre a impressão de não nos estarmos entendendo, de que falamos de coisas sutil ou fundamentalmente diferentes mas com o mesmo nome.
Então vou tentar esclarecer de onde parto para questionar os aspectos culturais das relações entre a Comunicação Social e a produção de subjetividades.
Recorro a Muniz Sodré, em A verdade seduzida, para considerar cultura o modo de relacionamento humano com seu real.
Sou antiquado. Amo as palavras, suas sonoridades, seus caracteres, sentidos, significados e emoções. Coisas que fizeram diferentes autores, entre eles os portugueses Fernando Pessoa e Jorge de Sena e o francês Saint John Perse, afirmarem, de maneiras diversas, que nossa pátria é nossa língua.
Por isso, só para organizar meus pensamentos, lembro, sem querer ensinar nada a ninguém, as raízes dos três termos fundamentais do que pretendo venha a ser um diálogo: comunicação, subjetividade e cultura.
Comunicação tem origem em munu (ofício público), que vem de mei- (permutar). Ora, estaríamos falando, então, aqui, de uma permuta pública de relacionamentos dos homens com suas realidades, através de diferentes meios, ou media. Mas é importante citar outros membros dessa numerosa família (um verdadeiro clã). Destaco: comum, comunidade, comunhão; comunalismo e até remuneração. Estes e outros parentes de comunicação estarão soando muito, aqui, durante estes dias, com todos os seus sentidos e tonalidades afetivas.
Subjetividade é filho de uma família etimológica que registra 1090 membros (fora outros que são seus frutos, como sujeito). Curiosamente, o patriarca romano, Sub, significava sobre, mas também no fundo de. É interessante observar que esse sujeito aí, nascido no ramo familiar de sujeitar, é o sujeitado, o submisso, que só se torna o ser que conhece, o indivíduo determinado, capaz de ações, por intervenção dos filósofos.
Ou seja, estou enveredando pelo caminho de uma permuta pública de relacionamentos dos homens com suas realidades que produz modificações de fundo em um indivíduo submisso. Tais modificações contribuem para que esses homens se tornem indivíduos que conhecem, capazes de ações, ou seja, sujeitos no sentido filosófico. Mas eles continuam no seio da família linguística, bem próximo da raiz. Passam de sob para sobre.
Cultura vem do verbo colere (habitar, cultivar). Coerente com o pensamento que venho desenvolvendo, reconheço que esse sujeito, mesmo que submisso, cultiva um relacionamento com a realidade que o forma e transforma e que a Comunicação é parte essencial nesse processo.
Encontro em Jorge de Sena a precisão cirúrgica e a sensibilidade poética, esse mosaico razão-emoção que me ajuda a situar a perda da identidade cultural-linguística e a necessidade de construir novas identidades no cerne da nossa discussão. Pois, afinal, o tema específico desta mesa é a questão cultural.
A questão não é o evento cultural, esse ponto específico no espaço-tempo, em geral subalterno, conjuntural, descartável; menos ainda a manifestação ou o produto artísticos. Aliás, já quase não se fala em obras, retirando-se a grandeza estética e travestindo de mercadoria o resultado do fazer artístico ou intelectual. Reduz-se a Arte ao essencialmente perecível, ao consumível, como conceito, supondo ou querendo fazer supor que esses fragmentos do nada não se entranham em nossos mosaicos corpos/mentes e destroem nossas identidades. Finge-se que não atuam para manter o sujeito sujeitado, abduzindo-o de seu rumo à condição de indivíduo que conhece e é capaz de agir.
No poema Em Creta com o Minotauro, o saudoso Jorge de Sena desabafa e provoca:
I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Parsifae, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heroicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.
III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.
V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
E foi exatamente a cultura grega, cujos heróis o poeta tão bem descreveu, que nominou os bárbaros e, consequentemente, a barbárie. A expressão βάρβαρος: selvagem, rude, aplicava-se ao outro, ao que não falava grego, ao que não tinha seus hábitos e costumes. Culturas mais antigas, refinadas e complexas, como as do Egito, da Mesopotâmia, da Creta minoica, que se espalhavam pelas costas do Mediterrâneo e pelo Crescente Fértil, fossem camíticas, semíticas ou indo-europeias, eram nominadas bárbaras por aqueles bandos tardios de piratas indo-europeus que tudo arrasaram e destruíram até que, depois de séculos de saques e ocupação, construíram um extenso império, unificados pelo conquistador macedônio Alexandre, essencialmente um βάρβαρος, mas que tivera como preceptor Aristóteles, referência principal de toda esta merda douta que nos cobre há séculos, no dizer de Jorge de Sena.
A parceria do pai de Alexandre, Filipe II, com Aristóteles resultou na globalização e inclusão das elites macedônias no Primeiro Mundo de então. A consequência imediata foi a extensão desses benefícios a uma ampla região, com a submissão de numerosas culturas, imemoriais, e a implantação do modelo helênico, ao preço da destruição dos registros de sua história e da ereção de monumentos e padrões de comportamento alheios.
O bárbaro Alexandre foi o instrumento da expansão da cultura grega em direção a África e Ásia. Os romanos, em parte descendentes de exilados troianos capitaneados por Enéas, ampliariam sua influência a quase toda a Europa e ao Norte da África, já transformada e greco-romana. De lá, celtas, visigodos, mouros, semitas, bascos e germânicos, entre outros, trouxeram-na para as Américas. Ainda mais empobrecida e rarefeita.
Os antigos bárbaros, já tornados civilizadores, criaram novos bárbaros ao defrontarem-se com os outros. Esta história todos conhecemos. É a nossa. Só que costumamos olhá-la e propagá-la do ponto de vista do civilizador, o bárbaro europeu incluído na cultura greco-romana que se torna cada vez mais anglo-saxã, disfarçada de global, mundial, atual, contemporânea.
Só que, agora, os bárbaros somos nós, sobretudo os descendentes dos civilizadores europeus, dos habitantes originais do Continente e dos escravos arrancados da África. Somos nós que estamos recebendo espelhinhos eletrônicos trazidos pelos novos civilizadores e tentando neles ver nosso próprio reflexo. Mas, como ele lá não está, tratamos de convencer-nos de que é nossa imagem que vemos — com a ajuda prestimosa dos mais doutos e dos que têm o controle dos meios de comunicação, sejam ou não seus donos.
Quem realiza e programa as obras artísticas e comunicacionais que circulam majoritariamente em nossos países cresceu e se formou em uma cultura etnocêntrica. E as políticas culturais e educacionais desenvolvidas pelo atual governo, que teria vindo para mudar, continua a mirar-se declaradamente no espelho europeu e na visão de uma Europa – ou de um Brasil – centralizado, hegemônico.
As alternativas das esquerdas, governistas ou não, sofrem em geral do mesmo mal; são alternativas de poder e assumem como positivo um discurso acrítico em relação à inclusão. Quer dizer: mantêm a visão de que é necessário tomar o poder do Estado e nele incluir os marginais, domesticando-os, adaptando-os a esta cultura que aí está há séculos (não vou repetir, mais uma vez, o verso de Jorge de Sena), em lugar de criar condições para que cada sujeitado possa se tornar sujeito filosófico por meio do desenvolvimento autônomo do seu relacionamento com o real. Simplificando: que cada um possa desenvolver sua própria cultura.
Faço uma ressalva: há segmentos libertários, principalmente anarquistas, que têm buscado construir comunidades solidárias e criar e difundir obras que contribuam para alterar radicalmente o quadro em que vivemos, formado por sociedades e Estados cada vez mais controladores e policiais, que aceitam e utilizam em seu benefício nossa marcha irreversível para distintas transculturalidades.
As influências de culturas diversas são essenciais aos avanços de um povo, de uma comunidade. Mas influências não devem ser confundidas com a substituição de identidades. A história humana, e não apenas ela, tem mostrado isso ricamente. Somos capazes de digerir e recriar o que incorporamos, num processo transcultural livre e insubmisso, mas para isso é fundamental que a diversidade tenha espaço e tempo para manifestar-se livremente.
Na estratégia dominante, os meios de comunicação são essenciais para garantir a hegemonia eurocêntrica (na versão anglo-saxã dos Estados Unidos), embora aparentem manifestar e expressar o multiculturalismo das populações incluídas. O enraizamento da dominação econômica não é possível sem a abdução de identidades e a dominação cultural, verdade conhecida e empregada há milênios. Nunca, no entanto, meios técnicos e tecnológicos, frutos do desenvolvimento científico, foram tão propícios a essa estratégia com tal economia de recursos e garantia de controle sobre sua aplicação. Busca-se, em todos os campos, substituir a troca presencial de saberes e emoções — transmissora e produtora de cultura e educação autônomas — por simulacros limitados pelas próprias características dos veículos e a linguagem dos meios. A relação interpessoal e local, essencial ao ato cultural autônomo, vê-se restrita a pequenos grupos, sem espaço nos eventos de mercado, medida do estético e da sabedoria para este admirável mundo novo, em que vale tudo e nem tudo vale.
Esta palestra foi apresentada no Instituto de Psicologia da UFRJ no dia 29/06/2007, dentro do seminário Mídia e Psicologia: Produção da Subjetividade. Esta mesa-redonda era coordenada por José Novaes, do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, e tinha também como componentes Fernanda Bruno, do Instituto de Psicologia da UFRJ, e Marcus Vinícius de Oliveira, vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia.
Publicado 8 de janeiro de 2008
Publicado em 08 de janeiro de 2008
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