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Lei de Diretrizes e Bases da Educação: novos problemas e novos desafios
Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva
Professor Doutor em História (USP)
O exercício da cidadania no Brasil é muito precário (Vlasman, 1998), se compararmos com os centros mais avançados de nosso planeta. Especialmente nas camadas mais populares de nossa sociedade urbana, que vive hoje o inchaço da explosão demográfica, observamos um total sentido de letargia de nossas escolas, provavelmente alimentadas pelas parcas respostas dos frutos conquistados de seu trabalho. Vivemos em um país que ainda procura sua identidade maior. Pesam de maneira contrária os quase quatro séculos de escravidão emoldurados por uma história longeva de autoritarismo mandonista, simbolizados por um conjunto complexo de famílias nucleares que convivem na mais absoluta diversidade. Não só nossa terra, mas nossa formação social, mesmo a urbana, é de profundos contrastes.
O século XX, o século do não, foi responsável por um forte solavanco socioinstitucional no continente sul-americano que deixou suas marcas entre nós. A velocidade dos acontecimentos, os abalos e mudanças causadas pelos avanços tecnológicos comprometeram toda a nação, alterando-lhe hábitos e costumes. Rapidamente nosso espaço urbano, em um mundo marcado pela crise de paradigmas – especialmente o fracasso do pensamento cartesiano –, apontava claramente para nosso quadro verdadeiramente descompassado diante do dinamismo e modernidade do exterior. O resultado mais calamitoso foi que tínhamos “perdido o bonde da História”.
O advento da robótica associada à informática, suplantando o tão decantado fordismo como modelo de aceleração e eficiência das práticas de produção, anunciava felizes e ao mesmo tempo tristonhas novidades para nosso povo. Traziam mudanças que nos afetariam muito mais do que imaginávamos. Não percebíamos, mas o primeiro mundo nos olhava com profunda desconfiança e desapontadora percepção. No amanhecer da segunda metade do século XX, nossos governantes vivificavam, geralmente de maneira populista, uma megalomania em seus projetos que acarretaria imensos prejuízos para nosso futuro. Parecíamos uma população composta de bilontras e bestializada. Após um curto período de história, o regime declaradamente autoritário se instaurou definitivamente. Os velhos remanescentes da cultura tenentista assumiam o controle de nossa pátria assolada por complexidades múltiplas que vinham desde a sua formação até aqueles dias. A Revolução de 1964 iniciava um governo que, até os dias de seus estertores, promoveu verdadeira evasão de talentos de nosso país. Alguns por questões políticas, outros por razões que até a própria razão desconhece.
Por ser uma ditadura, a população oprimida sentia a força do poder de punição que o Estado sempre fazia questão de ostentar. Por serem militares, os governos dificilmente conseguiam assumir caráter popular em seu perfil e prática de poder. Enfim, vivemos nas universidades, durante o período em questão, a tutela da ordem. Não conseguíamos ser uma ideia de universidade, tampouco uma universidade de ideias. O ensino das sombras e a cultura do medo marcavam as relações entre docentes e discentes, dentro de um ambiente manchado por violência, controle, coerção e ameaças constantes.
Após a Revolução, mergulhamos em um processo frenético de reconstrução que simulava acelerações e freios repentinos nas leis e emendas que objetivavam reencontrar o rumo perdido de nossa academia. O estrago havia sido grande! A educação se encontrava diante de um imenso desafio: a reconstrução ou a construção?
Por tudo isso, insistimos aqui na necessária e urgente tarefa de mapear o que pode ser feito na relação entre a mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96) e a (re)construção da cidadania em nosso país. Sabemos que é, hoje, tarefa necessária e principalmente decisiva para a retomada da construção e do ritmo de continuidade do nosso maior sentido identitário de nação.
Cidadania: Qualidade de cidadão – Qualidade de uma pessoa que possui, em uma determinada comunidade política, o conjunto dos direitos civis e políticos(Fernandes, Luft, Guimarães, 1993).Cidadania: Portador de direitos e privilégios individuais, os direitos civis, políticos e sociais(Abril, 1972).
O conceito de cidadania, tomando por base a Constituição, é muito mais uma cidadania imaginada que constatada. Implica sempre direitos e deveres observados e cumpridos sempre no tempo em que a lei está em vigor. Tomando do ponto de vista do legislador e suas expectativas, fica claro que insiste em afirmar que todos devem ter assegurados os seus direitos, como o da educação.
Temos os excluídos (Perrot, 1991, p. 238), sem direito à posse de terra e alijados da oportunidade de lucro gerado por sua produção. Ao longo dos anos, foram desenhadas novas formas de vida em outros mundos urbanos de nossa geografia social. Nosso país promoveu a configuração de um quadro social de pessoas que já não mais pertencem oficialmente ao mundo dos incluídos. Hernando de Sotto, em O mistério do capital, afirma tratar-se de um fenômeno mundial (2000). Porém notamos que carregam desesperada e insistente permanência: o elo do contato com suas origens culturais. Como denominarmos tal contingente de informais, excluídos etc.? Excluídos se refere ao mundo que os envolve. Algo maior, mais denso, mais nervoso e menos decifrado pela grandeza. Sotto afirma que são pessoas que possuem casa própria, registro em cartório, identidades, mas vivem no desemprego absoluto por mais de oito anos. Famílias inteiras estão envolvidas nesse universo. Compõem universos sociais distintos, universos de cultura distintos e, certamente, escolas e saberes distintos. Hoje, na América do Sul, representam um total de 78% da população urbana (Sotto, 2000). A pergunta que não quer calar é: Vivem de quê? Como se relacionam e qual sua identidade cultural? Praticam o capitalismo ou estão fora dele? Como isso é possível dentro de um Estado puramente e ainda regulacionista, que se diz neoliberal? Hernando de Sotto novamente socorre classificando-os como extralegais. Extralegais? Como? Alguém pode viver assim por muito tempo? O mais aterrador de tudo é que a pesquisa do respeitadíssimo cientista chileno afirma que, somente aqui na América do Sul, possuem e movimentam quase US$ 1 trilhão apenas em suas propriedades (moradias). Como isso se encontra em nossos centros urbanos? Será que somente o Estado do Rio de Janeiro está fora dessa realidade? Como a escola e a universidade se justificariam diante de um quadro tão desafiador? Quem são essas pessoas? Cidadãos ou não-cidadãos? Certamente suas economias subcapitalizadas (Sotto) representariam uma temeridade para o Estado. Trata-se de um caso de polícia e justiça, obviamente. O Estado regulacionista (Santos) é incapaz de realizar mudanças pela absoluta incapacidade de não mais acertar na sua classificação social. Seu maior pecado foi ter permitido a proliferação da pobreza e da profunda desigualdade social sob a insana alegação ser apenas um resultado do jogo do capitalismo.
Assim, o urbano, o grande centro nervoso de nosso sistema cultural e empresarial, possui no interior de sua grandeza sua fraqueza, uma vez que passa a comportar e compartilhar realidades diversas (Ventura, 2002). Os habitantes de São Paulo e Rio de Janeiro vivem uma estranha ditadura da violência, aprisionados e temerosos. Há, no urbano fluminense tanto quanto no paulistano, um convívio perigoso e conflitivo: a favela é a face da violência explosiva e a violência gravada no defensivismo de seus vizinhos.
O centro urbano convive com uma forma de capitalismo sombrio cujos componentes não possuem expectativas do exercício da cidadania plena. Ter emprego ou trabalho formal faz parte de um quadro em profundas transformações.
Ser cidadão brasileiro, à luz da Lei de Diretrizes e Bases, torna-se um imenso desafio. Diversos profissionais de áreas de trabalho variadas criticam e/ou reclamam de maneira contumaz da má formação educacional dos educandos que formamos.
Em seu primeiro parágrafo do artigo 1º, a LDBEN afirma, sob o título de Educação, que:
Esta lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente por meio do ensino, em instituições próprias.
A lei coloca a escola como responsável direta pela transmissão através do ensino da educação escolar. O que seria essa educação escolar? Qual seu objetivo? Estaria a escola pronta para tal obrigação? Temos muitas dúvidas e indagações. Sabemos que não há condições ideais para a plena execução do desejo que expressa a lei. A lei especifica que a Educação vincula a Escola ao mundo do trabalho e à prática social. Seu segundo artigo diz:
A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o livre desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da sua cidadania e sua qualificação para o trabalho.
A lei imputa o dever da educação a duas instituições com várias facetas, como a família? Qual família (Tort, 2001; Scheinvar, 1998)? A rica, a pobre, ou ainda a família do extralegal? Será que o Estado, sempre através de seus representantes, aprova leis em benefício próprio e deixa escolas e outras instituições sem condição de atendimento de qualidade? Qual o padrão seguir diante do difícil quadro de complexidades sociais em que estamos mergulhados? Temos uma certeza: o exercício da cidadania imporá sempre algumas respostas. Porém, ao observarmos o artigo 3º da LDBEN, notamos princípios que nos parecem, hoje em dia, verdadeiros desafios à educação:
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções ideológicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições públicas e particulares; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização do profissional da educação escolar; gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; garantia do padrão de qualidade; valorização da experiência extraescolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
Resta saber de que escola estamos falando: a do desejo ou a da realidade vivenciada. Sabemos que esses princípios de igualdade são praticamente inatingíveis, no quadro que se desenha diante de nós. A civilização capitalista precisa urgentemente de um choque de humanidade através da prática pedagógica diária. Que seja permanente, contínua e garanta efetivamente convívio para a paz. Que não transforme nossos educandos em profissionais obsoletos no mercado de trabalho. Que não os condene ao mais desumano ostracismo funcional. Que permita ao Estado a promoção das garantias de bem-estar e bom viver. Que garanta uma escola nova, moderna, inclusiva. Identificada com nossa realidade cotidiana, no interior do nosso espaço urbano.
Referências
DE SOTTO, H. O mistério do capital. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ENCICLOPÉDIA ABRIL. V. 3. São Paulo: Abril, 1972.
FERNANDES, F.; LUFT, C. P.; GUIMARÃES, F. M. Dicionário Brasileiro Globo, 27ª ed. São Paulo: Globo, 1993.
PERROT, M. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
SANTOS, Boaventura de S. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1996.
SCHEINVAR, E. A produção da cidadania da criança e do adolescente: repensando a política pública a partir da escola. In: Revista Arquétipo; 1998.
TORT, M. O desejo frio: procriação artificial e crise dos referenciais simbólicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
VENTURA, Z. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VLASMAN, Petrus M. Escola-comunidade-cidadania. In: Archetypon. v. 6, n. 16, Rio de Janeiro: FCPERJ, 1998.
ZALUAR, A. Jornal do Brasil, caderno Ideias. Rio de Janeiro: 26/05/2002.
Publicado em 18 de março de 2008.
Publicado em 18 de março de 2008
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