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A origem do conhecimento em Locke
Mariana Cruz
A obra do empirista John Locke representa uma reação ao racionalismo do filósofo francês René Descartes. Por considerar o entendimento a faculdade mais nobre da alma, o filósofo inglês fez uma investigação acerca dos objetos que podemos conhecer. Dessa forma, ele pretendia mostrar as condições que temos de apresentar para conhecer, isto é, descobrir com que nossas faculdades mentais conseguem lidar e com que não conseguem. Tentar ir além do que nosso entendimento é capaz de apreender ou adentrar as veredas que extrapolam a compreensão humana é cair na especulação. Segundo Locke, o entendimento pode ter um papel tanto passivo como ativo. Quando recebe pelos sentidos o que vem de fora, ele é passivo; é ativo quando combina ideias simples e a partir delas consegue formar ideias complexas.
O projeto de Locke é mais modesto que o de Descartes, pela própria natureza empirista. Para Locke, produzir conhecimento é produzir ideias. Para Descartes, a condição fundamental da produção de conhecimento verdadeiro é Deus, uma vez que afirma a existência de ideias inatas. Ao retirar das ideias o caráter inato, Locke defende que o que apreendemos da experiência é que dá origem ao conhecimento, pois o conteúdo da nossa consciência (emoções, pensamentos, lembranças etc.) vem daquilo de que nós temos experiência. Esse conteúdo, Locke chama de ideias.
Nossos sentidos, segundo ele, são as únicas fontes de ligação direta entre nós e a realidade. As qualidades primárias estão nos próprios objetos; as qualidades secundárias surgem da interação do objeto com o sujeito; sendo assim, variam de sujeito para sujeito. Descartes entende o inato como princípio (como causalidade, identidade) ou como noção (como Deus, substância). Para Locke, tal concepção inatista coloca Deus como o responsável pela existência de determinadas ideias em nós, o que, segundo ele, teria um caráter dogmático, uma vez que é inquestionável; é colocado como ponto de partida. Dessa forma, ele tenta, através do uso das suas faculdades naturais, fazer com que os homens possam chegar às ideias.
Um dos argumentos utilizados pelos defensores do inatismo é o universalismo, isto é, o fato de todos os homens concordarem acerca de uma ideia. Segundo Locke, porém, o conhecimento universal não é inato, uma vez que não é a razão que os descobre nem todas as pessoas compactuam de certas noções ditas universais, como o Princípio de Identidade e de não-contradição.
Já que não precisamos perceber o que está na mente para que esteja de fato, todas as afirmativas verdadeiras podem estar lá também. E se realmente existem ideias inatas, porque as crianças e os idiotas não as têm? É de argumentos como esses que Locke lança mão para combater a crença nas ideias inatas. Locke questiona proposições como o Princípio de Identidade, que seriam consideradas de assentimento universal, alegando que integrantes de comunidades mais primitivas desconhecem tal princípio. Se ideias inatas existissem de fato, elas deveriam estar na mente de todos os indivíduos, isto é, deveriam ser de cunho universal - e na prática não é o que ocorre. O entendimento é a nossa faculdade de conhecer; sendo assim, como uma ideia pode estar presente em nossa mente sem que a conheçamos? A alegação de que certas verdades estão impressas, embora sejam despercebidas, e que à medida que aprimoramos o uso da razão reconhecemos tais verdades não parece um argumento razoável, pois isso leva a uma contradição, já que faz do homem um ser que, simultaneamente, conhece e não conhece algo.
Para Locke, a alma humana é uma tábula rasa; assim, ao buscar os elementos responsáveis pela formação do conhecimento, encontra a experiência e a reflexão como seus mananciais. Tudo que conhecemos deriva dessas duas fontes. Então, Locke fala de dois tipos de ideias: as de sensação, vindas do exterior; e as da reflexão, originadas do interior.
Todo o conhecimento provém da experiência, que é obtida através dos objetos sensíveis externos bem como nas operações internas; através dos sentidos obtemos as ideias de cores, gostos, temperaturas e tantas outras qualidades. Outro tipo de ideias são aquelas internas, como o conhecer, o duvidar, o querer, o crer. Essas são ideias da reflexão, que ocorrem quando a mente analisa suas próprias operações.
Assim como o corpo tem o poder de movimentar-se, a alma tem o poder de pensar, de perceber, de ter ideias. Da mesma forma que uma das operações do corpo é o movimento, uma das operações da alma é a percepção.
O entendimento tem a capacidade de comparar ideias simples, uni-las e, assim, formar outras ideias: as complexas. Apesar disso, o entendimento não consegue criar nenhuma ideia que não seja derivada da experiência ou da reflexão. Como saber um sabor que nunca testou? Como saber um sentimento que nunca teve? Se alguém nunca provou caviar, não há com saber o gosto exato dessa comida. As ideias simples podem entrar na nossa mente graças a um único sentido (como as cores entram pela visão, os sons pela audição), por mais de um sentido (figura, espaço, coisas que podemos sentir tanto pelo tato como pela visão), pela reflexão (dor, prazer) ou por ambas (por meio do sentido e da reflexão). Para Locke, o conhecimento humano é construído pela abstração dos elementos que ocorrem na experiência.
O caminho pelo qual são alcançadas as verdades origina-se nas ideias particulares, isto é, na concepção empírica o pensamento parte do particular para o geral (ao contrário do racionalismo cartesiano, cujo princípio é universal). As ideias particulares é que dão origem às ideias abstratas. A ideia é o objeto do pensamento; não se tem pensamento sem ideia nem ideia sem pensamento. Ter consciência de uma ideia é ter consciência de que se tem essa ideia, é ter consciência de si.
A reflexão é um tipo diferenciado de percepção (é uma percepção de ideias). A sensação é a fonte originária das ideias. Posso apreender ideias que me são exteriores, bem como ideias que sejam oriundas minhas, isto é, a própria percepção da atividade da mente (crer, querer, imaginar etc.). Mas as percepções são ideias, mesmo quando relacionadas à sensação. Têm-se ideias de vermelho, de quente, de áspero etc. Ideia é tudo aquilo que a mente percebe por si mesma ou tudo que é objeto de percepção do pensamento ou do entendimento, e a potência de produzir qualquer ideia na mente é a qualidade.
Qualidades primárias e qualidades secundárias
Um cubo de gelo, por exemplo, tem a potencialidade de produzir em nossas mentes a ideia da forma cúbica, de algo frio, transparente; tais ideias são qualidades que Locke divide entre primárias e secundárias. As qualidades primárias não se separam dos objetos: independentemente das alterações que eles venham a sofrer, elas continuarão existindo nele. Por isso são também chamadas qualidades originais; elas não existem em si mesmas, apenas nos objetos. As qualidades secundárias são aquelas que podem produzir em nós diversas sensações, mas não são essenciais ao objeto; podem ser cores, textura, som. Se, por exemplo, deparamo-nos com um livro azul, o fato de ele ter essa cor não é algo essencial ao livro. Vemos, assim, que qualidades como gostos, sons produzem em nós diversas sensações e dependem das qualidades primárias.
As qualidades primárias estão presentes no objeto enquanto próprias dele; elas existem nos objetos, de forma independente da mente. Elas agem sobre nós na medida em que partículas se desprendem dos objetos e chegam até nós. As ideias das qualidades primárias produzem no sujeito um efeito semelhante ao do objeto, enquanto as qualidades secundárias produzem um efeito diferente do objeto; são dessemelhantes ao que há no objeto; elas existem para uma mente que as percebe. Nesse ponto pode surgir uma questão: se as ideias das qualidades secundárias são dessemelhantes a elas mesmas, de onde elas vêm? Só podem ser provenientes das qualidades primárias. Pode-se, através das qualidades primárias, produzir um conhecimento objetivo.
As qualidades primárias são sempre as mesmas, independente das pessoas. Elas aparecem para os sentidos da mesma maneira. Dessa forma, pode-se dizer que qualidades são potências nos objetos de produzir ideias no sujeito.
Forma, extensão, figura, movimento, número, volume, posição e situação são qualidades primárias; qualidades como cor, som, calor, frio, seco, úmido, dureza etc. são secundárias. Estas são produzidas da mesma maneira que se produzem as qualidades primárias: pelas partículas que entram em relação com nosso sentido; também não são produzidas pelo sujeito, têm origem no objeto, como as primárias.
Nossos sentidos são afetados pelos objetos externos; temos terminações nervosas que estão conectadas com o cérebro quando se produz essa ideia. Para isso, tem se que estar em contato com objetos, que por sua vez emitem partículas invisíveis, imperceptíveis, que, ao afetar nossas terminações nervosas, produzem essas ideias.
Tanto as qualidades primárias como as secundárias estão relacionadas às nossas ideias simples. Nós as formamos por meio das sensações (as qualidades não são ideias). Qualidade diz respeito aos objetos. Ideias dizem respeito à mente.
Segundo Locke, o que reúne qualidades primárias e secundárias é substância; é aquilo que subjaz mas não há como chegar a ela. Locke tenta esvaziar o sentido de substância, pois substância remete a uma totalidade, mas não há como falar dela. Ele não recusa o conceito de substância, apenas não se sente capaz de discorrer sobre ela.
A filosofia de Locke é atomista, pois qualquer processo é uma reunião de ideias simples; ele crê que toda a realidade é composta de ideias simples. A mente permanece passiva em relação às ideias simples. Em relação às ideias complexas, o entendimento tem papel ativo, na medida em que pode unificar as ideias simples, relacionar duas ideias simples ou generalizá-las. As ideias complexas contêm os modos, a substância e a relação. Ideias como triângulo, gratidão, assassino etc. são ideias complexas que não podem existir por si mesmas.
As primeiras ideias são as simples da sensação; as segundas ideias (das primárias) são as simples da reflexão; depois vêm as ideias complexas. O conhecimento é uma forma de combinar ideias.
Existem dois tipos de conhecimento: o intuitivo e o demonstrativo. O intuitivo tem uma evidência, não precisa demonstrar que tais ideias são verdadeiras. A própria mente percebe o acordo ou o desacordo de ideias. É um conhecimento, um pensamento mais imediato. Enquanto o conhecimento demonstrativo precisa de uma mediação, é uma relação de ideias que não é evidente, é mediado. Para pensar o conhecimento demonstrativo, usa-se o modelo dedutivo.
A ideia de demonstração é construída em cima de várias sequências de intuições. Nós temos quatro tipos de conhecimento: identidade, coexistência, relação e existência real. Na identidade, ao se ter uma ideia, qualquer que ela seja, ela já tem uma identidade própria diversa de qualquer outra. Na coexistência, o que se apreende são qualidades primárias, e de determinadas qualidades primárias se produzem qualidades secundárias. Na relação, temos as noções de causalidade, origem, criação etc. Na existência, a concepção que temos de nós mesmos é um conhecimento intuitivo (imediato) e das coisas é sensitivo. A noção de verdade, para Locke, é correspondência.
Assim, podemos perceber que a principal discordância entre o pensamento de Descartes e Locke é a negação do último a respeito da existência das ideias inatas, tendo sido, por isso, acusado de ceticismo. Tais acusadores, porém, não levaram em conta passagens dos escritos do empirista que explicitamente mostram sua crença em Deus. Locke considera nosso "Autor" digno de gratidão devido ao fato de a porção e o grau de conhecimento outorgados a nós por ele serem superiores ao dos outros habitantes da Terra. Ao nos ocuparmos daquilo que nos foi dado pelo nosso "Criador" (ao invés de ficarmos nas sendas da especulação), estaríamos agindo bem, isto é, lutando contra o ócio e o ceticismo.
Publicado em 25 de março de 2008
Leia também: A origem do conhecimento em Descartes
Publicado em 25 de março de 2008
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