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Hotel Medea e o Teatro Gargarullo

Cláudia Dias Sampaio

O teatro em busca do velocino de ouro

No célebre ensaio sobre a posição do narrador no romance contemporâneo, publicado em Notas de Literatura I, pela Editora 34, Theodor Adorno compara o romance tradicional ao palco italiano do teatro burguês. O conforto desse tipo de teatro equivale, na literatura, àquele narrador atento, comentador dos acontecimentos, e garante ao público uma segurança que é colocada em xeque na modernidade. Na literatura, ainda que uns e outros se recusem a abandonar essa segurança, a consciência de uma subjetividade diferente da de nossos antepassados se faz presente. O teatro, no entanto, parece ter demorado um pouco mais para expressar os efeitos dessa consciência, evidenciada, segundo Adorno, pela violência da relação estreita entre forma e sentido.

Apesar das inúmeras performances, happenings e espetáculos pós-modernos, a linguagem teatral ainda continua refém da confortável forma tradicional do palco italiano. Talvez pelo receio de realmente expor o público ao desconforto da modernidade, ou por uma crise provocada pela supremacia da linguagem audiovisual, o teatro ainda busca seu compasso neste século XXI.

Nesse cenário, trabalhos como Hotel Medea são bem-vindos, principalmente pela disposição com que o coletivo que o produz se relaciona com a urgência de novos horizontes da linguagem teatral. Erros e acertos são apresentados ao público em um processo que lembra a supressão da distância entre leitor e autor no romance moderno.

Encontro: é a palavra que o diretor do espetáculo, Jorge Lopes Ramos, usa para definir o teatro. De fato, Hotel Medea resulta da união de afetos e interesses, numa sedutora conspiração cuja proposta se distancia do que oferece a cansativa chamada “indústria cultural”.

O berço desse encontro é o Centro Popular de Conspiração Gargarullo, situado no município de Miguel Pereira, a duas horas da capital fluminense. O pai de Jorge, Jorgeh José Ramos, ator, diretor, dublador e autor de peças teatrais, chegou a Miguel Pereira “pelas intempéries da ditadura militar”.

– Foi uma saída estratégica. Fui gerenciar o Hotel Arcozelo, acabei ficando encantado com a região. Mais tarde, quando já havia voltado para o Rio, e meus filhos já tinham nascido, decidimos voltar.

Jorgeh percebeu a carência cultural da cidade e decidiu fazer um teatro. Com a ajuda da mulher, a atriz Jussara Zisels, e dos quatro filhos, também artistas, ele construiu o Centro Popular de Conspiração Gargarullo. Um pequeno prédio foi adaptado para receber as instalações dos três espaços: Teatro Tadeusz Kantor, Teatro Gargarullo e Espaço Branco. Além dos espaços cênicos, há alojamentos para visitantes e artistas.

Jorgeh explica que Gargarullo, na “linguagem dos indomáveis”, significa movido a sonhos. O desejo de reverter o quadro de escassez cultural na região sul-fluminense o levou a criar um concurso de literatura e outro de fotografia para alunos e professores das escolas da região, mas ele ficou desapontado com a tímida participação no concurso, que oferecia prêmios em dinheiro.

Logo, o desânimo dá lugar à energia dos que persistem em seus sonhos e percebem a capacidade de transformação de que a arte e a educação são capazes. No grave da voz, que o tornou conhecido no meio cinematográfico, ele fala sobre o projeto de construir, em bambu, um outro espaço, próximo ao Gargarullo, para receber grupos de artistas brasileiros e estrangeiros.

– É um terreno muito bonito, uma clareira cercada pela Mata Atlântica, com cachoeira e a tranquilidade necessária para a concentração e a descontração.

Longe da rotina urbana e nesse clima familiar, foi concebido o processo de Hotel Medea, resultado do encontro entre o filho de Jorgeh, Jorge Lopes Ramos, e a atriz Jade Maravala, que ele conheceu durante a temporada que passou em Londres, estudando e trabalhando com teatro.

Formou-se então a aliança: Companhia Teatral Zecora Ura Theatre, de Jorge Lopes Ramos; a Cia. Para-Active, de Jade Maravala; e o CPC Gargarullo. O grupo passou um mês em ensaios intensivos de preparação para a estreia, prevista para agosto, no Festival Internacional de Teatro de Edimburgo, na Escócia.

Jade Maravala dá vida a Medeia; Urias de Oliveira, da Cia. Tapete, Criações Cênicas de São Luís do Maranhão, é Jasão. O processo de pesquisa envolveu atores de diferentes partes do mundo, com treinamentos e seleção de elenco e equipe técnica, a partir de encontros e oficinas que aconteceram nas cidades de Campinas (SP), Miguel Pereira (RJ), São Luís (MA) e pelo Estado de Pernambuco.

A revista Educação Pública foi a Miguel Pereira conferir o processo de Hotel Medea. O pesquisador Ulysses Maciel esteve conosco e aceitou o convite para escrever uma crítica sobre o espetáculo. Ele tem especial interesse no tema, pois é o assunto da tese que desenvolve sobre Pasolini e a tragédia, no doutorado em Literatura Comparada da UERJ. Para nós, leitores, é uma ótima oportunidade de “vislumbrar o que está subjacente”, como disse Adorno, na história da mulher que matou os próprios filhos.

Hotel Medea: teatro mitológico e inconvencional

Ulysses Maciel

Representar no palco, hoje, um texto dramático como Medeia implica um risco que a dramaturgia brasileira, navegando em mares desconhecidos e repletos de escolhos, nem sempre consegue evitar. Tais são as “adaptações” que fazem do texto trágico uma representação romântica, atendendo às exigências do mercado e às concepções mais fáceis do público, ou representam o texto comme il faut, o que resulta numa versão que se pretende fiel ao texto clássico uma empresa impossível, pois as plateias de hoje não sentem e não veem tragicamente.

O texto clássico de Medeia, do tragediógrafo grego Eurípides (sec. V a. C.), é apontado como um dos pontos finais da tragédia clássica, escrito e representado num momento em que a concepção grega de tragédia e o sentimento trágico grego se transformavam, falando-se mesmo, numa análise moderna, num “primeiro Iluminismo”, ou seja, uma superação do pensamento mítico e religioso pelo pensamento racional.

O que resta, então, da Medeia original? Resta a tragicidade da mulher que mata os próprios filhos, personagem criada como mito e relida tragicamente por Eurípides e por Sêneca. Para a dramaturgia moderna, eis o primeiro escolho: o cânon teatral. Recuar diante dele é cair no abismo da compreensão fácil, da distorção romântica. Avançar é para poucos, mas os que avançam em busca de maiores prêmios, como os tripulantes da nau Argos, vão em busca de novos significados, que são como o velocino de ouro, objeto mítico que confere poder e perenidade aos reis. Para isso, é preciso primeiramente alcançar a terra de Medeia e conhecer a Medeia feiticeira, neta do Sol.

Nessa empreitada arriscada e mítica, lançam-se atores, diretores e idealizadores de Hotel Medea. O público navega junto, enfrentando o inesperado e a sensação de ser estrangeiro na terra de Medeia. A viagem foi inspirada pelo texto Medea Material (1982), do dramaturgo alemão Heiner Muller (1929-1995). A paisagem às vezes é familiar, como a gaiola de fitas coloridas que faz parte do imaginário de tantas festas populares brasileiras, ou os capacetes de motociclista, usados pelas guerreiras na segunda parte do espetáculo.

Para Jorge Lopes Ramos, diretor do espetáculo, Hotel Medea é um encontro. A ideia de se inspirar no texto de Muller e introduzir elementos dos mitos que envolvem as festas brasileiras – o bumba-meu-boi do Maranhão e o cavalo-marinho – se originou do encontro entre o diretor e a atriz, performer e preparadora psicofísica Jade Maravala (da Cia. Para-Active, de Londres). No Centro Gargarullo incorporaram-se ao encontro atores e atrizes do Brasil, Reino Unido, Nigéria e Iêmen. Após uma preparação intensa do espetáculo, uma rotina de acordar com o sol nascendo e trabalhar até a meia-noite, o grupo convidou o público para comparecer também ao encontro.

A universalidade do mito está representada por essa multiplicidade de culturas, mitologias e experiências cênicas. Daí a função de uma cenografia que cria uma atmosfera mítica capaz de promover o encontro entre diferentes imaginários. O bumba-meu-boi do Maranhão é o parâmetro mitológico tradutório que torna eficaz o encontro entre mitologias gregas e o público brasileiro, através da simbologia do touro, animal representativo das forças primitivas que sempre desafiam o homem no seu afã de ser racional.

No primeiro ato de Hotel Medea, “O mercado da zero hora”, as gaiolas de fitas e o mercado mítico, percorrido pela personagem do boi, criam uma paisagem brasileira onde será iniciada a recriação do mito de Medeia, recriação resultante do encontro entre atores, idealizadores, músicos e público participante.

O que se faz num mercado? Negocia-se. Público e atores são envolvidos numa gaiola de fitas – um cenário brasileiro do boi-bumbá e de muitas outras folias populares brasileiras; nessas gaiolas o espectador-participante negocia com um dos atores algum objeto simples mas significativo, do fósforo que traz a luz a uma caixinha fechada da qual não se conhece o conteúdo. É um mercado de significados, no qual o espectador-participante é levado, pelo convívio com o inexplicável, à metáfora da impossibilidade de alcançar o mito ou de desvendar o sonho: se a negociação é concluída, o mito deixa de ser mito, ou o sonho deixa de ser sonho; torna-se um discurso explicado, racional, e então se perderia a dimensão mítica de Medeia.

Dessa forma, a cenografia resolve com imagens inconvencionais as situações não convencionais do mito. Na literalidade, o mito é irrepresentável, pois se torna narrativa épica ou romântica. A experiência de participar do espetáculo Hotel Medea leva o público a perceber a especificidade de representar miticamente o trágico, de representar não a solução racionalizada do texto trágico clássico, mas as forças primitivas em jogo no fenômeno do trágico.

No segundo ato representa-se a viagem e o retorno de Jasão. O reencontro de Jasão e Medeia é ativamente vivenciado pelo público, que se torna Medeia e Jasão, usando máscaras dos dois e participando de rituais de homenagem aos personagens. O espectador participante toca os atores, dança com eles, dialoga, acusa Jasão, exalta Medeia. Neste ato há pouco texto e uma longa improvisação. Numa dança de guerra, as atrizes usam capacetes de motociclistas, representando o laço contemporâneo com as tecnologias, as ideias e as situações globais da modernidade.

O terceiro ato é o que segue mais de perto o texto de Heiner Muller. É um diálogo entre Medeia e sua ama, em que esta informa à patroa que Jasão está em companhia da filha de Creonte. Na sequência, é encenada a morte dos filhos e o sofrimento de Medeia. Essas ações são perpassadas por um canto triste e lamentoso.

O cenário deste ato é também inusitado e desconfortável. Já era bastante tarde da noite quando os espectadores participantes foram conduzidos pelos atores a entrar, descalços, num ambiente abafado e quente, repleto de objetos significativos. Numa pira, havia fogo. Sobre a mesa, um pedaço de carne e uma faca. Uma mulher corta a carne diante do pequeno público, que é então conduzido pelas mãos, às apalpadelas, devido à escuridão, a uma outra sala. Os pés mergulham na água fria de uma piscina rasa, onde boiam muitos brinquedos de borracha. A passagem do calor da “cozinha” para o frio da água nos pés é mais um elemento provocador, é para não se ficar anestesiado.

Esse encontro pouco convencional entre público e atores, um encontro de negociação de significados – e não a imposição de imagens representadas no palco –, faz ver como o encadeamento de imagens proporcionado pela cenografia de Hotel Medea pode resolver o paradoxo que é representar o mito, ou seja, representar o inalcançável. Hotel Medea, como peça mítica, é mais do que não-realista; é antirrealista, porque releva corajosamente o que na personagem Medeia é impensável de um ponto de vista interpretativo. No espaço cênico do Centro Gargarullo foi experimentada a tradução, em texto teatral, das imagens do imaginário suscitadas pelo primitivismo da personagem Medeia. Caso fosse realizada uma operação meramente tradutória (realista), esta seria a exposição no palco de uma problemática nossa, moderna e contemporânea, a partir da qual simplesmente se afirmaria do alto do palco, autoritariamente, para a plateia: estão vendo, os gregos já haviam pensado nisso! Curioso, mas apenas curioso.

Contrariamente a essa operação que apenas entretém, exaustivamente tentada pela dramaturgia brasileira, que no máximo faz a plateia admirar um belo cenário ou uma bela dança, o que o espectador-participante de Hotel Medea vivencia é a imersão num ambiente mítico, em tudo que ele pode ter de inexplicável, inapreensível, amedrontador e desconfortável. Nesse sentido, Hotel Medea é como um sonho ainda não narrado pelo sonhador: é o mito antes da palavra, é o que vai direto aos sentidos e que faz, dos sentidos, imagens.

GRUPO DE CRIAÇÃO

LONDRES

  • Freja Lucia Feilberg
  • Jorge Lopes Ramos
  • Kai Noedland
  • Katherine Dilworth
  • Liam Stevens
  • Lisa Lapidge
  • Lise Marker
  • Mark Bushell
  • Nwando Ebizie
  • Oliver Halls
  • Persis-Jade Maravala
  • Soheila Ghodstinat
  • Suzanne Davies
  • Tesi Gburek
  • Thelma Sharma
  • Victoria Johnstone

BRASIL

  • Carlos Rezende
  • Flávio Rabelo
  • Gabriel Zisels Ramos
  • Helder Aragão (DJ Dolores)
  • Jussara Machado
  • Itaicyguaçú Cunha Figueiredo (Trindade)
  • Leandro de Maman
  • Márcia Shoo
  • Olga Fernández
  • Patricia Ceschi
  • Patrik Vezali
  • Raquel Aguilera
  • Samara Zukoski
  • Urias de Oliveira
  • Virgínia Maria

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Publicado em 25 de março de 2008

Publicado em 25 de março de 2008

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