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Mucamas, Criadas ou Domésticas: sinônimos de uma só história de exclusão

Ricardo Corrêa Peixoto

Historiador, pesquisador da história sobre exclusão social, transição Império-República, escravismo e capitalismo

Xenofonte escreve: as pessoas que se dedicam aos trabalhos manuais nunca são elevadas a altos cargos e é razoável. Condenadas na sua grande parte a estar sentadas todo o dia, algumas mesmo a suportar um fogo contínuo, não podem deixar de ter o corpo alterado e é muito difícil que o espírito não se ressinta disso. Paul Lafargue

Neste artigo escolhemos tratar da genealogia, por assim dizer, do trabalho doméstico; poderíamos ter escolhido qualquer outra função e/ou atribuição considerada residual no seio da sociedade capitalista, em que os salários e o status são igualmente residuais; é o caso dos garis, pedreiros, serventes, boias-frias, e toda gama de profissões cuja especialização e o grau de proficiência são minimamente exigíveis, ou seja, são consideradas atividades de caráter rudimentar, em que a capacidade cognitiva não teria tanta relevância, se comparada a outras áreas, posições conspícuas cujo credenciamento estaria atrelado à inteligência do indivíduo e por sua capacidade de realizar tarefas complexas, ininteligíveis para insipientes.

Essas simplórias premissas buscam legitimar as gradações e a divisão social do trabalho a quem diga que o fordismo morrera, que a diferença entre escritório e o chão da fábrica fora dissolvido por metodologias e paradigmas de inclusão e coparticipação, mas a realidade que escapa às teorias dos grandes administradores mostra que a especialização e a segregação funcional na sociedade capitalista contemporânea tem inexoravelmente ofendido, de maneira contumaz, pessoas cujas oportunidades lhes ofereceram um campo existencial limitado; a História mostra que a realidade é múltipla, ou seja, ricos e pobres; católicos e protestantes; jovens e velhos, mesmo estando num mesmo tempo histórico, decodificam sua realidade e a circunscrevem numa maneira peculiar, construindo assim uma identidade, sua interface com o mundo; logo, muito do que as pessoas são - ou vão se tornar - dependerá dos aparatos culturais e/ou existenciais colocados à sua disposição. Ou seja: o que seria dos gênios do nosso tempo se não fossem municiados dos conhecimentos que lhe deram a base para seus descobrimentos? Seria como esperar que um índio do Xingu construísse uma bomba atômica. Em primeiro lugar, seu arcabouço cultural não conceberia tal aparato, não haveria lógica nem matéria-prima, nem conhecimentos prévios; enfim, é como alguns antropólogos dizem: "temos um aparato biológico preparado para viver mil vidas", dependendo, é claro, de com qual delas formos agraciados.

A partir do exposto, podemos definir que as ambiguidades das atividades profissionais e seu corolário de satisfação ou de marginalização advêm de desigualdades artificiais, convenções historicamente delimitadas cujas raízes podemos encontrar através de uma ressonância cuidadosa da história das civilizações e, no nosso caso, mais precisamente do passado escravista brasileiro, que engendrou classificações no mínimo equivocadas, anamorfoses que deliberaram o que teria valor e o que não teria, construindo muros virtuais que protegiam os afortunados dos desvalidos.

O liberto defrontou-se com a competição do imigrante europeu, que não temia a degradação pelo confronto com o negro, e absorveu assim as melhores oportunidades de trabalho livre e independente (mesmo as mais modestas, como a de engraxar sapatos, vender jornais e verduras, transportar peixe ou outras utilidades, explorar o comercio de quinquilharias etc.). [...] Eliminado para setores residuais daquele sistema, o negro ficou à margem do processo, retirando dele proveitos personalizados, secundários e ocasionais [...]. Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo (Fernandes, 1978, p. 19-20).

Obviamente que a designação das empregadas domésticas passou por mudanças sinonímias ao longo do tempo; semanticamente, os termos predecessores - mucama, criada e serva - cristalizaram e/ou internalizaram a mediocridade funcional e, por conseguinte, remuneratória; tanto que, apenas recentemente, após quinhentos anos, as empregadas domésticas passaram a possuir alguns dos direitos que já são gozados há décadas pelos demais trabalhadores de outras atividades; obviamente seus salários permanecem infinitesimais, mesmo sendo um trabalho árduo, vital para a consubstanciação tanto do modelo tanto do sanitário vigente, em que a limpeza e a organização são apanágios imprescindíveis a uma casa de gente bem, bem como da estrutura familiar de hoje, cujos pais trabalham fora e deixam suas casas nas mãos de pessoas que não tiveram outra escolha senão executar os trabalhos "indesejáveis", como se o que as domésticas fizessem fosse algo sujo, degradante. Mas infelizmente é isso que fica patente ao observarmos os bônus destinados a elas; sabemos que os discursos humanos se contradizem ao observarmos suas ações.

A história das domésticas brasileiras se confunde com a história de nosso escravismo; não só elas, mas quase todas as funções desprestigiadas, pois ao ex-escravo restavam as ocupações residuais, como diria Florestan Fernandes. Para esta afirmação corroboram os jornais da época, mais precisamente os classificados de empregos, que denunciam concomitantemente as opções destinadas às pessoas de cor; mesmo após a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, estavam patentes não apenas as desigualdades econômicas, mas as desigualdades existenciais, aquelas que possibilitam vislumbrar a esperança em conquistar um torrão do grão-pátrio.

Estas são as ocupações mais oferecidas dentre as várias delimitadas e deliberadamente reservadas aos negros, mesmo após a Abolição, já em plena República: carregador de caixas; cozinheiro; copeiro; caixeiro; costureira; vendedor de bala; carregador de pão; lavadeira; mucama; saieira; carregador de cestos; tirador de goiabas; ajudante de alfaiate; charuteiro; official barbeiro; padeiro; forneiro; carpinteiro; ama seca; ama de leite; ajudante de cozinha; lavador de pratos; aparece de maneira esmagadora a função de criada; em todos os classificados verificados, a referência à cor é aquilo que chancela, credencia a ocupação desses postos; nesses casos que citamos, as funções são as menos bem remuneradas e, portanto, as que exigem menor qualificação, ou seja, são funções residuais, inferiores, dentro da hierarquia ocupacional capitalista - como o são até hoje. É o caso da criada, nossa empregada doméstica, classe com os menores níveis salariais e que menos dispõe das garantias legais do trabalhador. Transcreveremos alguns textos desses jornais, a fim de contextualizar nossas inferências.

  • Precisa-se de uma criada de cor preta: Rua Visconde de Sapucahy n. 169ª
  • Precisa-se de uma criada de cor preta, que cozinhe e lave; na Rua Guarda Velha n. 30
  • Precisa-se de uma negrinha para arranjos de casa e lidar com crianças, paga-se 15$; no Centro, Ouvidor n. 20, 1º andar
  • Precisa-se de uma preta de meia idade que saiba cozinhar, na Rua da Ajuda n. 27, 1º andar
  • Precisa-se de uma preta velha para cozinhar e lavar, que durma na casa; na Rua General Polydoro n. 24
  • Precisa-se de uma rapariga preta para ama seca; na Rua Senador Eusébio n. 9, sobrado
  • Precisa-se de uma preta quitandeira, que seja fiel e sem vícios, na Rua Haddock Lobo n. 18F
  • Precisa-se de uma crioulinha de 12 a 13 anos para andar com crianças de anno emeio; Rua da Passagem n. 67, Botafogo
  • Precisa-se de uma senhora de idade ou de uma preta velha para serviços leves; na Rua da Ajuda nº 187, 2º andar.

As modestas modalidades oferecidas ao negro não permitam a ele reverter seu quadro de exclusão, de anomia social, pois suas alocações eram análogas ao período escravista, o que insistia em internalizar na idiossincrasia social o gênero subjacente do negro.

Os negros e os mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos da prosperidade geral, bem como dos seus proventos políticos, porque não tinham condições para entrar nesse jogo e sustentar as suas regras. Em consequência, viveram dentro da cidade, mas não progrediram com ela e através dela. Constituíram uma congérie social dispersa pelos bairros, e só partilhavam em comum uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria. Nessa situação, agravou-se, em lugar de corrigir-se, o estado de anomia social transplantado do cativeiro; [...] quase meio século após a abolição, o negro e o mulato ainda não tinham conquistado um nicho próprio e seguro dentro do mundo urbano que fizesse daquele estágio um episódio de transição, inevitável mas transponível. Pagaram com a própria vida, ininterruptamente, os anseios da liberdade, de independência e de consideração que os animavam a "tentar a sorte", usufruindo magramente das compensações materiais e morais da civilização urbana. [...] As posições mais cobiçadas mantinham-se "fechadas" e inacessíveis; as posições "abertas" eram seletivas segundo critérios que só episodicamente podiam favorecer pequeno número de "elementos de cor" (Fernandes, 1978, p. 17-29).

Estratégia velada, inconsciente ou deliberada, não importa, a questão é que os papéis ínfimos dentro do mercado de trabalho oferecidos aos egressos do escravismo ajudaram e têm ajudado a perpetuar a debilidade econômica e, por conseguinte, social, calando sua voz diante de um sistema econômico arraigado a práticas racistas de seleção, alimentando anacronicamente um sentimento colonial cuja perenidade forjou uma espécie de inconsciente coletivo. Logo, despreparado, descrente, abandonado à sua própria sorte, o negro carecia de quase tudo; não houve nenhum planejamento ao despejá-lo em um mundo cuja lógica seria ininteligível para um ex-cativo. Assim, sem tempo para se adaptar, se reeducar e internalizar o ethos de trabalhador livre, sem meios para competir com os brancos e aspirar à ocupação de posições mais valorizadas, os negros portavam-se de maneira dispersa, quase neurastênica.

Trazemos este tema à baila num momento de verdadeira revolta e como forma de protesto, sim, sem nos preocuparmos com críticas sobre nosso cientificismo. Assistimos, da mesma forma, ao descaramento e à total ausência de constrangimento com que a mídia destaca as atividades como faxineiras, garis, peões; são estereotipadas como a consubstanciação do malogro. É muito comum as telenovelas se reportarem a essas profissões de forma desrespeitosa, mesmo que camuflada em pó de arroz de ingenuidade grotesca. Está muito presente na lembrança coletiva a personagem vivida por Guilhermina Guinle, que, ao final da novela Paraíso Tropical, recebera como castigo, por assim dizer, um final infeliz - pelo menos era o que o autor devia ter em mente quando a ridicularizou colocando-a na pele de um gari do Rio de Janeiro, como se essa profissão fosse uma penitência -; o mesmo aconteceu recentemente a um casal de senhores na novela Sete Pecados, que simplesmente tinha aversão ao trabalho de faxineiros de um hotel luxuoso e conquistou um final majestoso ao ganhar na loteria, livrando-se desse martírio: o serviço de limpeza.

O pior é que as autoridades também reverberam esse ideário preconceituoso, tanto que têm adotado como penitência para jovens infratores o castigo de realizar, por alguns dias, serviços de gari, situação que fora recebida com indignação pela classe, que se diz insultada, porque sua profissão não deve ser vista como um mero castigo e tratada com repugnância; eles se dizem orgulhosos de fazer o que fazem. Outro aspecto patente nas telenovelas concerne no padrão estabelecido das empregadas domésticas: a sua maioria composta de negras - até aí concordamos, uma vez que essa é infelizmente nossa realidade, pois, como já explanamos, tem raízes em nosso escravismo. A questão é: até quando trataremos com tamanho desdenho gente que trabalha duro, fazendo aquilo que os diplomados e engravatados consideram humilhante realizar e por isso legaram aos subalternos; como se já não bastassem a carga de trabalho e, paradoxalmente, os salários aviltados, ainda encontram outras maneiras de vilipendiar as pessoas simples que, sem vergonha alguma, lutam por sobreviver a partir dos meios de que dispõem, desafiando com o peito aberto um mundo cujo glamour depende do trabalho deles, que pegam no pesado e na sujeira, mas cujas mãos não estão tão sujas quanto aquelas responsáveis pelo imobilismo na estrutura social brasileira.

Referências bibliográficas

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ótica, 1978.

Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, edições de 1 de janeiro de 1888, 8 de janeiro de 1890 e 14 de abril de 1901. Biblioteca Nacional - Setor de Microfilmes.

LAFARGUE, Paul. Direito à preguiça (publicação eletrônica).

Publicado em 25 de março de 2008.

Publicado em 25 de março de 2008

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