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Da arte de caminhar

Mariana Cruz

O caminho dos filósofos

Etimologicamente, a palavra “escola” vem do grego skhol. Não, nada a ver com aquela cerveja que “desce redondo”. O fato é que, ao longo do tempo, tal conceito (de escola, não do tal líquido) transformou-se bastante. Ainda na Grécia clássica, a ideia de escola passou por diversos estágios: o espaço público utilizado por Sócrates, a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, para citar apenas os mais conhecidos. Posteriormente, houve os monastérios medievais e tantos outros modelos até chegar à diversidade de escolas dos dias atuais.

Dentre as várias escolas da Antiguidade, porém, existe uma que se destaca não só pela estranheza do nome como pelo tipo de ensino incomum: o método peripatético, utilizado por Aristóteles no Liceu. Isso mesmo: o autor da Metafísica não passava de um peripatético. O exótico adjetivo se deve ao fato de ele dar suas aulas caminhando pelo peripatos, uma alameda situada nos jardins do Liceu. As andanças eram feitas pelas manhãs, e nelas mestre e discípulos discutiam as questões filosóficas mais profundas ligadas à metafísica, à física e à lógica.

Alguns séculos depois, o termo se desprendeu dos jardins do Liceu e passou a servir de designação a todo aquele que tem o hábito de ensinar andando. Surge assim o mais famoso peripatético de todos os tempos: Jesus Cristo. As pregações do filho de Maria eram feitas em longas caminhadas com os discípulos, que por sua vez levaram adiante seu modo de ensinar. E foi assim, através de suas caminhadas e pregações, que Jesus ajudou a combater a exploração do aparentemente invencível Império de Roma.

Dando um longo passo da época de Cristo até o século XVIII, chega-se a um dos grandes nomes da filosofia moderna: Emmanuel Kant. O filósofo, nascido na cidade de Königsberg - de onde nunca sairia -, fora capaz de pensar coisas que revolucionaram o mundo da filosofia. Apesar da mente inquieta, a vida de Kant caracterizava-se por uma rotina inquebrantável. Segundo se conta, todos os dias, às três e meia da tarde em ponto, ele saía de sua casa para seu passeio vespertino na alameda de tílias que hoje se chama Passeio do Filósofo. A pontualidade era tanta que os vizinhos acertavam seus relógios pela hora que Kant aparecia na porta de casa para iniciar sua caminhada (reza a lenda que apenas um único dia o filósofo não caminhou: quando leu Rousseau, sua perplexidade foi tamanha que violou seu hábito).

Kant não era um peripatético, posto que em seus passeios não dava lições, mas quem garante que não teria nascido dessas tardes de exercício a fonte de inspiração para os juízos sintéticos a priori, o imperativo categórico e outras de suas grandes descobertas filosóficas?

Ainda na senda da filosofia, apesar dos pensamentos distintos entre o plácido filósofo de Könninsberg e o possesso pensador do eterno-retorno, Friedrich Nietzsche, existe um ponto de encontro: o caminhar. Ambos cultivavam esse saudável hábito, mas o autor de Assim Falava Zaratustra - talvez pelo seu gênio impetuoso – fazia andanças bem mais intensas que as kantianas. Durante sua vida nômade, que lhe valeu a alcunha de “filósofo errante”, independente dos lugares onde se fixava, Nietzsche percorria diariamente longas distâncias por cerca de 6 a 8 horas e depois se entregava a uma escrita incessante na qual colocava as ideias surgidas nesse processo. Não deve ser por acaso que seus textos são repletos de alusões a locomoção, a paisagens e a fenômenos climáticos. A consolidação máxima de seu processo de pensar-caminhar fica clara em seu mais célebre livro, que narra a trajetória de um homem que, aos trinta anos, deixa sua casa e isola-se nas montanhas por 10 anos. Após esse período, desce de lá e busca disseminar suas ideias pelo mundo afora.

As quatro partes em que o livro é dividido foram escritas em diferentes lugares e épocas. Foi caminhando que as ideias para escrever Zaratustra brotaram em Nietzsche. Para ele, andar era imprescindível para pensar. Tanto assim que no livro A Gaia Ciência encontra-se o aforismo: "Não escrevo apenas com a mão: o pé também quer sempre participar".

Veredas literárias

Uma trilha que por vezes se cruza e por vezes se afasta da filosofia é a literatura. O caminhar nela também se faz bastante presente.

Em seu livro de estreia, O diário de um mago, o escritor Paulo Coelho relata sua experiência ao trilhar o Caminho de Santiago de Compostela. No texto, o mago descreve a importância de realizar tal jornada: “A viagem, que antes era uma tortura porque você queria apenas chegar, agora começa a transformar-se em prazer, no prazer da busca e da aventura. Com isto você está alimentando uma coisa muito importante, que são seus sonhos”.

Apesar de tal caminho já ser rota de peregrinação desde o século IX, o livro fez tanto sucesso que o trajeto popularizou-se ainda mais e hoje milhares de pessoas se mandam para a Península Ibérica a fim de trilhá-lo. Os motivos da peregrinação podem ser de natureza religiosa, mística, pessoal ou simplesmente para buscar emoções.

Outro famoso caminhante da literatura é Sidarta, de Herman Hesse. O príncipe de Sakyas, após largar todos os bens materiais de que era provido no palácio de seu pai e sair caminhando pelo Oriente, passa por diversas provações até que obtém a redenção, liberta-se de todos desejos e torna-se Buda.

Na contramão desse caminho, desejando sobretudo o encontro com o Diabo, está o desbravador das tortuosas trilhas das Gerais, Riobaldo, protagonista da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. Todo o livro acontece no caminhar, nas andanças, no encontro e desencontro dos rumos. É quando o professor Riobaldo se larga pelas veredas do sertão. Na travessia, descobre a paixão proibida por Diadorim, o amor por Otacília e a jagunçagem. Até de nome muda: Tatarana, devido à boa pontaria, e depois vira Urutu-Branco quando se torna líder do bando. Mas a dúvida crucial do romance permanece: vendeu ou não sua alma ao demo? E pergunta ao seu compadre: “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!.” Ele mesmo responde: “O Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”

“Run, Forrest, run!!!”

Ao passar da aridez do solo sertanista para o tapete vermelho de Hollywood, encontramos um dos mais famosos “caminhantes” do cinema, que teve como incentivo as palavras de sua melhor amiga, Jenny, proferidas quando ainda eram crianças: “Run, Forrest, run!” Era assim que Forrest Gump, personagem que dá título ao filme, conseguia escapar dos coleguinhas que o perseguiam. Tamanho foi o estímulo que o menino, no meio da corrida, livra-se até dos ferros que prendiam suas pernas e torna-se um exímio corredor.

Depois, já homem feito, Forrest, sem mais nem menos, começa a correr sem parar e passa por diversos estados dos States, atrás de alguma resposta. À medida que vai correndo, uma legião de seguidores vai se juntando a ele, pois também buscam algo. Forrest vira uma espécie de guru, mas ele nada prega. Por vezes, durante a travessia, alguém se aproxima dele em busca de um conselho e ele fala o que lhe vem à cabeça. Suas palavras despretensiosas caem sempre como uma luva para o seguidor que as interpreta de acordo com sua conveniência. Até que um dia, Forest interrompe sua corrida abruptamente e deixa seus adeptos sem resposta alguma e enfurecidos por terem perdido o guia. Eles não perceberem que a meta a ser cumprida era somente aquela mesma, do caminhar, do deslocar-se ou de simplesmente fazer algo que está a fim de fazer. Forrest, sim, percebeu. Quando perguntado por que corria, a resposta foi simples: “porque gosto de correr!”. É preciso mais?

A caminho do mar...

Outro conhecido adepto de caminhadas é o muso sexagenário, Chico Buarque de Holanda, que usa o trajeto do final do Leblon até o Arpoador como fonte de inspiração para suas composições, livros e reflexão, pois, como ele mesmo declarou em entrevista: “eu também só sei pensar andando. Se você ficar parado, não consegue pensar. Andar eu recomendo para tudo. Se você tem qualquer problema, dê uma caminhada – porque ajuda, inclusive, a ter ideias. Se a música ficou emperrada ou se a ideia para um livro não vem, a melhor coisa a fazer é dar uma bela caminhada. Fiquei três meses preso na cama. Eu não conseguia ter ideias. Só sonhava que andava. Foram três meses perdidos pela imobilidade”. E completa: “Associo o ato de andar ao ato de pensar, criar e compor”.

Caminhar é preciso

Ilustres “caminhantes” do mundo da filosofia, literatura, música e até mesmo personagens fictícios, muitos dos quais responsáveis por traçar novas direções à incessante marcha da humanidade, levando-a ora para cá, ora para lá, mudando o rumo previsto, entrando por um atalho escondido, abrindo uma trilha fechada... Para eles, caminhar é preciso!

O conselho serve também para aqueles que não desejam formular um pensamento filosófico revolucionário ou alcançar a iluminação espiritual, pelo simples desejo de manter a forma física ou mesmo olhar para dentro de si, como nos ensinam os famosos versos de Candeia em Preciso me encontrar:

Deixe-me ir, preciso andar
Vou por ai a procurar
Rir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer, quero viver
Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir para não chorar
Se alguém por eu perguntar
Diga que eu só vou voltar
Quando eu me encontrar

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Publicado em 1º de abril de 2008

Publicado em 01 de abril de 2008

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